ASUNDER (Em pedaços)

By sdeferreira

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Um homem, depois de ter sua casa roubada e destruída, nunca mais permitiu nenhum estranho ou conhecido. Com o... More

Personagens
Prólogo
Ato I, Cena I
Ato I, Cena II
Prólogo
Ato II, Cena I

Ato II, Cena II

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By sdeferreira

ATO II

CENA II


O mesmo. Minutos depois. Sünder decide dormir sob as meias no sofá na sala de estar no momento em que, deitado, tem a oportunidade de observar o vazio por debaixo de sua porta.


AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Deveria tirar esse cochilo da tarde.

(Sünder cruza os braços enquanto deitado)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Deveria arrumar a casa. Sabemos que está pensando nisso. Sabemos no que pensa e deveria arrumar a casa. Não pense no que passou, pense no que o cerca agora. Concentre-se em se arrumar.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Por que está dando tal ideia a ele? Olhe você para Sünder agora, ele está deitado sob meias com furos e camisetas desbotadas em seu sofá. Ele está arrasado, acabado. E ficarmos ao seu redor o lembrando se arrumar as coisas como se fossemos seus pais, não o ajuda. Ele não precisa disso, sabemos que está dando o seu melhor com tudo isso, Sünder.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim, sabemos que esse é o seu melhor.

SÜNDER — (abafado) Esse é o meu melhor?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Sabemos que sim, concordamos com você. Olhe aí a linha do limite, estamos batendo nela como a ovelhas que sempre esbarram no cão farejador. É o nosso limite, passar daqui e saber que irá ser puxado outra vez pelo cão do fazendeiro e sabemos a vergonha que isso lhe traria.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Pare de olhar para a porta.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim, pare de olhar para a porta.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Menino, você nunca executa o que deveria estar em movimento na sua vida. Deveria, agora, estar dormindo. Deveria tirar esse cochilo da tarde.

SÜNDER — (entristecido) Mas vocês não param de falar.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sua voz está arrastada, cansada. Deveria mesmo tirar esse cochilo da tarde.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Parece que anseia chorar. Deveria mesmo tirar esse cochilo da tarde.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Está tão crítico quanto a nós. Não vê que somos a única coisa que lhe resta? Deveria mesmo tirar esse cochilo da tarde.

SÜNDER — (uma lágrima cansada escorre de seu olho direito, caindo para seu olho esquerdo enquanto deitado) Eu nunca tenho algo bom para mim.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Já está devaneando. Querido, deveria tirar esse cochilo da tarde.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Já não entendo o que você fala. Não há clareza em nada que está saindo de você. Deveria tirar esse cochilo da tarde.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Nos desaponta a cada dia de uma forma diferente e essa a sua missão nos últimos dias? Eu ouço o que você penas e você se desaponta a cada dia de uma forma nova. Deveria tirar esse cochilo da tarde.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim!

SÜNDER — (aumenta o tom) Eu quero dizer que não tenho me dado alegrias como há uns dias eu o fazia... eu quero dizer que talvez vocês estejam certos, mas parem de falar um pouco.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Deveria tirar esse cochilo...

SÜNDER — Não! (silêncio) Não repita mais isso, eu não consigo tirar cochilo nem quando pareço estar em sono profundo, nem quando quero, nem quando tento. Fechar os olhos tão somente não funciona mais! Eu não aguento mais ouvir essas vozes agudas e grossas, finas e desafinadas, intercalando dentro de mim em tentativas frustradas de terem a minha atenção. Pois, ao mesmo tempo em que não ouço nenhuma, presto sim atenção em todas. Cada nota, cada rodapé sobre o que faço ou deixei de fazer. Cada crítica maldosa, cada golpe, cada facada sem ressentimento, cada profundo corte sem anestesia. Quando na real essas vozes apenas estão dizendo o que... eu já pretendia falar de mim. No fim, eu já pretendia falar de mim. Eu já não gosto mais de mim há tanto tempo que me esqueci do meu nome. Eu já não gosto mais de mim há tanto tempo que não me recordo do sabor que tinha a minha comida favorita ou a minha bebida favorita. Qual era mesmo o nome do meu irmão?

(silêncio interno)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Continue.

SÜNDER — O quê?

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Esperneie até dormir, querido.

SÜNDER — (impaciente) Não fale assim. Não fale comigo assim. Não me repreenda, me abrace. Eu sou o seu criador, aquele que o formou. Eu sou a linha que existe entre a morte e a vida para vocês. Eu posso matá-los se eu...

(uma sombra empoeirada emerge frente uma poltrona)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Que poder hoje você pensas que tem?

(Sünder ergue-se, encucado com a sombra empoeirada)

SÜNDER — O que é isso?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Se esforce em me olhar nos olhos. Sünder nunca vê com os olhos certos. Quem me criou foi o próprio e ele não nos enxerga da forma certa. Se esforce em fazer alguma coisa hoje. Sequer terminou o seu pão, ele está mordido sob a mesa suja. Sequer terminou de beber seu café, a xícara está gelada e amarga sob a pia imunda. Quer imaginar nossa aparência? Espreite os seus olhos e verá com clareza.

(a sombra empoeirada ganha massa)

SÜNDER — Isso é você?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Isso somos nós. Carne de carne, osso de osso.

(Sünder nota uma massa de poeira em formato humano, firme e sólida, ao pé do sofá que se deita e outra massa alta à cabeça de seu sofá)

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele falou em morte?

