Já havia anoitecido quando Ayla chegou à casa do conde e escalou a árvore que se elevava até a altura das janelas do segundo andar. Pulou, então, para o parapeito de uma delas com a mesma agilidade de um esquilo e subiu as escadas para o terceiro andar.
Ao entrar no quarto de Alice, estancou na porta. O conde estava sentado em uma poltrona à beira da cama da criança, que dormia tranquilamente. Ele estava absorto em pensamentos e, por um momento, Ayla deteve-se observando seu rosto. Na noite anterior ela não havia percebido o quanto ele era bonito. Os traços retos do rosto se uniam em um queixo angulado e ligeiramente proeminente. O nariz, em perfil, era reto e firme, com o tamanho exato para o rosto. Os olhos azuis amendoados eram expressivos e obrigavam as pessoas a prestar atenção quando ele as encarava. Naquele momento, o maxilar e o queixo estavam cobertos por uma fina camada de barba loira, do mesmo tom que os cabelos ondulados.
Quando o conde percebeu a presença de Ayla, levantou-se em um salto e foi ao seu encontro. O tempo que Erick demorou para chegar até Ayla pareceu passar em câmera lenta, pois a garota teve plena consciência dos ombros largos e da altura quase ameaçadora que se aproximava dela.
-- Não ouvi a campainha. – ele disse tranquilamente, parando a dois passos de distância dela.
-- Desculpe. Achei que estariam ocupados com o jantar e entrei sem me anunciar. Queria avaliar se Alice estava bem. – disse a moça desviando de Erick e se aproximando com cuidado da cama.
-- Mas como você entrou? A porta fica trancada.
-- Entrei pela janela. – ela respondeu como se fosse a coisa mais normal do mundo, enquanto colocava a mão na testa de Alice.
-- Você o quê?! Não é possível...
-- Quando eu era criança, aprendi a subir em árvores e escalar muros. Não é tão difícil quanto parece. – Ayla deu de ombros.
-- Não consigo imaginar que alguém tão delicada consiga fazer isso... – Erick respondeu parecendo se divertir com a informação.
Ayla sorriu com o elogio, mas continuou de costas para ele.
-- Poucos conseguem... Mas não é o importante agora. Gostaria de falar com Alice, se me permitir.
-- Ela está dormindo. Talvez seja melhor esperar ela acordar naturalmente, não acha?
Ayla ponderou por um instante, então voltou-se para encarar o conde. Ele estava mais perto do que esperava, o que a desconcertou. Ela deu um passo para trás e disse rapidamente:
-- Ok. Volto em algumas horas, então.
-- O que está dizendo? Não faz sentido... – Erick se sentiu ligeiramente desconcertado, mas logo se recuperou. – Podemos fazer alguma coisa enquanto esperamos ela acordar. Não quer ver meus cavalos, por exemplo?
-- Tenho certeza que tem cavalos magníficos, Sr. Cicekler, mas meu interesse é apenas em sua filha. – disse Ayla desviando do olhar do conde e dando mais um passo para trás.
-- Você seria a primeira... – o conde respondeu com uma risada sem humor.
Ayla não esperava pelo sorriso espontâneo do conde. Até aquele momento ele havia sido polido e educado, sem qualquer sinal de intimidade. Isso a deixou em alerta.
-- Vou aceitar isso como um elogio... – ela pigarreou.
O conde a observou em silêncio por um tempo, curioso com aquela estranha que parecia tão confiável. Analisou cada traço do rosto e do cabelo, a delicadeza do nariz pequeno e arrebitado, a transparência dos olhos verdes. Até o rubor de suas bochechas lhe chamaram a atenção. Não fazia ideia de porque estava confiando a vida de sua filha a ela, mas o estava fazendo sem pestanejar. Contudo, Ayla não precisava saber disso.
-- Ao meu ver, tenho uma dívida com você depois de ontem à noite... – Erick começou a falar e levantou a mão para impedir o protesto que começava a sair dos lábios de Ayla. – Mas também me reservo no direito de ser cauteloso. Por mais que você tenha ajudado minha família, eu não sei nada a seu respeito...
