mil milhas [taekook]

By jeonsun

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[CONCLUÍDA] Jungkook sabe que olhar para Taehyung é arriscado; sabe que, no momento em que seus olhos se toca... More

you got me wrong and i played along

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By jeonsun

Jeongguk.

Eu não quero os seus olhos. Não quero. Juro que estou tentando me convencer de que não os quero. Por isso reitero a minha falta de vontade: para transformá-la em realidade, para manifestá-la em nosso mundo como a única verdade cabível. Mas é difícil, muito difícil, praticamente impossível inverter a tal ponto a ordem das coisas — beira o impensável, e, a esta altura, acho até que se transforma em estupidez. Afinal, como posso não querer os seus olhos quando eles são tão insistentes? Como posso ter sucesso em me esquivar deles se eles não param, nem por um instante, de buscar e puxar os meus?

E eu sei que tenho culpa. Não fui nada sensato ao vir para esta festa hoje. Eu deveria ter imaginado que, num momento ou noutro, você iria aparecer. Esta situação era completamente evitável, mas eu nunca ajo como deveria agir. Na maior parte do tempo, na verdade, não contenho a mim mesmo. Mas estou me esforçando — talvez não tanto como poderia, mas juro que estou. Então eu vim para esta festa e prometi a mim mesmo que vou me segurar, que não vou te olhar, porque sei o que acontece quando te olho. Sei, sei mesmo, só eu sei, e sei melhor do que gostaria de saber. Só não sei se estou pronto para enfrentar o que acontece quando é você quem me olha; quando são os seus olhos, estes novos olhos que eu não quero e que temo conhecer, que sustentam e envolvem os meus.

Eu não te olhei diretamente desde o instante em que você chegou justamente porque você está me olhando, e, agora, te olhar enquanto você me olha se tornou um perigo. Sei que se você ouvisse o que eu penso me acharia idiota, mas estou falando sério. Uma troca de olhares, neste momento, é um verdadeiro risco. Aliás, menos do que isso já é um risco. O fato de estarmos no mesmo lugar é arriscado o bastante. E eu não preciso te olhar para saber que você está me olhando. As pessoas não mentem quando dizem que é possível sentir o peso de outros olhos quando depositados sobre a sua pele. E eu sinto o peso dos seus. Sinto, sinto o peso, mas também o vejo, e tal como o vejo, eu vejo você. Contudo, vejo você e vejo o seu peso sem de fato vê-los, porque a visão humana tem uma capacidade curiosa que às vezes se desapercebe. Eu te vejo como vejo o meu nariz — sob uma sombra, sob uma tentativa constante de esquecimento. Sei que você não sai daqui, sei que está bem marcado e recordado em mim, assim como tenho plena consciência de que você está apoiado numa parede a poucos metros de mim, vestindo a sua jaqueta jeans de sempre, calças pretas e sapatos brancos. Mas tento me confortar sob a ignorância da sua presença. Assim eu me privo de enlouquecer — ou ao menos finjo que atraso o processo.

A festa está animada, mas tranquila, tão tranquila que nem sei se podemos chamá-la de festa. Talvez fosse preciso mais algumas dezenas de pessoas para denominá-la de tal forma, mas também não me parece adequado aludir a este amontoado de gente como uma simples reunião. Ao meu ver, não somos mais do que existências mútuas e individuais, vários eus agrupados numa mistura heterogênea. Não me permito olhar para você, mas olho ao redor e, em volta, vejo os meus e os seus colegas, os seus e os meus amigos. E vejo também que, ainda que conversem entre si, que riam, que se olhem, que bebam e que fumem para transcender, eles não saem de si mesmos. São fora e são dentro. Incapazes do abandono próprio.