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Deveria ter ido cochilar. Fechar seus olhos e esquecer essa realidade. Mas preferiu nos afastar, nos ameaçar de morte. Somos cópias, somos idênticos. Que lástima, querido.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Sünder acha que pode nos separar de ti, mas nós somos tudo o que te resta. Não somos parte criada por sua grande benevolência, somos parte arrancada de sua alma que não conseguiu purificar. Não conseguiu nos transformar em arte e agora nós o alucinamos.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Pode ter nos dado a vida, porém agora também é codependente de nós. Você não viveria sem nós.

(Sünder se levanta, pisando em camisas antigas)

SÜNDER — Não entendo.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — (se aproxima e fala ao pé do ouvido) Eu sou a linha que existe entre a morte e a vida para você.

(Sünder se afasta)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — (se aproxima e fala ao pé do ouvido) Eu sou seu criador, aquele que o formou também. Eu posso matá-lo se eu me matar.

(Sünder se afasta)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — (disse por trás, o surpreendendo) Não me repreenda, me abrace.

(Eles, um passo à frente. Sünder, um para trás)

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Terá novos amigos na morte.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Terá riqueza após essa vida.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Querido, terá felicidade ao cruzar essa linha que juntos criamos que nos divide do lado de fora.

(Eles, um passo à frente. Sünder, um para trás)

SÜNDER — Quero felicidade... mas acordado.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Não precisa dormir. Ele precisa?

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não será necessário.

(Eles, um passo à frente. Sünder, um para trás)

(A cada passo, Sünder se aproxima da porta)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Aqui só tivemos dor, aqui só tivemos angústia. No fundo, nunca fomos amados e aquela menina que um dia o rejeitou frente a todos estava certa. Não nascemos para ter o amor, puro e simples, e nem para sermos amados, ainda que de forma grotesca. Não temos o dom de entender como o amor funciona. Nascemos errado.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Devemos nascer de novo.

SÜNDER — Como?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Que poder você acha que tens sobre si?

SÜNDER — Eu...

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — O poder da vida!

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — O controle sobre a morte!

SÜNDER — Eu... eu não...

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Está pensando demais.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Ele sempre pensa demais.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Nós que pensamos por ele.

(Eles, um passo à frente. Sünder, um para trás)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — (ri) Deveríamos guardar as verdades!

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Pense por si.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Certo... Abraçaremos você.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Sim, o abraço que tanto pede. O abraço que tanto ansiou, agora ele está aqui na sua frente.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Venha!

(as sombras o circulam a porta)

(Sünder recosta seu corpo na porta, um pequeno som se faz)

SÜNDER — Eu...

(silêncio)

(Sünder enxerga com clareza todas as três formas humanas semelhantes a sua, com os mesmos casacos e as mesmas calças largas, sem chinelos e a mesma pura expressão facial de que a morte já o abraça há muito tempo)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Usamos as mesmas roupas de cores neutras, assim como usamos as mesmas calças. Sem chinelos, pisamos nas próprias roupas, sentimos a sujeira com a sola do pé. O frio do chão nunca muda... (sussurra) mas o meu abraço é quente.

HOMEM — (voz suave) Eu ainda estou aqui.

(encucam-se suas formas humanas)

SÜNDER — (desacreditado) Está tão perto... A voz está bem atrás de mim agora... (ele chora) Si... Significa que ele esteve aqui desde aquele momento? ...E que por todas às vezes, enquanto me... esforçava para tentar dormir, ele estava aqui?

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Já está devaneando de novo. Deveria ter tirado aquele cochilo da tarde.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Se esforce em me olhar nos olhos. Se esforce em fazer alguma coisa hoje.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Querido, terá felicidade ao cruzar essa linha que juntos criamos que nos divide do lado de fora.

(Sünder segurou a maçaneta)

SÜNDER — Quero felicidade... (gira a maçaneta) mas acordado.

(Sünder abre a porta. A luz de fora entra. Sünder, com o seu corpo entre a porta e a parede, não vê o mundo externo ou como as coisas agora fluem. Ele apenas vê de lado uma silhueta de um homem adentrando sua casa)

(as formas humanas evaporam ao tentar correr contra o homem que caminhou até próximo ao sofá da sala de estar)

(Sünder fecha a porta, assustado)

(silêncio interno)

SÜNDER — É... oi.

(Homem se vira, o fita e sorri)

SÜNDER — (constrangido, limpa as lágrimas secas) Suas botas estão sujas de barro, mas não sujam o meu chão... As suas vestes brancas me contam que um dia foi de tom branco e que aqui aderiu ao tom amarelado não por sujeira, não por falta de cuidado, e sim pelo tempo, pela luta, pela viagem... então... você deve ser um viajante, daqueles não muito inteligentes. Afinal, quem viaja de roupas brancas? E a sua pele cor de quem já pegara muito sol não me diz nada... nem coisa boa, nem coisa ruim. Acho que... no fundo eu desejo escutar coisas ruins, críticas, apontamentos, decepções, iras e certezas que todos já têm a meu respeito. Mas seus olhos... cor de madeira, cor de um lugar que eu nunca fui... não dizem isso.

(Homem ainda o fita, sorrindo)

HOMEM — (voz suave) Tem algo para comer?

(ainda agarrado a maçaneta da porta, Sünder acena que sim)

SÜNDER — Mas quero o que você tem... porque eu cansei... de fingir que tenho tudo de que preciso aqui.

(Sünder prende o choro dos anos em sua garganta)

SÜNDER — Mas eu tenho medo.

HOMEM — (voz suave) De...

SÜNDER — De não estar mais sentindo medo... do que podemos ter.

(silêncio interno)

(Homem se aproxima)

SÜNDER — (inocentemente) Não sei o que preciso dizer agora.

HOMEM — (voz suave) Mas você já disse tudo... o que eu precisava ouvir de ti, Sünder. (sorri)

(Sünder, sem correções ou repreensões, recebe um abraço do Homem que permitiu entrar em sua casa)

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