ASUNDER (Em pedaços)

By sdeferreira

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Um homem, depois de ter sua casa roubada e destruída, nunca mais permitiu nenhum estranho ou conhecido. Com o... More

Personagens
Prólogo
Ato I, Cena I
Ato I, Cena II
Prólogo
Ato II, Cena II

Ato II, Cena I

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By sdeferreira

ATO II

CENA I


O mesmo.


SÜNDER — Não façam isso. Não, não... Não façam isso. Uma batida na porta fez um som novo. Não foi como os meus suspiros, nem como o som que anuncia o ponto certo do meu café amargo, muito pelo contrário, esse novo som me espanta até os maus pensamentos, então não façam isso, não deixem o silêncio entrar! Ele me faz esquecer a bagunça, a televisão quebrada, o controle remoto em minha mão que pula para o chão em um suicídio pouco poético. Após a tal batida, o silêncio me pega pelo pescoço. Então falem!

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Devemos... Devemos pensar.

(Sünder se levanta, inquieto)

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Quem poderia ser? Não esperamos ninguém, você não conhece mais ninguém além dos que estão aqui.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Todos que um dia conheceu já devem estar mortos, ao menos, em seu coração eles já estão. Faz-se anos, décadas. O som é de uma mão batendo à porta, uma mão fechada. Quem poderia ser? Quem se atreveria?

(Todos se levantam)

SÜNDER — Eu não conheço ninguém, nem mais a mim. Como direi o meu nome se nem mesmo eu me lembro mais dele? ...E por que eu penso em me apresentar?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Menino... Homem idiota, com esses pensamentos que o tempo o obrigou a tomar conta, já esquecera-se o que acontecera da última vez?

SÜNDER — Jamais abri a porta de novo, arranquei todas as portas internas de minha casa por motivos lógicos. E eu não abrirei para aquele ser humano! Quem poderia ser? Quem se atreveria a querer me conhecer ou me reencontrar?

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ah, seus olhos se encheram d'água... Sei o que pensa: comer o seu sangue com pão quente pela manhã é melhor do que essa sensação de mistério, tenso, quase sólido no ar. Comer o seu sangue é, no mínimo, previsível. É o que acontecerá na próxima manhã, e na próxima e na próxima...

SÜNDER — Eu tenho o controle. O tempo me deu controle. Ainda que isso signifique um pouco de arrependimento, de solidão, de repulsa por mim e porventura uma pitada de melancolia... mas ainda é controlável, porque sou eu. Sou eu! Sou só eu, sou somente eu e mais ninguém. O preço que quis pagar há décadas! Quem quer que seja atrás da porta, não sou eu. Não de novo, não mais um. O mundo não suportaria dois de mim.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não se preocupe, não há mais batidas na porta, no entanto, quem quer que seja espera com paciência. A sombra de seus pés é notória.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — E essa pessoa é nova no bairro?

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Todos, com certeza, devem propagar a história de Sünder aos novos moradores, só não dera tempo com esse. Sünder é o menino que se fechou para o mundo quando o mundo deu as costas para ele, o menino que não conseguiu aguentar consequências de suas próprias ideias. Alguém precisa avisar aquela pessoa quem Sünder é!

(um som arrastado rela a porta)

SÜNDER — O que foi isso?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Uma passada de mão leve do outro lado da porta.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não foi uma batida, mas eu a ouvi.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele acariciou a porta.

SÜNDER — Ele acariciou a porta? Quem iria querer tanto falar comigo assim? Estaria ele apenas querendo ajuda? Ninguém está na rua para o ajudar? O ignoraram? Eu poderia ajudar alguém com a mesma rejeição que a minha... Não! Não, eu não deveria pensar dessa forma. A sombra de seus pés não deveriam aqui significar nem um pingo de sentimento. Ele é insistente e intrometido, não há mais adjetivos.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Foram tantos anos, tantos enganos.

SÜNDER — Meus olhos querem saltar para fora em um ato de desespero absurdo.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — A morte é a melhor opção, melhor do que abrir a porta ao Homem.

SÜNDER — O que é isso em mim? Meu peito queima, minhas mãos tremem. Meus pés suam enquanto meus ombros se mexem sozinhos.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — A ansiedade, querido. A ansiedade é a única que não abandona e aqui ela te aperta o estomago. Mas saiba que, por você, eu vomitaria no homem que bate à porta!

SÜNDER — Sim, eu também vomitaria. Pronto com essa ideia em mente, a coragem não me vem, nunca me veio, só que o impulso, amigo da ansiedade, está aqui por nós.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Por você.