Não sei se me faço entender. Todos estão aqui ao mesmo tempo em que não estão. Todos falam e escutam, mas continuam a guardar um barulho complicado em sua mais recôndita intimidade. Cada pessoa é uma, e em cada uma há um infinito. Sempre tento me lembrar disso. Sempre tento ter bem claro em minha consciência o fato de que cada pessoa é complexa. E a possibilidade de olhar para você para desvendar as nuances da sua infinita complexidade me é uma tentação — a pior delas. Mas não posso me deixar levar por tentações, não mesmo, sobretudo hoje, neste dia de riscos. Preciso ouvir a minha própria complexidade, e ela está me dizendo para te deixar em paz. Está gritando comigo, me alertando sobre quão injusto eu seria se olhasse para você.

Sei que o modo com que me expresso é dramático, sei que faz com que pareça que jamais tenhamos trocado um olhar. A verdade nós sabemos: já nos olhamos muito, demais, mais do que é razoável. E, neste momento, depois do que aconteceu na última vez em que estivemos juntos, um olhar a mais seria motivo de saturação, uma extrapolação de limites, a gota d'água que falta para que a ordenação que ainda impera entre nós transborde. Na verdade, acho que já estamos transbordando. A gota que brotasse do contato dos seus olhos com os meus levaria a um rompimento de barragem, a um vazamento. E eu não quero vazar... não quero... não posso. Não quero porque não posso.

Então, por favor, colabore comigo e pare de me olhar. Sinto que estou trabalhando sozinho, e, quanto mais você me olha, mais parece que me esforço em vão. Já aceitei a culpa que carrego, sei que não estaríamos na iminência de uma grande confusão se não fosse por mim e pelos meus impulsos idiotas. Mas estou controlando a minha impulsividade, estou retendo as minhas paixões. Ainda assim, é difícil carregar esta culpa, culpa que se torna cada vez pior porque você não me ajuda. Eu estou fazendo o possível para não te olhar porque não quero estragar tudo — porque já estraguei coisas demais nos trazendo até aqui. Então repito que não posso colocar os meus olhos em você. Mas você não para de colocar os seus mim. Acho que preciso me afastar. Preciso de tempo e de espaço.

Com a vista propositalmente embaçada para não ver mais do que um relance seu, eu me levanto do sofá. Fico de costas para você e começo a andar, a me esgueirar por entre as pessoas que preenchem a sala. Olho para várias delas em busca de alguma distração. Algumas retribuem os olhares, mas estes me parecem tão vazios em reciprocidade que não me causam sensação alguma, então abro mão deles. Decido olhar para as paredes, para os quadros espalhados sobre elas, para o mofo nas bordas da pintura maltratada pelo tempo. E quanto mais para dentro da casa eu caminho, mais eu olho para coisas e objetos em busca de um alheamento confortável. De repente estou na escada, subo os degraus com a mesma atenção distraída, focalizo todos os meus pensamentos em contar cada passo que dou — porque assim eles se ocupam com alguma coisa, com qualquer coisa que não seja você.

Mal me dou conta de que já estou no segundo andar, na porta do último quarto do corredor. Como ela está aberta, suponho que não há ninguém no quarto e avanço escuridão adentro. Cercado pelo breu, a minha audição parece se aguçar. Eu encosto a porta do quarto para que os sons da festa fiquem para trás, e eles ficam. A música vem abafada aos meus ouvidos, e a minha vista não percebe mais do que aquilo que a cortina na porta da sacada do quarto, entreaberta à passagem de luz da rua, permite. Vejo a silhueta da mobília: meio guarda-roupa aberto, meia-cama desarrumada, meia-escrivaninha repleta de livros. Do escuro eu parto para a sacada. Passo pela cortina e empurro o vidro da porta para o lado. A música da festa volta a soar mais alta, mas não muito. O que mais me chama atenção é o som do vento, da rua, da cidade que, morta e viva, não sabe a hora de parar.

