A lenda de Ardória.

By ArmyWings36

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Lendas e flouclores devem ser respeitados, afinal, não sabemos até que ponto elas são verdadeiras. Ardória é... More

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Ardória!

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By ArmyWings36

       Quando mamãe me disse que teríamos que passar nossa viagem de formatura na antiga fazenda da família  me senti no mínimo  deslocada. Já não bastava tê-la como a diretora de minha escola, agora teria que aguentar três turmas do ensino médio escavando os escombros do que um dia foi um lugar próspero.

— Por que tinha que ser lá mamãe? Céus! Existem tantos lugares bonitos Brasil a fora e a senhora nos enfia numa pocilga que fica  entre Caravelas e lugar nenhum? - Pergunto espalmando minhas mãos sobre a bela mesa de carvalho antiga que mamãe mantinha em seu escritório.

— Alicia deixe de ser dramática. O casarão é antigo, porém ficou ótimo com as reformas. O local é  rico em histórias. Muitas trilhas, o farto rio. Ah! Minha filha, você e seus amigos terão muitas aventuras tenho certeza e claro será uma ótima economia para a escola.

— Não acredito que vai nos enfiar onde judas perdeu as botas para maquiar sua má administração da escola! - Dois segundos! Foi o tempo que levei para absorver e entender o impacto que sua mão causou em meu rosto.

— Não fale besteiras. Só Deus sabe o quanto me esforço para manter seu conforto e nosso padrão e isso as vezes pede por atitudes um tanto quanto controvérsia. - Minha mãe diz isso como se fosse algo trivial. Contornou a mesa e ao se aproximar de mim tentou depositar um beijo na evidente marca que sua mão havia deixado.

— Não se atreva! - Exclamo dando dois passos para trás. — Não jogue a culpa de sua sujeira sobre minhas costas. - Me retiro de sua sala com os olhos marejados e corro para meu quarto aonde me tranco por horas.

       No dia marcado e a contragosto me enfio na fila esperando o ônibus que nos levaria ao velho casarão da família. Fiquei um tanto quanto surpresa ao descobrir que pouco mais de 20 alunos tinha aceitado ir nesta viagem. 20 de um grupo de mais de 60 pessoas.

— Fala sério Ali, sua mãe pirou de vez. Não tem outra explicação. - Marta diz se ajeitando na poltrona do meu lado.

      Pensei que minha melhor amiga seria uma patricinha qualquer que minha mãe julgasse ser uma boa companhia, porém, Marta não é  nem de longe assim. Dona de uma personalidade forte, ela seria a típica ovelha negra da escola toda.

— Eu poderia te dar pelo menos uma explicação plausível, mais não quero apanhar novamente. - Digo mostrando como os dedos de dona Larissa ainda estavam presentes em minha bochecha.

— Definitivamente  sua mãe é  doida.

— Não deixe que ela te escute. - Respondi fazendo uma careta.

       Quatro longas horas dentro daquele ônibus fez um estrago considerável em minha bunda. Assim que estacionamos na frente do portão do imenso casarão um arrepio gélido percorreu minha coluna.

— Chegamos! -  Marta anuncia a plenos pulmões. — Já vou avisando que a suíte é  minha!

— Existem pelo menos umas 10 dessas então não se preocupe. ‐ Digo pegando minha mochila e a seguindo.

      Dou apenas alguns passos em direção ao portão e avisto a grande placa.

— Ardória! - Leio essa palavra com um peso enorme em cima de mim. Fiquei ali a encarando por um tempo.

— Vai ficar aí feito um dois de paus? - A voz de Marta me chama a realidade novamente.

— Vamos! - Disse apenas isso já passando por ela e seguindo os demais.

       Bem em nossa frente seguiam Roberta e Teobaldo, ambos da turma vizinha a nossa. Sem querer ouvi parte da conversa acalorado que mantinham.

— Deixe de contar mentira Roberta. Até parece. Bruxas! Nesse fim de mundo? - O garoto franzinho que ostentava um par de óculos extremamente  redondos falava e gesticulava ao mesmo tempo.

