Prólogo
Se há uma vontade, há um caminho (Palavras não ditas)
Sua palma se contraiu ligeiramente, seus dedos tocaram a mão morna de Mei Nian Qing.
Por um instante, o pensamento que passou pela mente de Jun Wu, é que ele nunca devia ter saído do Monte Tong Lu após sua derrota.
Mas, ao acariciar entre as orelhas de Baobei com sua outra mão, ele se lembrou da razão de ter abandonado sua prisão.
Foi durante um eclipse lunar.
Por um breve momento, o Monte Tong Lu se abriu.
Por aquela pequena e discreta abertura, um homem passou por ela e encontrou a noite mais escura, a lua eclipsada cercada por estrelas longínquas.
Jun Wu ainda lembrava, não fazia muito tempo.
Ele queria encontrar seu lugar no mundo, quando saiu do monte e sentiu o cheiro de chuva no ar.
— Mei Nian Qing... Ficamos selados apenas nós dois, por três anos. Se algum dia deveu algo para mim, considere que está pago... Quando saí do Tong Lu, eu queria ficar sozinho. Esse foi meu erro...
"Convidar ainda que sem querer um certo cultivador, esperando por três dias ele aparecer para tomar chá." — O pensamento de Jun Wu soprou, como um segredo vergonhoso.
— Não é algo pessoal minha recusa, apenas não quero cometer mais o mesmo erro.
E o modo de dizer, soou até sereno, quase solene.
Mas... Mei Nian Qing já não tinha ouvido discurso semelhante? Tão pior quanto ouvir "não é você, sou eu" ou "somos melhores como meros amigos".
Jun Wu segurou a mão do Sacerdote em concha, olhando-o nos olhos com uma desculpa prévia no olhar.
Mei Nian Qing baixou de pronto seus olhos, tentando esboçar um sorriso discreto, sua resignação era um pouco triste.
— É a segunda vez que recusa a minha companhia... Sendo assim, não vou tornar a oferecer meus favores.
— Você... Queria mesmo ficar sob a sombra de outra pessoa que me traiu? Estou começando a pensar que nasci sob o karma da solidão, talvez eu apenas precise me acostumar... Em vez de lutar contra isso.
Sentiu o carinho de Jun Wu em sua mão e não conseguiu mais olhar para ele, o Sacerdote encarou seu copo de vinho intacto.
— Alteza... Nunca ouvi tolice maior. — Mei Nian Qing lamentou com uma suave ironia na voz.
Suas mãos se desconectaram devagar, quando tão suavemente quanto se uniram e Jun Wu também abriu um discreto sorriso tão falso quanto um dia com trinta horas, não havia qualquer autenticidade no gesto.
Não era decididamente um sorriso, mas sim uma tentativa vã.
Sem saber no que acreditar depois de tudo, dois séculos de mentiras, de erros irreversíveis, de acúmulos em fracassos.
Ao fazer menção de abandonar a cadeira, Baobei escalou seu hanfu subindo por seu tórax e subiu em um de seus ombros.
Mei Nian Qing não se moveu, mas tornou a erguer o olhar pressentindo a despedida.
E mesmo depois, quando encontrou-se sozinho naquela taberna, o Sacerdote ficou por algum tempo imóvel... Fitando meditativo seu copo de vinho, um gato tinha mais sorte do que ele.
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Arco 6 Capítulo 323 Um recomeço sem você na mítica província de Sichuan
Cinco meses depois
(desde o dia 3 de dezembro)
Maio do ano seguinte
Naquele ano as cerejeiras floresceram tardiamente, era como se a primavera tivesse despertado apenas em maio.
Mas, foi uma nevasca que determinou onde Jun Wu terminaria por se instalar, na esperança amarga de esquecer.
Nem ele pensou que fosse ficar em Sichuan, nas regiões de montanhas.
O inverno nem tinha de fato chegado em dezembro, meses antes, quando a forte queda de neve fez o Daozhang se abrigar por quase duas semanas no Mosteiro Shanyin à beira do caminho.
Evidente que Jun Wu não tinha qualquer interesse na vida monástica e aqueles monges provavelmente tinham tirado suas próprias conclusões sobre o Daozhang montado num cavalo exausto, na companhia de um menino.
