Tentáculos Assassinos também...

By Deco_Sampaio

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Josué procura por sua amiga de infância, a menina que lhe ensinou a ser empático, que acalentou os sofrimento... More

II

I

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By Deco_Sampaio




"A pele dele foi se enrugando, gradualmente, como se o tempo estivesse acelerado. Rugas e rugas. Velho, cada vez mais velho. Era mais de meia noite. Havia uma neblina espessa. Realmente era difícil de enxergar, mas eu vi, não resta dúvida. Era o meu melhor amigo. Mais que isso. Conheço seu físico há tempos, seu jeito de se mover, o reconheceria até pela sombra e a incríveis distâncias. E ali, cerca de vinte metros nos separavam. Era o mais próximo que podia ficar naquela situação. Quando a pele não tinha mais como enrugar, ela começou a se soltar em placas, caindo ao chão, gelatinosa. Tenho certeza que ele não me viu. Fiquei bem escondida. Quando não havia mais pele pude ver seus ossos e órgãos. Ele continuava em pé e garanto, respirava. Soltava gemidos, discretos, diria que talvez de prazer. Quis chorar, mas não podia... "

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Era isso. Esse bilhete. Um mísero textinho. A única pista. Uma anotação de viés literário, típico dela. Difícil de acreditar. Por que ela sumiu assim? Além desses dizeres havia sangue, respingado por toda a folha. As últimas palavras estavam rabiscadas, indecifráveis, a última palavra identifiquei: tentáculos. Mas o que me intrigava e acelerava meu pulso era a simplória oitava frase: mais que isso. Tinha que encontrá-la, finalmente tinha esperança de felicidade.

Melhor contar como achei essa anotação bizarra. Não sei, é penoso. Esse relato será inútil, serei taxado de maluco, como de costume. Tudo bem, tudo bem. Preciso registrar, organizar a mente. Entender os acontecimentos. Lembrar os detalhes. Foco! Isso é a coisa mais importante da minha vida.

Acho que posso começar falando de um dia específico. Foi assim. Preocupado com minha vizinha e amiga fui visitá-la, estava sem notícia dela há dias. Era um dia ensolarado. Ninguém na pequena propriedade rural. Bati palmas, gritei seu nome.

— Amanda, Amanda.

Nem o cachorro veio me recepcionar, o inseparável e querido Cérbero. Suas lavandas que ladeavam a entrada estavam murchas o que estranhei. Ela amava suas plantas, dedicava-se muito aos cuidados delas, jamais murchariam tão rápido. Empurrei o portão e entrei. Na horta não havia mais verdura ou hortaliça, tudo colhido, ou talvez consumido ali mesmo. O cavalo vagava, arisco. Vi um amontoado de cabeças de galinha e sangue no chão. Sabia que ela odiava matar galinhas, quando necessário me chamava. Por que mataria todas? Ela mesmo fez aquilo? O casebre me pareceu mais antigo, desbotado. Só ouvia o vento uivando, passando entre portas e janelas, inspecionando tudo com rapidez. Os pássaros que de costume cantavam por ali, onde estariam? A porta de entrada entreaberta.

— Olá, Amanda! Posso chegar? Tudo bem por aqui?

A louça na pia, cheiro de sardinha azeda. Teias de aranha nos cantos dos móveis. Poeira. Na mesa de jantar uma vela acessa, quase no fim. O vento encanado não conseguia apagá-la. Ela não era religiosa e tinha um gerador, velas não lhe eram necessárias. Armários abertos e vazios. Fui para o quarto. A cama desarrumada, manchas amareladas nos lençóis. Cheiro de corpos em putrefação. Nesse ponto eu já estava ofegante. Pensei que fosse morrer. Meu peito pesava toneladas e uma tristeza me queimava. O uivo do vento parecia agora um cão chorando. Ajoelhei no chão, oprimido por medo e dor. Foi assim que achei a folha. Vi um pedaço dela embaixo da cômoda. Li o bilhete com as mãos trêmulas, com uma azia me torturando. Qualquer outra pessoa que lesse aquilo chamaria de delírio. Para mim era uma peça de um quebra-cabeças.