— Fala baixo seu nerd escandaloso. Estou te falando. Dizem que são três. Aí como chamam mesmo? - A morena a minha frente faz uma pausa e eu aproveito para apurar meus ouvidos. Estava realmente interessada no que ela tinha a dizer. — Ah! Lembrei. As mulheres do rio. Foi assim que minha avó as chamou quando tentou me proibir de vir.

— Acho isso tudo uma grande bobagem. - Teo agora a encarava de braços cruzados e com aquela cara que ele faz quando tem certeza de algo.

— Bobagem ou não, todas as famílias que possuem descendência indígena não permitiram a vinda dos seus.

— Você é  descendente e está aqui.

— Você sabe melhor que eu que tive que mentir para minha mãe  e falsificar a autorização. -  A garota agora o olhava de maneira firme. — Ao longo dos anos muitas mulheres perderam a vida  nesse rio e nos arredores e tudo isso começou aqui nessa fazenda e eu vou...

— Senhorita Silva! Vai continuar a contar suas estórias fabulosas ou irá se calar e me deixar explicar como as coisas irão funcionar? - Acabamos nos assustando quando mamãe lhe enterrompe.

       Roberta nem pediu desculpas apenas mordeu os lábios e se calou. Marta que assim como eu estava de orelha em pé e antenada na conversa dos dois me olhou cheia de perguntas. Eu apenas fitei minha mãe e esperei que voltasse a falar.

— Como sabem esta fazenda está em nossa família a muitos anos. Meu bisavô adquiriu as terras em 1890 e fez dela uma bela fazenda produtiva que foi passando de geração em geração. Infelizmente  como tudo nesse mundo, a crise se abateu sobre ela nos anos 60/70 e o local acabou ficando abandonado desde então. Recentemente  decidi reformar e utilizar o casarão. Tentar reviver seus dias de glória. Não existem muitas restrições enquanto estiverem aqui.  Contudo, devem tomar cuidado nas trilhas e sempre levar um guia com vocês. O Rio pode ser usado normalmente, ainda assim com moderação.

       Enquanto ela falava meus olhos focavam na casa do outro lado da cerca. Grande, sombria e muito imponete. Tão imponente quanto a nossa.

— Alicia?! - A voz de minha mãe parece tão distante. — Está me ouvindo? - Pergunta quase aos berros ao que apenas concordo com a cabeça. — Nossas terras terminam ali. - Diz apontando para a tal cerca. — A casa abandonada é  terminantemente proibida. Se forem pegos terão grandes problemas.

         Mamãe me olha com aqueles olhos inquisidores e percebi que falava sério.

— Eu disse que tem um fundo de verdade em tudo que vovó contou. - Escuto Roberta dizer enquanto cutuca Teo que apenas  negava com a cabeça.

— O casarão possui 10 suítes. Somos em  exatamente 23 alunos e três adultos. Por tanto serão devidos em duplas, com exceção  do último quarto que dispõe de quatro camas e...

— Roberta, Marta, Teobaldo e eu ficamos com esse. - Quando dou por mim estou de mão erguida e gritando isso no meio de todos. Mamãe me olhou  torto. Os outros três estavam cheios de perguntas, mas, estranhamente pareciam ter entendido minhas intenções e nada disseram.

— Muito bem! Se não houver reclamações dos demais, permitirei que fiquem juntos.

       Ninguém se manifestou de forma contrária, então assim foi feito. Assim que entramos no casarão tivemos uma visão deslumbrante. O imenso Hall de entrada era de tirar o fôlego até mesmo para mim. As paredes eram adornadas com quadros de membros de minha família. Quadros esses que se misturavam com os de paisagens perfeitamente alinhados. A grande porta de madeira pela qual havíamos acabado de passar era ladeada por duas grandes janelas que nos davam uma boa visão do exterior.

        A escadaria a nossa  frente era igualmente imponente e seus balaústres perfeitamente desenhados que seguravam o corrimão de madeira davam uma majestosa visão para o andar de cima. A mesinha de madeira com seus pés perfeitamente desenhados ostentava em cima de si um belo e antigo telefone vermelho antigo. Detalhe esse que chamou muito minha atenção.