Ayla pareceu ligeiramente desconfortável, mas assentiu. Não era muito experiente, mas já imaginava que seria interrogada em algum momento...
-- Onde mora? – ele perguntou sem rodeios.
-- Além da floresta.
-- Na aldeia?
-- Lá perto.
-- E como uma garota de vinte e um anos mora sozinha em um lugar perto da aldeia?
-- Não sou nenhuma garotinha, senhor. Posso garantir que posso cuidar de mim mesma...
-- Não duvido... Você escala árvores... – Erick riu, mas continuou com seriedade. – Ainda assim, é muito jovem para viver sozinha e ter o conhecimento que parece ter para ajudar minha filha.
-- Não me considero tão jovem. O senhor já é um dos membros mais conhecidos da Academia de Estudos Astrofísicos com apenas 30 anos. – Ayla cruzou os braços em um movimento ligeiramente rabugento.
Erick achou graça da atitude um pouco infantil, mas continuou, sério:
-- E como sabe essas informações...
-- Todo mundo sabe...
-- Quem é todo mundo?
-- Pergunte ao carteiro ou ao leiteiro e ele saberá. Porque eu não saberia? – ela deu de ombros.
Erick começou a se irritar. Estavam se afastando do cerne da questão.
-- Eu não sou idiota e sei que você está desviando o assunto. Responda-me: Quem é você?
-- Certo! – ela sacudiu as mãos exasperada. – Eu fui criada desde nos limites da aldeia e a floresta e aprendi com minha mãe tudo o que existe sobre ervas medicinais e doenças. Ela me ensinou tudo o que sei, inclusive como curar as dores da mente e do coração.
-- O que quer dizer com isso?
-- Nem todas os males estão no corpo. Muitos podem ter causas que a medicina ainda não descobriu.
-- Está me dizendo que acredita em superstições? – Erick arregalou os olhos. – Está fazendo bruxaria com a minha filha?
-- Não! – Ayla respondeu horrorizada. E continuou, ofendida – Como ousa cogitar tal coisa. Minha mãe jamais mexeria com magia maligna...
-- Foi você quem falou de males além da medicina... – Erick retrucou carrancudo.
-- Bom... Eu não tenho culpa que sua interpretação é equivocada. – Ayla respondeu erguendo o queixo irritada e seus olhos verdes pareceram faiscar.
Erick ficou um pouco boquiaberto com aquilo. Nunca tinha visto faíscas em um olho, ou talvez estivesse imaginando coisas...
-- Ok. E então? Sua mãe te ensinou e sumiu?
-- Ela foi obrigada a assumir algumas responsabilidades com... com nossa família... – Ayla respondeu hesitante. – E me disse que minha prova final seria ajudar alguém de verdade. E preciso fazer isso sozinha.
-- E minha filha é sua cobaia?
-- É lógico que não! – Ayla fechou a cara – Eu vim ajudá-la. Independente se poderei me juntar à minha mãe mais tarde ou não, vou ajudá-la.
-- E o que ela tem? – Erick perguntou e sentiu que de toda a conversa, aquela era a questão mais importante.
-- Eu... Eu ainda estou definindo. – o olhar de Ayla perdeu qualquer orgulho e irritação e mostrou apenas preocupação. – Preciso de mais tempo. Tenho um palpite, mas não posso te afirmar ainda. Me dê um pouco mais de tempo, por favor...
-- Terá seu tempo... Contanto que possa ajudar minha filha, estarei satisfeito. – Erick disse.
Ayla assentiu em silêncio e Erick manteve seus olhos sobre os de Ayla por mais tempo do que sua mãe provavelmente aprovaria.
-- Papai? – a voz de Alice quebrou o silêncio.
Ambos olharam para a cama e viram a criança se ajeitando enquanto sentava contra os travesseiros. Ao ver Ayla, arregalou os olhos.
-- Papai... é o anjo!
Erick riu e Ayla frisou a testa.
-- Certamente não sou um anjo... Eles se sentiriam ofendidos com a comparação, eu garanto... – ela resmungou.
-- Essa é Ayla, querida. Foi ela que nos ajudou a cuidar de você ontem.
-- Muito prazer. – Alice disse polidamente. – Você mandou meu sonho ruim embora ontem?