Após ler veio a escuridão. De início pensei ser nuvens de tempestade encobrindo o céu, mas ao sair do casebre vi que era noite. O sítio de Amanda, a horta, o galinheiro, o estábulo, não existiam mais. Um manguezal denso ocupava o lugar. O chão borbulhava. Algo subia pelos troncos das árvores, deslizando, se envolvendo nos galhos. Eu pensei em rir. Mas não ri. Talvez tudo se desmanchasse e eu acordasse. Tinha que ser um pesadelo. Supliquei que fosse. Paralisado observei o cenário absurdo e ouvi os sons de rastejo, madeira trincando e um provável canto de coruja. Estaria enlouquecido?

Nesse momento, minha pele derreteu. Fiquei apenas feito de ossos e entranhas. Pude ver os tentáculos, rastejando, vindo em minha direção. Vários e finos. Eles preencheram o vazio que minha pele deixou. Senti orgasmos. Intensos e múltiplos. Tremi como um epilético. Ejaculei, meu esperma poderia encher um balde, ficou espalhado em meio a terra borbulhante. Meu membro era viscoso. Eu não tinha nojo. Eu estava gostando. Parte de mim estava. Naquele momento grande parte.

Andei sem medo pelo mangue, com passos vigorosos, como um rei cruzando seu reino. Achei o portão de entrada e a estrada que em tese levaria para minha casa, meu pequeno sítio. Havia uma montanha em local que antes era plano. O chão, por todo lado, tinha movimento, como se fosse parte do meu corpo, pulsava. Eu sentia que tudo era meu. Uma parte de mim que estava perdida, outra parte cheia de si, confortável como se no sofá de casa, ou melhor, como se vislumbrando o paraíso. Então o senhor Antunes surgiu, montado em seu cavalo.

— Josué, tudo bem? Veio ver a Amanda?

Ele me fez aquele olhar estranho de gente branca que não gosta de pretos visitando loiras lindas. Desde criança percebo esse olhar nele, mas não era o olhar de pavor que eu esperava, até ansiava que ele tivesse agora. Quis matá-lo. Faz tempo que tinha esse desejo. Olhei para meus braços e os tentáculos estavam maiores, se expandindo, construindo um mundo em meu corpo e no entorno. De alguma forma aquele senhor não via o monstro sedento por pele e carne humana que eu era.

— Sim, mas não tem ninguém em casa — disse eu involuntariamente.

Desde então, vejo uma paisagem diferente, me sinto duplo. Às vezes, tudo volta ao normal, até mesmo meu corpo, minha imagem no espelho, mas logo volto a ser tentacular, gomoso. Ninguém nota. Talvez porque sempre fui solitário. Talvez, as pessoas pensem que o estranho da comunidade está mais estranho, só isso. Elas não fazem ideia do mundo funesto que se encontra sobre todos. Mas Amanda sumiu. Isso todos notaram. A polícia investiga, me fizeram perguntas. O negro amigo da loira, o nojento, só pode ser ele. É a frase que vejo estampada nos olhos deles. Quis contar sobre o bilhete, mas me contive. Ou melhor, algo me conteve.

Toda noite eu choro de saudade e agonia. Quando escrevo percebo que as palavras são mais minhas do que Dele. Gosto de escrever, gosto de contar ao papel meus segredos. Agora gosto mais ainda. O outro que me habita se distraí quando uso lápis e papel. Com caneta não funciona bem. Tenho dificuldades em escrever o nome dela corretamente, quase sempre sai errado. Preciso me concentrar, se escrevo de impulso só escrevo Amada. Gostei, porque não temo mais o motivo de sempre querer vê-la. Minha amiga, minha amada. Eu te amo! Eu quero te falar isso. Quero te beijar. Quero seu corpo delicioso, quero estar dentro e fora de você.

Eu sei, cada palavra do bilhete dela é verdade. Após alguns dias de tormento me lembrei daquela noite, durante um pesadelo. É uma lembrança nebulosa, cheia de contornos do inconsciente. Quero que seja sonho, mas não quero mais fugir da realidade. É provável que seja verdade. Pelo que percebo, eu não vi ela, mas ela me viu. Viu minha parte asquerosa, viu que eu não era o menino que ela queria que eu fosse. O que ela descreveu no bilhete é a realidade trágica. Há quanto tempo sou esse monstro? Não sei o que aconteceu depois.