— Antes que subam e se acomodem, precisam saber que se seguiram por esse corredor encontraram a cozinha, a sala de estar e a de jantar. Ali. - Disse minha mãe apontando para uma pequena porta na lateral da escada.
— Fica a entrada para o porão. A área não é  proibida,  porém, era aonde se mantinham os escravos e não foi reformada, o que o torna perigoso. Peço  que não desçam lá. Daquele lado fica a biblioteca. Podem usa-la sempre que quiserem. Formem duplas e venham organizadamente até mim. Vou distribuir os quartos.

— Nós  podemos subir? - Pergunto apressada.

— Aqui. O quarto de vocês é  o terceiro do lado esquerdo. - Mamãe me respinde séria  e finalmente me da espaço para que suba acompanhada dos demais.

       Assim que estamos longe de sua visão, Roberta começa a falar.

— Que história é  essa de ficarmos juntos? - Pergunta na lata.

— Só achei sua conversa interessante e queria saber mais. Isso é  algum crime por acaso? - Respondo em igual tom.

— Se tem algo a agregar então diga. - Roberta diz sentando-se em uma das camas. — Eu escolho essa.

— Ainda não sei ao certo se tenho algo que possa te ajudar. - Caminho até a cama do meio e me aproximo da janela. Ao olhar por ela percebo que ficamos exatamente de frente para a casa vizinha.

— Sério amiga. Se não te conhecesse ia achar que está ficando doida de vez. - Marta fala jogando seus pertences na cama ao lado.

— Que maravilha. Eu fiquei com as três sem noção da escola. - Teo diz se jogando na única cama que ficava do lado oposto às nossas.

— Fica quieto que se não fosse pela Betinha  aqui você seria o saco de pancada dos valentões da escola. - Marta fala sem filtros algum.

— Betinha?! Ficou doida menina?

      A discussão  teria continuado se a senhora Lola, nossa professora de português não tivesse nos chamado para descer e lanchar.

      A cozinha era enorme. Um verdadeiro exagero.

— Uau esse lugar grita riqueza. - Teo comenta admirando o "pé direito alto" do lugar.

— Para mim não passa de algo conquistado as custas da vida dos outros. - Comento me sentando num dos últimos lugares disponíveis naquela imensa mesa.

      Ali sentada percebi que mal conhecia o passado de minha própria família. Claro que já tinha ouvido muitos causos sobre os tempos de glória de Ardória, mas, algo sempre me parecia fora de lugar. Mal toquei na comida. Não sentia fome. Quando fomos dispensados segui para o grande pátio traseiro da casa. Dali podia ver as grandes montanhas que nos cercavam, dei alguns passos para os fundos da propriedade e percebi o grande bosque. Medo! Sentimento estranho que me tomou  enquanto caminhava por entre as árvores.

— São lindas não acha? - A voz de Marta me assusta muito. — O que você tem hoje baixinha?  Esta mais estranha que o normal.

— Meu pai nunca permitiu que eu viesse aqui. Lembro-me de presenciar brigas horríveis entre os dois.

— Vai ver ele não queria que te acontecesse o mesmo que aconteceu a filha dos antigos vizinhos. - Roberta diz surgindo de trás de uma imensa árvore a beira do rio.

— Para de palhaçada Betinha. - Teo a repreende.

       Me aproximo das águas do rio e nelas toco com cuidado. Sentia que precisava saber mais.

— Roberta! Você pode me contar o que sua avó lhe disse? - Pergunto a fitando.

— O que exatamente você quer saber?

— Tudo!

      Sendo assim, nos sentamos em roda em algumas pedras que tinham ali.

— A muitas gerações aqui morava um fazendeiro muito próspero, porém o homem não era flor que se cheirasse. Senhor Abílio tinha três filhos. Sendo Maurício seu caçula e de longe o mais amado por ele.

— Abílio tinha escravos para o serviço pesado de lida na roça. Para o casarão e  os trabalhos mais delicados, usava as mulheres indígenas que aceitavam e se submetiam aos seus caprichos com a promessa de poderem utilizar do rio e ficarem com as sobras da colheita. Aquilo que não servisse para ser vendido era dividido entre as indígenas.

        Aqui Roberta fez uma pausa e olhou para o rio. Séria, ela suspira e continua.