E também não o sabem os meus pensamentos. Mesmo sozinho, sou como todos os outros, incapaz de sair de mim mesmo, inapto a deixar as minhas preocupações de lado, uma carne ambulante que não sabe viver no aqui e no agora. Fico olhando feito um louco para a lâmpada do poste na rua, a mesma que é a única a iluminar os contornos deste quarto. Olho por tanto tempo que manchas surgem na minha visão. Passo os olhos para os entornos do bairro e está tudo estampado, cada vez menos visível conforme pisco os olhos. Eu devo mesmo ser muito obcecado por você, porque começo a inventar os seus formatos nas manchas luminosas. A massa de cores negativas que colore a minha retina de repente não é apenas uma massa: é a curva do seu rosto, a base dos seus lábios, o desenho dos seus olhos. Fecho os meus e abraço o escuro.

Uma nova música começa a tocar no andar de baixo. Eu ignoro a letra porque não posso compreendê-la, mas não tenho como ignorar o som. Há músicas que simplesmente nos alcançam. Mas não nos alcançam pela mensagem da composição poética, e sim pelo que elas são enquanto música em seu estado mais primitivo: uma harmonia calculada de sons. Talvez esse seja um truque dos produtores musicais, que, com seus ouvidos treinados, sabem que o intercalar melódico de tons em escala maior e menor causa melancolia a quem os ouve. E então a minha frustração se converte nisso, em melancolia, em nostalgia, em algo impalpável, mas que posso sentir como se estivesse bem aqui. Como posso continuar a viver se tudo o que vejo, tudo o que sinto, tudo o que encontro, me remete a você? Eu tento te bloquear, mas você invade cada pensamento meu.

E não só os pensamentos, aparentemente, mas até este falso mundo que criei e no qual tentei me refugiar. Percebo que a minha tentativa de fuga foi em vão assim que ouço, atrás de mim, o volume da festa aumentar e diminuir, emoldurado pelo abrir e pelo fechar da porta, dois baixos cliques. Depois disso, passos e mais passos, lentos, um atrás do outro. Dedos deslizam pelo vidro da porta. Uma respiração cansada não sabe se esconder.

— Eu fiz algo de errado?

A sua voz chega aos meus ouvidos como o sopro de um vento longínquo. Está baixa, contida, talvez um pouco ressentida. Não tenho como desvendar o estado da sua alma, mas a preocupação que beira a chateação é evidente na sua voz.

E eu não te respondo com palavras. Não consigo, não neste primeiro momento. A minha voz como que se perde no fundo da garganta, fica aprisionada por aquilo que os ouvidos captaram da sua. Ainda de olhos fechados, balanço a cabeça para os lados em sinal de negação. Nem sei se você está me olhando, nem sei se há aqui luz o bastante para que você possa ler a minha resposta silenciosa, mas não tento verbalizá-la. Dói-me dizer que você não fez nada porque já me doeu muito ter de te ouvir fazer uma pergunta dessas. É claro que você não fez nada. Eu é que estou arruinando tudo. Mas não consigo dizer isso. Sinto que soaria como uma daquelas desculpas esfarrapadas de quem não quer se explicar. Sou eu, não você.

— Então por que você não fala comigo?

Sei que você deu um passo para dentro da sacada porque a sua voz chega mais alta até mim, ainda que você não lhe tenha alterado o tom. Involuntariamente, cerro ainda mais os olhos, como que para me certificar de que, caso você se coloque na minha frente, eu não irei te ver. O silêncio se prolonga por alguns momentos enquanto eu penso, com muito cuidado, no que te dizer.

— Não sei o que falar.

E eu não minto, mas estou muito consciente de que a minha voz não carrega o desespero honesto e doloroso da frase a que ela dá vida. Assim que escuto a mim mesmo, percebo que soei rude, mas não me corrijo. Acho que faço isso de propósito, para te afastar numa autossabotagem. É quase automático. Depois de tanto pensar, ajo como se não pensasse, com uma estupidez de quem não sabe como tratar das coisas e só quer se ver livre delas. Me desculpe, a verdade é que não quero me ver livre de você. Mas você precisa mesmo ficar livre de mim. Por favor, entenda o que estou fazendo. Entenda aquilo que não coloco em palavras, mas que não paro de dizer. Leia a minha mente. Não dificulte ainda mais as coisas.