Comprei esse sítio, o mesmo que meu pai vendera há anos. Retornei porque quis me reinventar. Fugir das coisas brutescas que vi e que fiz. Voltar pra ela, por causa dela. Estar de volta ao local onde fui puro. Onde minha amiga vivia. A menina que nunca me olhou com desprezo. Que me ensinou o prazer de ler, de esquecer a realidade e entrar nas fantasias da literatura. Ela, assim como eu, estudava na escola pública, cidade pequena, todos estudavam lá. Eu gostava de ficar na biblioteca, não para ler, para me esconder. Comia ali meu lanche e fazia desenhos, alienígenas e monstros que via em filmes e desenhos. Visitantes cósmicos. Ela também gostava de lá, mas para ler. Era considerada estranha, apesar de ser admirada pela beleza sincera. Tinha a pele alva e os olhos celestes. Um dia sentou ao meu lado e me ofereceu um gibi. Ali no silêncio da biblioteca, em meio a tantas histórias, tantas ideias, tanta empatia, no melhor da humanidade. Avisou que era proibido para crianças, mas que sabia que eu ia gostar, porque havia visto meus desenhos. Li o título: O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos. Era assustador, continha tanta energia, em alguns trechos me senti de uma raça inferior, mas gostei. Então ela disse algo que me fez apaixonar.

— Quem entra no mundo da imaginação, quem lê tantas e tantas aventuras e enxerga até outros mundos, me parece ser melhor. Pessoas assim olham para as pessoas com carinho. Você é legal, quero que seja assim.

Não sei se ela tinha razão, mas com ela era fácil recolher meu ódio. Com ela eu esquecia o que fizeram com minha família, nessa e em outras cidades, o que fizeram comigo. Vários monstros, humanos ou não, me perseguem há décadas. Monstros que também vêm da imaginação, da especulação, só que de uma leitura tosca, rasa. Eu sou culpado da minha ira, de todo mal que já causei, mas talvez esse meu lado ficasse escondido se não tivessem apertado o botão proibido. Queria que o mal não tivesse me espreitado em tantos lugares. Meu desejo era ser outro, me transformar em algo leve. Eu voltei para ser o que ela queria que eu fosse. Eu quero ser o que sou com ela. Onde está você Amada?

Meu plano era aprender a criar galinhas, ter uma horta, flores, cheiro de lavanda no ar. Ter ela como minha tutora, a melhor mulher do campo, do mundo, que me faria ser cada vez melhor, ser simples, ser quase inteiramente bom. Não branco nem preto, um cinza humano, um cinza empático. Lembro do sorriso que ela me mostrou no dia que retornei, uma visão pornográfica da felicidade, cheguei a pensar que me beijaria na boca, uma recepção encantadora. Tudo estava indo bem, monstros não me perseguiam mais, eu estava mantendo eles longe, pensando em amor, pureza, paz. E agora sou esse monstro, ao mesmo tempo que não sou. De uma forma misteriosa, enquanto escrevo isso, me sinto uma pessoa melhor, como se toda minha parte sombria estivesse com Ele agora. Quase como se estivesse na companhia dela. Sinto que estou, de alguma forma ela está comigo. Tenho a pele boa e a pele ruim, cada vez mais distintas. Isso me traz alívio. Eu e o monstro estamos juntos, mas separados, sabe? Sei que alguém aí me entende.

Eu quero ser um homem bom. Eu quero ser o melhor de mim. Todos querem isso, certo? E sou. Eu sou. Eu tenho que ser.

Mas antes de me separar desse monstro, mesmo estando no mesmo corpo, quero Ele comigo para uma última tarefa: vingar a morte dela e o sofrimento que deve ter passado. Descobrir o que fizeram com Amada. Desejo isso mesmo tendo uma dúvida cruel. Essa que quem um dia ler isso, nesse ponto, deve estar também. Talvez. Eu disse talvez. Talvez tenha sido eu, quando transformado, naquela noite em que ela me viu. Eis o maior medo de meu ser. Um medo maior que a morte. O medo de ter matado Amada.

Tenho certeza que assim como Ele não percebe coisas que faço eu também não percebo coisas que Ele faz. Isso ficou claro quando o delegado em pessoa veio me fazer uma visita. Já era tarde. Achei estranho, nem o cachorro latiu para ele. O homem da lei cruzou as porteiras, praticamente sem fazer barulho, atravessou meu campo tomado por gramíneas invasoras, aliens species, como dizem os agrônomos dos Estados Unidos. Um termo irônico agora. Pensando nisso eu ri. Quase gargalhei. Creio que sou mais alien do que essas plantas, provavelmente muito mais danosos também.