— Um dia Maurício sumiu. Seu Abílio em desespero mandou que torturassem  alguns escravos que segundo o capataz, tinham sido os últimos a verem o menino naquela manhã. Como nada de útil  havia sido dito pelos infelizes, Abílio mandou que se organizassem em grupos e varressem  as redondezas até que encontrassem  o pequeno.

— E encontraram? - Marta de repente pergunta.

— Deixa ela continuar. - Teobaldo faz sinal para que se cale.

— Depois de horas o encontraram do outro lado,  nas margens do rio. Sem vida. A imagem grotesca do que um dia tinha sido seu filhinho  amado, deixou o velho senhor fora de si. O homem voltou ao casarão acusando uma jovem indígena.

— Mais porque? - Perguntei esganiçada e indignada.

— Do outro lado eram terras da tribo a qual ela pertencia. Ficavam mais abaixo, os Kaimbés eram tranquilos se não fossem provocados.

— O que ele fez? - Marta questionou e pude sentir a angústia em sua voz.

— Mandou que amarrasem a mulher e seguiram  até onde jazia seu filho. Enquanto espancava a pobre coitada, indagava por que ela tinha feito aquilo. Vendo o desespero da jovem, sua mãe e irmã mais velha tentaram defendê-la. Em sua fúria cega, Abílio  e seus capangas afogaram as três e abandonaram seus corpos no rio.

— Que horror! - Levo minhas mãos a boca e um nó  se forma em minha garganta ao pensar que um antepassado meu fora capaz de algo tão abominável.

— O que isso tem haver com a lenda das bruxas? - Teo questiona.

— Acontece que esse casarão passou a ser assombrado. Dizem que a tribo Kaimbé amaldiçoou as terras. O fato é  que todos os anos, entre junho e novembro são ouvidos tambores que anunciam a todos que as três mulheres do rio estão presentes e caminham entre nós. Segundo minha avó elas voltam atrás de vingança pelo sangue inocente derramado. Elas vagam pelo rio levando os desavisados a morte. Seu Abílio  e  os homens que o ajudaram foram os primeiros.

— Para de falar besteira. Bruxas fantasmas e vingativas... Até parece. - Teo começa a se levantar, mas eu o faço sentar novamente.

— Você falou da família vizinha...

— Sua fazenda ficou vazia depois da morte do Senhor Abílio. Ninguém tinha coragem de passar nem na frente dela. Um dia uma família comprou as terras em frente. Senhor Roberto, Dona Ana, suas duas filhas, Amália e Luiza e o caçula João.  Eram uma família próspera e feliz.

— Algo me diz que isso não durou muito. - Marta comenta segurando os próprios braços como se quisesse afastar o medo que sentia.

— Senhor Roberto mesmo avisado que não deveria usar do rio ou pisar nessas terras, não levava nada disso a sério. Dizia que era apenas uma jogada para aumentar os valores sa terra, já que fazia anos que estava a venda e ninguém se interessava.

— Não entendo como que uma história horrenda dessas pode aumentar o valor de qualquer coisa. - Comento tentando entender o todo.

— A filha mais velha, Amália havia mudado-se para a cidade e lá conheceu um jovem por quem veio a se apaixonar. Ambos então regressaram a Ardória para que Augusto oficializasse o pedido de casamento. Porém na primeira  noite deles aqui os tambores foram ouvidos e no dia seguinte constataram que a jovem Amália havia desaparecido. Senhor Roberto, mesmo sob os protestos da filha mais nova que jurava ter visto a irmã ser levada por três mulheres na noite anterior, ordenou que vasculhassem tudo e para infelicidade de todos, no final daquela tarde a encontraram nua e morta do outro lado do rio, estranhamente próximo do local aonde as três índias haviam sido assassinadas. Desde então a casa ao lado está abandonada. Vovó era comadre de dona Ana e conheceu a pobre Amália.  Por isso acredito em tudo que ela disse.

      Estávamos inebriados com o que Roberta havia acabado de nos contar, nem tínhamos percebido que já estava anoitecendo. Me senti completamente engolida pela escuridão que começava começava nos cercar.

                 "Pow! Pow! Pow!"