— Você podia falar um "oi". — A sua voz está mais perto — Ou um: "e aí, como vai?". — Bem atrás do meu ombro ­— Quem sabe um: "então, sobre semana passada...". — Agora do meu lado. — Você podia olhar pra mim.

Eu não olho. Mesmo que cada célula em mim seja atraída pela sua presença, mesmo que eu queira isso mais do que quis qualquer coisa por muito, muito tempo, eu não te obedeço. A quietude se arrasta. Não sei se é desconfortável para você, mas é um pouco para mim. A verdade é que não consigo decidir se prefiro ouvir ou não ouvir a sua voz. Sinto falta dela quando ela se vai, mas tenho medo de ouvi-la e ceder aos seus encantos. Me pergunto qual efeito a minha voz tem sobre você. Duvido que seja o mesmo que a sua tem sobre mim. Me pergunto como você se sentiria caso eu dissesse: "Oi, e aí, como vai? Então, sobre semana passada...".

Semana passada as coisas eram parecidas com as de hoje. Não estávamos numa festa, mas estávamos com alguns dos nossos amigos que estão por aqui. Passamos a noite perambulando pela cidade, matando tempo, fazendo nada de especial. Compramos bebidas, comemos besteiras, assistimos a um filme ruim e ficamos horas gastando moedas num fliperama. Num ponto da madrugada, fomos para a casa de Jimin e todos se espalharam. Os mais entediados saíram para comprar ainda mais bebidas. Os que já estavam cansados foram fumar ou se jogar em algum quarto. Por acaso, na sala de estar, restaram só nós dois.

Assim que ficamos sozinhos, eu olhei para você — te olhei como não posso olhar agora. Você também olhou para mim, como se quisesse me dizer uma coisa que não podia ser dita por intermédio dos lábios. A noite toda, até aquele momento, foi assim. Em cada ponto da cidade em que paramos, em cada rua, em cada esquina, em cada estabelecimento mal iluminado, em meio à indiferença de nossos amigos, num momento ou noutro, os nossos olhos se encontraram. Já havia perigo nesta altura, mas eu não me importava. De forma inconsequente e egoísta, eu te olhava porque queria te olhar. Ter a correspondência dos seus olhos era satisfatório e elevava o meu ego, fazia com que eu pensasse que podia te ter a qualquer momento; que bastava um movimento ou uma fala para que você estivesse nas minhas mãos.

Hoje eu não penso assim. Isso era algo que eu imaginava até o tal dia da semana passada. Sei que me refiro aos nossos amigos como se estivessem apartados de nós, como se houvesse uma divisão entre mim, você e eles. A verdade é que nós também somos amigos. Não há tanto tempo quanto o somos em relação aos outros — e claramente não na mesma medida —, mas somos. Você surgiu no início do semestre, e desde o instante em que te vi, eu soube, soube que os seus olhos eram do tipo que eu buscava, embora eu não soubesse a gravidade dessa busca. Desde então, não acredito que tenha havido um único dia, um único momento, em que isso não tenha estado claro; em que tenhamos olhado um para o outro sem essa certeza, com olhos banais, sem intenção. Porque sempre houve intenção, mensagem, segredo — e é nisso que reside a verdade, a mesma verdade que temo e que, hoje, não quero encontrar. Naquele dia eu não sabia disso, agi como não deveria. Cometi um erro.