— Posso entrar, Josué? — perguntou o delegado após bater palmas e me ver na janela.

Abri a porta e o convidei a entrar. Ofereci uma cerveja que ele recusou. O homem ainda jovem, beirando os quarenta, sentou-se em uma banqueta e ficou em silêncio me observando. Jogou algumas fotos na mesa da cozinha. Pessoas mortas, trucidadas, sem pele e com as vísceras a mostra.

— Horrível, não acha?

Analisei as imagens com cuidado e tive breves reminiscências. Foi Ele e de certa maneira eu também. Não sabia até ver as fotos. O monstro em mim matou cada uma daquelas vítimas. Consumiu suas peles, se fortaleceu criando mais tentáculos. Aquelas pessoas nas fotos eram parte de mim agora. Consegui fazer coisas piores do que imaginei um dia ser possível. Talvez agora eu fosse um ser dobrado no que há de mais depravado, o casamento do egoísmo humano com o de outros mundos. Joguei as fotos em repulsa, elas se espalharam pelo chão. O delegado juntou uma por uma. Não pareceu animado com minha atitude.

— Josué, onde você estava na noite de ontem e de anteontem?

— Dormindo, com certeza.

— Preciso que você vá amanhã cedo prestar depoimento, sem falta. Aqui a requisição. É de caráter obrigatório.

Ele me entregou o papel olhando firme nos meus olhos, tinha ódio em todo seu rosto. Eu meneei a cabeça concordando. Quis sugar os miolos dele, chupando pela orelha, tirar a empáfia daquele ser ridículo.

Após confirmar que ele fora embora, peguei papel e lápis e num ímpeto, seguindo o fluxo de pensamentos que me vinham fui escrevendo.

O que devo fazer? Quem eu sou? O que fiz? O que farei? Seu idiota, seu imbecil. Por que eu não me abri? Por que não revelei minha paixão? Amiga coisa nenhuma, quero seus lábios, suas curvas, ter sua atenção plena, seu carinho, seu amor. Quero suas flores por todo meu jardim. Eu matei você? Eu te consumi? O monstro me vê, me sente? Quero saber o próximo passo. O que ele pretende? Por que mata? Pura maldade? Quer a força das almas, como um canibal? Quer mais tentáculos? Mais paisagens alteradas? Sombra e torpor? Qual é a ganância que lhe rasga? Fome do maior órgão do corpo humano? Fome de vísceras? Quer ser um gigante, engolir o mundo com sua magia. Tirar a vida que não existia antes. A vida que creio eles criaram, na época, nos milhões ou bilhões de anos atrás em que estiveram aqui. Eles querem voltar. Quando todos perceberem o piso estará borbulhando, o inferno aberto estará. Os monstros nunca vão embora, apenas se escondem, ficam esperando as aberturas, as pequenas rachaduras, as clareiras. Podem devorar uma floresta, toda a diversidade, basta deixar espaço para se fortalecerem. Ele precisa voltar aos locais de maldade, construir sua matéria obscura, abrir portais para outros dos seus. Ele vai voltar aos locais, sentir os crimes, e liberar seus tentáculos. Ele está em muitos, e constrói um mundo, tijolo por tijolo, tentáculo por tentáculo. Precisa de pele, pele, pele. A Terra terá uma nova camada. O pior dos mundos consumindo tudo.

Terminei de escrever e entendi. Quando fui procurar Amanda em seu sítio era porque Ele estava voltando ao local, no intuito de construir mais uma parte de seu mundo. Eu e ele matamos minha Amada. O amor morreu. Só me resta sucumbir. Deixei me domar. Essa dor de ter feito esse horror me fez abrir espaço para o mundo Dele. Naquela mesma noite o delegado e toda sua equipe foram descamados. Comecei pela pele, um padrão de consumo. Cuspi os ossos. A massa encefálica é o que mais gosto. Comer humanos é sexo, é orgia, é um prazer imensurável. Termino esse relato. Fiz dele algo como um conto que Amanda gostaria de ler. Uma confissão poética. Um dia perceberão a tenebrosa terra que ajudei a criar.

Já sem nenhum amor, adeus. Quem um dia ler esse texto, saiba que deixo minha propriedade e tudo que tenho para qualquer parente próximo de Amanda.

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