SÜNDER — Não me corrija, me abrace. Sei que não o vejo, sei que agora miro meus olhos em todos os vazios que estão a minha volta, por entre essas roupas sujas e por toda a casa mal lavada, só que, ainda assim, eu sou o seu criador!

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Ainda é tudo sobre você.

SÜNDER — Engula essa calmaria em sua fala! Ela está me deixando mais tenso que essa sombra humana do outro lado da porta. Afinal também é sobre vocês, pois nós deveríamos ser um. Eu sou o seu criador, eu sujei as minhas mãos com todos vocês, eu os dei o dom da fala e o dom do pensar, eu os deixei ter vontade própria, pois assim seria mais interessante o nosso convívio. Mas ainda assim, eu os fiz. Eu mereço apoio em tom de gratidão. Então não me corrija, me abrace.

(outra batida à porta)

SÜNDER — Saía!

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Grite mais alto!

SÜNDER — Saía! Não há ninguém aqui!

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele não ouviu ainda!

SÜNDER — (voz cansada) Saía! Por favor...

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Fraco.

SÜNDER — (voz cansada) Não me corrija, me abrace.

HOMEM — (voz suave que vem do lado externo da porta) Tem algo para comer?

(silêncio interno)

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — (sussurra) É uma voz masculina...

(Sünder lacrimeja)

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — (cochicha) E, ainda que em pensamentos, eu sussurro e repito outra vez: é uma voz masculina.

(Sünder, devastado, observa ao redor)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Olhar para o seu último pedaço de pão mordido no prato raso a mesa não era para ser o ato seguinte. Deveríamos pensar no miojo guardado, no café amargo, no sorvete de biscoito no congelador.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim! Sim. Ele pode roubar como roubou o último que permitiu entrar.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Ele pode destruir como destruiu o último que permitiu entrar.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Ele pode matar o que resta de v...

SÜNDER — (grita) Eu não tenho nada para você! Vá embora!

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Grite mais alto.

SÜNDER — Saía! Eu não tenho nada para você!

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele não ouviu ainda.

HOMEM — (voz suave) Não pedi para comer. Não tenho fome. Tenho tudo de que preciso.

SÜNDER — Perguntou por comida!

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Não fale com ele.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — É, não fale com o Homem.

HOMEM — (voz suave) Pois, EU SOU aquele que tem algo para lhe oferecer.

SÜNDER — (entretido) Eu tenho pão!

HOMEM — (voz suave) Não me refiro a alimento sólido.

(Sünder olhou para a mesa)

SÜNDER — (entretido) Eu tenho café... amargo!

HOMEM — (voz suave) Ainda não me compreende.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — O silêncio pode ser a melhor resposta. Funcionava no passado, recorda-se? Ignorávamos a todos até que eles desistiam de continuar a manter contato até que aqui chegamos, nesse nível de contemplação e quietude.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim, papai e mamãe foram embora assim.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Não importa os que se foram, importa os que permanecem a incomodar. Ignore este homem.

SÜNDER — Se ele tiver fome...

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — (Sünder o sente falar ao pé do ouvido) O que você tem a oferecer? Me diga, o que um homem com medo da luz e do calor do sol tem a oferecer? Café amargo e... frio? Miojo estocado e próximo da validade? Me diga, o que você tem a oferecer a alguém novo? Sorvete congelado? O seu último pedaço de pão com manteiga mordido? Como ele reagiria a você? Como você reagiria ao receber um pedaço de pão mordido? Que vergonha nos daria!

(Sünder começa a chorar)

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Não tem nada a oferecer de bom.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Eu sequer olharia para você outra vez.

HOMEM — (voz suave) Tem medo de mim.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Não o responda.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Calúnia! ...Ele está confirmando.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Como ele pode ter certeza?

SÜNDER — (voz embargada) Tem um estranho na minha porta!

HOMEM — (voz suave) Não há como entrar. Preciso que você abra a porta para mim, preciso que queira...

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele tem razão.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Quieto!

HOMEM — (voz suave) ...e eu não sou um estranho.

(Sünder limpa o rosto)

SÜNDER — Eu não o conheço!

HOMEM — (voz suave) Eu o conheço.

SÜNDER — Talvez eu... talvez eu o conheça, mas não sei bem de onde. Não sei se me roubara antes, se me ajudara antes. Se era o amigo de meu pai que um dia nos visitou às pressas.

HOMEM — (voz suave) Eu nunca venho às pressas.

(silêncio interno)

HOMEM — (voz suave) Me conte sobre isso, filho. Quem um dia te roubou?

SÜNDER — Se eu soubesse quem um dia me roubou eu não estaria confuso quanto a você, teria a certeza absoluta de ser ou não você. Quem é você?