— Que merda é  essa? - Marta grita e corre em nossa direção quando o som característico de tambores adentra aos nossos ouvidos.

— Melhor voltarmos. - Roberta sugere e aceitamos sem questionar.

    Caminhávamos quase que correndo de mãos dadas. Até o Teo estava amedrontado.

                   "Pow! Pow! Pow!"

      Aquilo vinha ritmado e agora mais constante. Avistamos as luzes da imponete casa e suspiram os aliviados.

      Quando passamos o arco da imensa porta nos deparamos com mamãe.

— Já ia sair atrás de você. Me ouça atentamente mocinha. Não quero você andando lá fora a noite. - Seus olhos azuis agora estavam mais escuros que o normal. — Aliás, não quero nenhum de vocês lá fora. Subam e se banhem. Depois desçam para jantar.

        Não ousamos a contradizer. Depois do jantar houve uma contagem e depois, mamãe Ordenou que todos rumassem para seus aposentos.

— Só  pode ser uma brincadeira de mal gosto. Alguém estava nos ouvindo e fez aquilo. - Teo estava em evidente negação.

— Isso não explica aquilo. - Digo observando o exterior por detrás das cortinas. Os três se juntaram a mim.

— Puta merda! O que é  aquilo? - Marta tremia ao se segurar em mim.

     Do lado de fora, sentada na cerca podíamos ver uma figura que se assemelhava a uma jovem de cabelos negros, tão longos que quase tocavam o chão. Ela caminhou em direção a árvore gigante na divisa dos dois terrenos. A vimos entrar atrás da mesma, porém ela não saiu.

— Pra onde ela foi? - Roberta perguntou.

— Aí credo! A-ali! - Com a mão trêmula, Teo  apontou para o alto e tivemos a visão mais apavorante até o momento.

      Três mulheres pálidas, nuas, que andavam em volta da grande árvore e aos poucos iam flutuando até a copa da mesma e ali se penduraram e fitavam as janelas do nosso casarão.

— Elas sabem que estamos aqui. - Acabei dizendo isso sem pensar e nesse exato momento  a que aparentava ser a mais velha delas farejou o ar e olhou diretamente para mim.

       Senti meu corpo inteiro amortecer e a última coisa que lembro foi de ver Roberta em cima de mim.

       Acordei com os raios fortes de sol batendo em meus olhos. Tentei abri-los porém estavam tão pesados que acabei fazendo um esforço imenso. Uma fretinha, foi tudo que consegui a principio. Vi mamãe. Aparentemente  adormecida sobre mim. Já não estava em meu quarto.

— Aonde estou? - Assim que pronunciei essas palavras senti minha garganta seca e dolorida.

— Aí graça a Deus! - Mamãe ergue a cabeça e acaricia meu rosto.

— Água... Preciso de água. - Me esforço para falar.

— Marta meu anjo, você pode pegar um pouco?

— Claro. - Escuto a voz de minha amiga e a busco com os olho. Logo a vejo trazendo um copo consigo. — Aqui! Devagar.

       Com calma consigo finalmente me sentar e beber a água aos pouco.

— Precisa ir bem devagar. - Roberta estava sentada na soleira da janela fitando o nada.

— Quanto tempo eu...

— Quase 48 horas. Você apagou. - Minha mãe diz me abraçando.

— Bom... Isso depois de atacar a nós  três e tentar sair de casa quando viu aquelas louca. - Teo parecia realmente  assustado.

— Já disse que vocês alucinaram. Foi só isso. Uma alucinação coletiva. - Apesar dela falar aquilo com tanta convicção, eu sabia que era mentira. Só não sabia até que ponto minha mãe estava alheia às bruxas de Ardória.

       Mamãe não permitiu mais que fossemos até o rio. Nosso ônibus só voltaria dentro de quatro dias e até lá Devíamos estar dentro de casa antes do anoitecer.

       Todas as noites, nós quatro nos reuníamos na biblioteca as escondidas.

— Quanta velharia. - Roberta comenta ao ver as fileiras e livros perfeitamente alinhadas.

— Se tivermos sorte, acharemos uma resposta no meio dessas velharias. - Teo comenta pegando um exemplar de capa dura na prateleira superior.