Ficamos sozinhos na sala e olhamos um para o outro. Você sorriu e desviou o olhar. Eu continuei olhando para você. Estávamos cada um em um sofá, um pouco distantes, mas frente a frente. Muito certo de que você me compreendia, eu tracei um plano. Levantei e fui até a cozinha, no cômodo ao lado, escondendo a animação enquanto te dava as costas. A cozinha estava meio bagunçada. Eu não sabia o que fazer por ali porque podia fazer qualquer coisa, tudo me era um pretexto, então optei por lavar a louça. Peguei a esponja, o detergente, e comecei a ensaboar alguns copos. Como eu bem havia calculado, você veio logo depois, quieto, com calma, quase como hoje. A diferença é que, naquele dia, você não se continha. Sei que a minha postura também te dava confiança — eu não tentava esconder nada. Você se aproximou como se me sondasse, apoiou-se por um segundo no mármore do balcão ao lado da pia, e então decidiu sentar-se sobre ele com um impulso. De pés suspensos e olhos fixos, você me contemplava. Eu te olhei por um momento e então voltei a falsa atenção à louça.

— Gosto das suas tatuagens.

Você disse após um tempo. Te olhei outra vez e desta vez não trocamos um sorriso, mas uma cumplicidade silenciosa que pairou no ar e nos atravessou. Você continuou me olhando, e eu queria ter sustentando o seu olhar, mas não pude. Me senti intimidado pelo castanho dos seus olhos e me demorei por alguns segundos enquanto remoía essa questão. Assim que coloquei a cabeça no lugar, ou pensei que o tinha feito, desliguei a torneira e sequei as mãos. Cheguei mais perto de você, sem, no entanto, fitar o seu rosto. Olhei de relance para o tecido escuro das suas calças, para as suas pernas acima do balcão, por entre as quais encontrei um espaço.

— De quais delas?

Perguntei, certo de que já tinha restabelecido a confiança. Ergui os braços e apoiei as mãos no balcão, uma de cada lado do seu corpo, por entre os dois vãos que os seus braços criavam, relaxados rente às bordas da cintura. Te cerquei sem perceber que era você quem me cercava. E eu estava prestes a me mover de novo quando você se moveu: tirou as mãos do balcão e colocou-as sobre mim, sobre os padrões de desenhos que corrompem a minha pele. As pontas dos seus dedos estavam geladas, mas sei bem que não foi esse o motivo do meu estremecimento. Eu não esperava que você fosse me tocar antes que eu te tocasse. Você deslizou os dedos pelas tatuagens, contornou cada uma delas até as mangas da minha camiseta. Um arrepio frio me cortou pela espinha.

— Todas. — O toque de dedos virou toque de mãos. O tom da sua voz, grave, íntimo, seu, me acertou num sussurro. — Gosto de todas elas.

Eu criei coragem para te olhar sem perceber que não tinha coragem alguma. Te olhei porque não pensei em nada, apenas segui o chamado da sua voz. Vi os seus olhos, os olhos que eu não posso querer e sobre os quais não devo sequer pensar. Fitei a marca na linha d'água e algo em mim se machucou. Desci o olhar para o seu nariz e para a curva dos seus lábios, ambos também enfeitados por sinais pontilhados, constelados. Respirei fundo e inalei o seu perfume. Você me olhava fixamente, sem vacilar, como se não sentisse o desejo apavorado que eu não parava de sentir.

E eu vi, nos seus olhos, que você não entendia. Eu vi a expectativa por entre os seus cílios. Vi, como que passando pelo vão das suas pálpebras, tudo o que tinha sido desde o dia em que nos conhecemos até o dia de então. E eu queria acreditar que você me seria tão indiferente como qualquer pessoa, não um único um, mas mais um dentre vários e passageiros outros. Ao longo de todos os meses até aquele momento, eu quis confiar numa apatia inventada. Te envolvi nos meus enganos sem considerar o tempo que passaríamos juntos; sem imaginar que eu descobriria muito sobre o infinito da sua complexidade. Enquanto mirava os seus olhos, percebi que tinha me perdido, notei o abismo de que me aproximara e para dentro do qual estava prestes a te puxar.