Ao olharem para o garoto sentado na frente do corpo do viajante alto, forte e taciturno, de imediato pensaram que ele era filho do homem e nem se quer questionaram seus pés descalços, limitando-se a supor que o pré adolescente tinha perdido as botas no caminho, em meio aquela tempestade gelada e infernalmente branca.
Então, de pronto os monges abrigaram os dois viajantes e o cavalo cansado de pelo negro e arrumaram botas para o menino descalço, que tinha estranhas marcas no pescoço.
Tendo sido obrigado a viver durante quase metade de um mês no mosteiro, Jun Wu se integrou a rotina, estabelecendo o início de uma amizade com os moradores daquele local quase sempre silencioso.
Com sua lábia serena, sua aparência que despertava confiança e simpatia, não foi difícil conseguir uma tapera para estabelecer morada, antes do inverno terminar, Jun Wu tinha se tornado morador nas montanhas da província de Sichuan, junto de Tang Shi.
A tapera onde moravam ficava próxima ao mosteiro, ao lado de uma densa floresta de bambus, por conta da convivência com um dos monges que fazia voto de silêncio, Tang Shi começou a aprender a arte de fazer cestas de bambu manualmente.
Desde que tinha sido tomado como suposto "filho" do Daozhang, não tinha mais usado sua forma de gato pequeno e preto, salvo em raras ocasiões, mas não apenas para manter as aparências.
Tang Shi não gostava de ver Jun Wu tão calado, tão trancado nos próprios pensamentos, por conseguinte, ainda no início da jornada, havia decidido assumir a forma de menino para poder tentar conversar e distrair o Daozhang de coração partido.
Era uma manhã fresca de primavera, ensolarada.
Ramas de cerejeira e flor de maçã pendiam por toda parte no cenário bucólico.
Jun Wu saiu da tapera pretendendo ir até o vilarejo na estrada debaixo, ele sempre acabava sendo requisitado para vários tipos de trabalho nas aldeias da região, vivendo como humano ao invés de deus menor, condição que fazia questão de manter em segredo.
Mais uma vez ele era apenas o Daozhang Jun e onde quer que fosse, ninguém sabia nada a seu respeito, a não ser o trivial.
Mal saiu da tapera, com um cesto preso nas costas, o antigo chapéu em sua cabeça, Tang Shi veio correndo em sua direção.
— Daozhang! Daozhang Jun!... Eu vi um panda! Eu nunca tinha visto um tão de perto!
— Perto? — Jun Wu lançou um olhar para a floresta de bambu ao lado da tapera, introspectivo. — Você esperou o inverno todo para poder ver um... Mas, não tente alimentá-los. Seria um problema se tentassem invadir a tapera em busca de mais.
— Não, não... Eu só fiquei olhando, juro! Era um adulto bem grande... Mas... —Tang Shi levou as mãos atrás de si, observando melhor o Daozhang. — Vai a algum lugar?
— Não vou muito longe... Vou nas aldeias debaixo, tenho um trabalho para fazer e vou trazer alguns mantimentos.
— Eu posso ir? Prometo não atrapalhar.
Não era muito comum Tang Shi querer estar no meio de outras pessoas, eram escassas as vezes que descia para outros vilarejos e quando esse evento raro ocorria, o menino escondia as marcas de estrangulamento em seu pescoço com um lenço de seda.
— Tang Shi está curioso para ver outras crianças? Deve ser ruim ficar o tempo todo ao lado de adultos. — Jun Wu observou, seu semblante sério, tentando entender. — E eu não sou uma companhia muito boa, sei bem disso.
O menino parecia sem jeito, Tang Shi não se considerava bom em se comunicar, era preferível ser um gato, mas ele apenas usava a aparência de Baobei quando ia dormir na coxia com o cavalo Tian Shu.
Jun Wu deu de ombros e afagou por segundos a cabeça do garoto.
— Se quer ir... Venha. — O Daozhang suspirou, a calma morta na voz. — Mas, não espere algo emocionante.