       Livro após livro, vamos lendo e desvendando coisas sobre o passado das terras a nossa volta. No sexto dia o barulho dos tambores estavam insuportáveis.

                  "Pow! Pow! Pow!"

— Está alto demais! - Escuto uma menina da sala 44 gritar com as mãos nos ouvidos.

— Com certeza é  algum nativo querendo nos afugentar. - Mamãe estava em negação.

        Naquela noite mal dormimos.  Os tambores cessaram ao amanhecer. Mamãe continuava trancada em seu quarto.

— Ahhh!

       O grito agudo vindo do andar inferior acabou arrancando a todos de suas camas. Corremos escada a baixo e demos de cara com Lúcio apontando para a imensa porta entreaberta.

— Desimbucha logo Lúcio. - Escuto o senhor Moisés dizes sacudindo o mesmo.

— Isso está saindo do controle. - Comento andando ate os dois e me pondo entre eles. — Solte ele. - Tiro as mãos de nosso professor dos ombros do rapaz. — Me diga o que aconteceu.

— No rio... A... a Laura. Ela está... Morta.

       Caos. Foi no que tudo se transformou. Corri em direção a margem do rio aos tropeços. Só paro quando a vejo. Nua, roxa e sem vida.

— Não toca nela! - Roberta diz me segurando. Só então percebo que estou gritando escandalosamente. — Vamos voltar para dentro.

        Arrastada! Foi assim que cheguei no velho casarão.

— O que diabos está acontecendo aqui? Por que estão todos chorando? - Mamãe  aparece finalmente descendo aos gritos.

— Temos uma aluna morta. Aonde você estava? - Senhora Lola pergunta segurando seus braços e a sacudindo.

— Não, não. Isso é impossível. Impossível. São só estórias  para afugentar curiosos e manter crianças sob controle.

       Nunca havia visto minha mãe daquele jeito. Assustada e encurralada.
Nos trancamos na biblioteca e começamos a vasculhar. Horas e horas a fio. Acredito que já estava anoitecendo quando Teo se põe de pé. Olha fixo nas páginas a sua frente.

— É isso! Sangue derramado deve ser restituído.

— O que? - Marta pergunta esfregando os olhos.

— Aqui! A lenda local. A tribo Kaembé é conhecida por suas crenças em entidades e espíritos da floresta. Eles possuem um ritual antigo.

"Οφθαλμός αντί οφθαλμού δόντι αντί δοντιού. αίμα για αίμα."

— O que isso quer dizer? - Pergunto observando as palavras difusas.

— Olho por olho, dente por dente. sangue por sangue. - Roberta traduz.

       Eu sabia exatamente o que aquilo queria dizer. Meu sangue derramou o sangue inocente daquelas pobres mulheres. Agora precisava de perdão.

               "Pow! Pow! Pow!"

       Mais alto que nunca. Os tambores incessantes. Ensurdecedores.

— Espera! Não! Alicia volta aqui. - Escuto os gritos de Marta atrás de mim enquanto corro em direção ao som e ao rio.

        Quando finalmente  chego, as vejo escalarem as árvores numa velocidade aterradora e saltarem de uma para outra com uma facilidade assombrosa.

— Devolva menina. Devolva o que me pertence. - A voz melodiosa da que aparentava ser a mais jovem preenche meus ouvidos.

— Sabemos que está aí. Resistir é  inútil. - A outra diz e então percebo que meu corpo já não me pertence. Flutuou até elas mesmo não desejando isso.

— Bela de fato. Eu também era. - A mais velha tocou meu rosto e pude sentir o cheiro da morte quando o fez.

       Minha voz tinha sumido e minhas lágrimas congelaram antes que pudessem rolar por minha face.

       Não resisti quando as três me despiram. O toque gélido daquelad mãos cadavéricas em minha pele quente me causavam repulsa e ainda assim eu não conseguia resistir.

       Sou guiada para as águas e voluntariamente afundo nelas. Era o fim.

— ALIE! NÃO! LEVE A MIM... SÓ  A MIM.

       As mãos de minha mãe me afagam  e outras duas me puxam para fora.
Nenhum som... nada.

             "Sangue por sangue!"

Obsvação: o conto possui 3803 palavras.

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