-- Digamos que sim... – Ayla se sentou na ponta da cama e tocou a têmpora de Alice. – Você parece bem. Preciso que me conte do que lembra.
-- Você vai me dar remédio? – Alice torceu o nariz.
Ayla riu
-- Você é bem esperta... Talvez eu precise dar sim. Mas antes tenho que conversar com você para descobrir qual o problema.
-- Não se preocupe, meu amor. – Erick disse para Alice. – Vamos ajudar a Srta. Ayla a tratar você. E eu vou estar junto, não precisa se preocupar.
-- Tá bom. – Alice disse obediente.
Ayla se levantou e foi pegar um pouco de água na cômoda perto da porta. Erick a seguiu.
-- Ainda não confia em mim? – Ayla disse, sonado entre uma pergunta e uma afirmação.
-- Confio, mas não significa que aceitarei qualquer coisa que me pedir, ou que não estarei com a minha filha e você o tempo todo.
-- Isso não soa como confiar... – Ayla retrucou com ironia.
-- Confiança é algo que se conquista. Em geral, pela convivência. – o conde disse sorrindo de maneira displicente. – Portanto, lave-se, por favor, se lave para que nós três possamos comer.
-- Eu disse que não precisa se incomodar comigo.
-- Não. Você não disse... – respondeu o conde dando uma piscadinha.
Por um momento, Ayla fitou-o surpresa, mas logo disse friamente.
-- Pois estou dizendo agora...
-- E eu estou te lembrando que não sou obrigado a aceitar todos os seus termos. Volto já! – dizendo isso, saiu.
Ayla bateu o pé no chão e disse em voz alta:
-- Esse homem é mais difícil do que eu pensava. Preciso fazer algo agora.
A moça fez o mesmo movimento no ar que fez na primeira noite, mas antes que o finalizasse, uma borboleta amarela e branca entrou no quarto e fez com que Ayla parasse o movimento imediatamente.
-- Porque não me deixa sair um pouco das regras? – ela perguntou à borboleta.
A resposta foi um lento bater de asas.
-- Sei que não seria para algo relacionado diretamente à Alice, mas... – de repente ela ouve uma voz meiga dizer:
-- Srta. Alice? Com quem está falando? – perguntou a criança curiosa.
-- Desculpe, querida... Estava divagando...
-- Não quer jantar conosco? – Alice perguntou chorosa.
-- Claro que ela quer, meu amor! – disse o conde que acabava de entrar no aposento.
-- Que bom! Que bom! – de repente a criança parou e ficou séria. – A Srta. Clara também vai comer com a gente?
-- Não, meu amor. Eu disse que ficaria com você e não jantaria. – disse o conde tocando a sineta.
Minutos depois o criado já tinha arrumado a mesa e servido o jantar quente. Os três se sentaram e Alice não parou de falar um segundo.
Naquela noite não ocorreu qualquer episódio, mas Erick percebeu que Ayla observava cada movimento de Alice com atenção. Ele chegou a flagrá-la contando o tempo de respiração da menina entre as falas.
Quando já era tarde e Alice estava quase adormecendo, o conde colocou a filha na cama e conduziu Ayla até o corredor.
-- Seu quarto ainda está preparado para você.
-- Não há necessidade...
-- Ayla... Se vai cuidar da minha filha, precisa estar presente quando um novo episódio acontecer. Se quer que eu confie em você, não será saindo de vista e voltando quando lhe for conveniente. – Erick disse seco.
Ayla travou a boca, mas não respondeu. Não podia julgá-lo. Ele estava sendo mais flexível do que ela poderia imaginar. Ela era uma estranha e ele não sabia o que de fato estava acontecendo e mesmo assim, estava disposto a deixá-la agir.
O silêncio de Ayla determinou a decisão do conde.
-- Espero que encontre tudo ao seu agrado. – Erick disse com cortesia e fez uma reverência. – Por favor, desça às sete e meia para o café-da-manhã. Estarei esperando na escada.
Erick não esperou uma resposta e se retirou.
Ayla ficou muito tempo olhando para o local onde perdeu de vista as costas musculosas do conde. Só então percebeu que seu coração batia forte.