Tang Shi apenas acenou e afirmou num movimento ansioso de cabeça, ele tirou a faixa de seda comprida e macia do bolso das vestes e amarrou do jeito que costumava em torno do pescoço, escondendo parte dela dentro das roupas.
Os dois saíram juntos deixando o largo da tapera, a floresta de bambus para trás.
Descendo o caminho pelas escadas de pedra entre a vegetação, havia o som de colibris brincando entre os galhos das árvores mais altas, disputando o território primaveril com as aves do paraíso.
O garoto fantasma seguia logo atrás, saltitando os degraus irregulares com suas botinhas de veludo que iam até as canelas.
A primeira aldeia que se avistava ao descer parte do caminho na encosta era Xia Po, conhecida por sua produção de ervas para chá e seu licor artesanal e havia a aldeia nomeada como Fengdie, que ficava quase junto ao sopé da montanha, maior do que a aldeia de cima e mais povoada, conhecida pela gastronomia e pelo comércio local.
Apesar do monastério que se localizava sobre as suas aldeias, havia alguns templos divinos na região, alguns moradores guardavam intolerâncias no coração, por alguns monges serem tibetanos.
Naquela manhã Jun Wu estava trabalhando com um conhecido da aldeia Xia Po enquanto Tang Shi foi até uma casa de chá, os dois estavam construindo um poço e a alguns zhang de distância da onde estavam, Jun Wu avistou uma outra construção sob uma pequena colina.
Na verdade, não pretendia comentar sobre ela, porque não era dado a jogar conversa fora, mas Kuen Gan que sentou-se ao seu lado num instante que estavam fazendo um intervalo, estava atento a direção de seu olhar.
Ele sorriu e encaixou uma nêspera em sua mão, tendo a parte de cima do hanfu amarrada na cintura, apenas trajando uma blusa bordada fina sem mangas, um pouco amarrotada.
— Daozhang também reparou? Sinto até o aroma da madeira só de olhar.
— Outro templo divino? — Jun Wu desdenhou levemente. — Já não há o suficiente entre as trilhas da montanha?
— Que desdém, Daozhang... — Kuen Gan riu, encarando preguiçoso o céu. — Nunca nem vi você entrando para largar alguma prece ou oferenda em qualquer templo que fosse... Mas, ouvi dizer que esse deus... É muito generoso atendendo preces e há muitos templos sendo construídos em nome dele em toda parte.
Jun Wu, por sua vez, não estava minimamente interessado, ele já ia mordendo a nêspera madura e Kuen Gan completou como que para o vento:
— O deus da Água Púrpura...
Ao ouvir a voz do rapaz soprar casualmente, Jun Wu se deteve e olhou num frio soslaio para ele.
— Kuen-shi, o que você disse?
— É como chamam esse deus, pelo que eu soube... Por que o Daozhang está me olhando como se fosse me dilacerar e ferver os meus órgãos antes de comer?
No geral Kuen Gan era jovial e brincalhão, contudo Jun Wu devolveu a nêspera para ele num gesto simétrico e seco, se erguendo da onde estava sentado:
— Já não descansamos demais? Volte ao trabalho.
O rapaz lançou um olhar estranho, franzindo o cenho, mordendo a nêspera suculenta sem pressa de levantar.
Dando os ombros, sob um fitar fulminante de Jun Wu, teve que se levantar ao retrucar para si:
— Que Daozhang mal humorado... Caramba.
Notas de rodapé: Embora a maior parte dos lugares na fanfic pertençam a novel de Tian Guan Ci Fu ou sejam criados por mim (tal como Zhen Yan) sendo completamente fictícios, a Província de Sichuan de fato existe e fica à Sudoeste da China, sua capital é Chengdu.
Jun Wu foi para a parte de montanhas que faz fronteira com o Tibete, eventualmente você vai encontrar alguma menção a pratos típicos da região ou outras curiosidades diversas.
Personagens nessa fase do enredo (como os monges e Kuen Gan), lugares dentro da montanha (como os vilarejos) e certos costumes também não tem qualquer veracidade, ok? Foram imaginados por mim (e como gosto disso!).
Acho que essa imagem dá uma ideia de como é o Kuen Gan ^^"