Você não entende que não sou bom? Há em mim uma incapacidade, um egoísmo injusto, um buraco inevitável. Não quero que você veja isso, não quero que chegue perto. Parece falso, uma mera desculpa, mas é a verdade. Não posso te dar o que você quer e muito menos o que você precisa — porque mais do que no engano alheio, vivo no engano próprio. Vivo contornando a mim mesmo. Vivo e respiro a dúvida entre não saber quem eu sou e ter a certeza de que não sou o suficiente, de que jamais serei o bastante. E na maior parte do tempo eu vejo que já não sei sentir nada. Nem sei quando foi a última vez em que senti algo de fato. Todos os sentimentos que eu penso ter estão fadados a se revelarem verdadeiras faíscas do meu ego. Levo tudo às ruínas. Quando penso que algo vai dar certo, vejo que sou o erro, um quebrado. Mas não vou fazer isso com você. Não com você. Se você visse o que eu vejo, se contemplasse quem eu sou, se tivesse a menor noção da minha insuficiência, você entenderia, entenderia que o melhor lugar para você é a mil milhas de distância de mim.

Semana passada os nossos amigos entraram na casa e interromperam o contato impróprio que havia entre nós. Eu tirei os meus olhos dos seus, me afastei de você e, decidido, sem ponderar, disse a todos que estava indo embora. Eu não te olhei antes de ir, não me despedi, e tenho te evitado desde então. Repito: fui estúpido ao vir para esta festa. Você não entendeu os meus movimentos. Você não entende, ainda hoje, que talvez eu seja incapaz de te olhar para sempre com os mesmos olhos com que você me olha, estes olhos que sempre existiram, mas que se revelaram na semana passada. Não devo nem pensar sobre eles. Tenho de esquecê-los, mesmo que não por completo. Preciso manter a consciência de que eles estão aqui, de tocaia, ao pé de mim, prontos a menor ação.

No presente, na sacada do segundo andar da festa, apoio as mãos sobre o gradeado de ferro. Seguro a barra com força e mantenho os olhos fechados, o rosto meio contido para um dos lados. Você continua aqui. Não sei se me agradeço ou se me condeno por não ter bebido um único gole de álcool esta noite. Naquele dia da semana passada eu estava um tanto ébrio, e talvez por isso as emoções não tenham me arrebatado com a força que me arrebatam agora. Pela milésima vez, entre nós impera o silêncio — mesmo que por dentro eu não consiga me calar. É um silêncio confortável sob o qual eu tento aninhar a minha cabeça. Mas ele não dura muito. A quietude dele é interrompida por um novo movimento.

Você encosta em mim e imediatamente eu sinto a perda. O contato é indireto, você só pousa uma das mãos num canto das minhas costas, por sobre a minha camiseta, com delicadeza, para obter a minha atenção — e você obtém, como se ela já não fosse totalmente sua. Você move a mão e eu me movo com você, estupidamente, como se não tivesse autocontrole. De repente não estamos lado a lado, mas frente a frente, e eu sei disso de olhos fechados. Espero que eu não esteja parecendo idiota. Espero que a meia-luz me contorne de um jeito bonito e dramático. As pontas dos seus dedos perpassam por sobre o topo das minhas mãos e eu cedo ao seu toque. Nossas palmas se juntam e, me desculpe, por favor, me perdoe, mas numa situação como essa eu não tenho como não te segurar com firmeza. A sua pele é quente, quente e macia. Me contenho ao máximo para não a levar aos lábios.

De olhos ainda caídos, deixo que todo o meu rosto caia. Inclino as feições para baixo como se fosse contemplar o juntar das nossas mãos, mas não o faço. As suas mãos deixam carinhos nas minhas, carinhos injustos. Não posso desdizer a minha promessa.

— Eu não quero te machucar.

Eu digo, tão baixo que nem sei se você pode me ouvir. Sinto o seu toque tensionar sob a minha voz, mas você logo relaxa. Sei que você chega mais perto porque nossas mãos se inclinam um pouco.

— Você não vai. — Mais perto. Na cerração das minhas pálpebras, quase posso ver o seu rosto. Imagino a sua silhueta, te recrio desde a ponta dos pés até o mais alto fio do seu cabelo. Tenho cada parte sua decorada em mente. Você não tem ideia de como sinto falta do seu rosto. Sombriamente, invento um desenho sem olhos. — Olha pra mim.

Eu hesito. Hesito por uma teimosia sensata que clama pela morte em menos de um segundo. Uma das suas mãos sobe até o meu rosto, dedilha a pele e pousa numa das têmporas, bem rente a uma de minhas pálpebras. Não há lágrimas por ali, mas você move o polegar como se quisesse arrancar a minha tristeza. O seu cuidado acaba comigo. Se naturalmente já me sou um enigma, agora não tenho ideia de quem eu sou. Estou perdendo as forças que jurei não perder. Sinto o peso da minha respiração, um aperto na garganta como se estivesse retendo o ar. Não sei mais até que ponto sou responsável por mim mesmo. Minha mão reencontra a maciez da sua, da que está no meu rosto. Então eu abro os olhos.

Em branco. Tudo em transparência. Não há outras cores a não ser as que pintam a sua silhueta meio iluminada, a sua pele de bronze, a profundeza dos seus olhos — os olhos que só você pode ter, os olhos que são seus, seus, seus, somente seus. Totalmente perdido, eu me rendo. Quero morar nas suas pálpebras, deitar na sua linha d'água, morrer insuportavelmente neste castanho que é o fim do mundo. Não sei se estou respirando. Sou um pedaço de formigamento. Será mesmo que não bebi nada? Estou sumindo.

Agora sou capaz do abandono próprio. Me esqueço porque, quando te vejo, nada mais tem luz e tudo é luz. Nos seus braços eu perco a resistência, vou-me embora para outro lugar. Nem sei como ouso ter a coragem de encostar no seu rosto. As suas duas mãos passam para a minha cintura e eu desapareço. O que você vê enquanto tanto me olha? Não deve ser a imagem que conhecem os meus espelhos. Por que razão você me quer? Não há razão alguma em absolutamente nada. Me salve como eu não pude te salvar. Rompa esta anestesia, me faça dormir, acabe comigo. Estes lábios no meu pescoço são a minha morte — quando é que vieram até aqui? Que direito tenho eu de querer que eles andem para todos os lados, que conheçam cada parte minha, que venham até os meus?

Não tenho direito algum, mas você discorda. Você não me compreende e eu já não sei como nadar contra o fluxo de cada coisa que você faz. Se você quer usar os dentes, arranque logo cada parte e leve tudo com você. Nada me pertence, tudo é seu. Vá para longe, chegue mais perto, se confunda comigo, deixe marcas a ponto de parecer que não há marca alguma. Se não houver rastros, será como se nunca tivéssemos existido. Prefiro fingir que estou num sonho. Prefiro dormir e acordar com a sensação de que você é uma invenção. Eu não te mereço, sou um inconsequente. Será que posso te culpar?

A culpa parece uma boa conclusão, mas, agora, ela inexiste. Tudo inexiste. Sou alguém que vive de pontos finais — ou melhor: alguém que jamais escreve em maiúsculas porque não sabe traçar limites. Não tenho noção de onde isso termina e de onde começa. Tudo me é um limbo. Tudo está no meio de todas as coisas. Não sei para onde vamos, não sei para onde você quer me levar, mas vou com você.

Estes pensamentos sem sentido que eu não sei como parar de ter talvez tenham algum significado, talvez sejam o sinal de que desta vez há uma esperança, de que talvez não seja possível manter uma milha de distância. Um quilômetro e meio é muito, andemos mais cem metros. Não me culpe por morrer em você. Não sei dar fim às coisas, mas talvez amanhã tenhamos de dizer adeus. Está tudo nas suas mãos. Eu quero os seus olhos, juro que quero, quero tanto que machuca. Então olhe bem para mim, não pare de me olhar, me permita ter os seus olhos — e por favor, eu suplico: nunca mais permita que eu feche os meus.

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