HOMEM — (voz suave) Não reconheces minha voz?

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Deveríamos o escutar tanto?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Desista dele que assim ele desistirá de você.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim, não deveríamos o escutar tanto.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Nem nome tem.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Desista dele que assim ele desistirá de você. Eles sempre desistem de você.

(Sünder os ignora)

SÜNDER — Alguém bateu à porta... logo depois que eu entrei.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Cale a boca!

SÜNDER — E eu abri.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não se abra a um homem que sente o seu medo, como um doce perfume, passar por entre as brechas das fitas pretas nas janelas.

(Sünder os ignora)

SÜNDER — Eu estava... eu tinha vivido o pior dos momentos e bem na frente de todos. A menina que eu amava deixou claro a todos que não me amava de volta e ainda preferiu dizer em alto e bom tom que, provavelmente, ninguém nunca tenha me amado daquele forma ou de qualquer outra forma. Meus pais nunca me amaram. Meu irmão nunca me desejou. Eu não namorei apesar de ter passado da fase do começo de tudo... (mexe com as mãos) isso. E teve alguém que bateu na minha porta logo depois que eu entrei para sair deste vexame que era ouvir... a minha vida... sendo contada em público... a todos... por alguém que nem me... me conhecia bem. E ela acertou tudo.

HOMEM — (voz suave) Não era ela à porta.

SÜNDER — Não, não era ela à porta. Era um homem. Um homem alto, de terno preto e bigode fino. Tinha olhos fixos, em um tom de carvão, de feijão queimado... de pão queimado. Tinha cor de queimado. Tinha cheiro de fumaça, tinha um gosto de ganância. E, os pés, ao bater no chão, faziam um barulho como se lá fosse o local ao qual ele guardava em segredo suas moedas.

HOMEM — (voz suave) Como saber o gosto de alguém?

SÜNDER — Provei dele. Provei dele porque o deixei entrar, o deixei sentar-se... na verdade. Estava tudo limpo, estava tudo certo. Eu podia estar mal já... só que a casa ainda estava... inteira. Ele disse que tinha visto tudo, tudo o que ela fez comigo, e que queria me ajudar a não passar por aquilo de novo e me mostrou que bem dentro de seu terno preto, cor de buraco escuro, tinham-se potes pequenos à venda. Ele vendia amor engarrafado. Amor de um pai presente, amor de um pai que só dava presentes, amor de mãe que abraçava e amor de mãe que só falava, amor de um irmão amigo e amor de um irmão briguento, mas amoroso quando tinha que ser. Amor de amor, amor de amizade, amor traído, amor querido. Amor temporário e... tinha amor infinito, era o mais caro.

HOMEM — (voz suave) Você comprou o...

SÜNDER — Não. Nenhum. Eu queria o amor infinito, mas ele me disse que o preço era de uma vida... E... eu... bom... eu pensei em matá-la, eu pensei em dá-la a ele... Ela não me amava, ela não tinha amor, ela era jovem e poderia entrar no lugar do amor infinito. Ela me desfez, ela me desfez em público. Como se tivesse tirado a minha roupa enquanto minhas mãos estavam atadas. Ela não se importou e eu não me importaria. Mas o amor infinito... ele tinha data de validade. Não era legítimo, não era real, era falsificado... E de falso, eu me bastava.

(silêncio interno)

(silêncio externo)

SÜNDER — Já contei essa história muitas e muitas vezes em voz alta. Eu a repassei e a consertei até ficar bela a vista alheia, só que é a primeira vez que a digo em voz alta a alguém de verdade e não inventado. Inventei uns amigos bons, mas não estão aqui comigo agora... Estão em silêncio... Devem estar me pondo de castigo por falar com um estranho... E acabou que eu não estou falando nada de que tinha planejado... É. Ao negar o seu produto, ele me ofendeu. Disse que de fato eu não era digno de nada daquilo. Tentou me convencer depois quando sua ira diminuiu, mas já era tarde. O homem de terno, que eu sequer me recordei de perguntar o seu nome, já tinha me dito que eu não era digno de amor, de nada daquilo que ele vendia. Sua verdade me entrou... O tempo a enterrou em mim. Agora é a minha verdade, graças ao tempo. Você está aqui a mando do tempo? Pois se sim, diga a ele que eu não o perdoo ainda, ele precisará de mais do que isso para me fazer tirar as fitas pretas e as cortinas das janelas. Não me importa o que acontece do lado de fora da minha casa, não me importa que troquei o dia pela noite ou o verão pelo inverno. Gosto desse frio que treme as minhas mãos, que balança as minhas pernas. A dor é a única verdadeira amiga que consegui não deixar de me abandonar em momentos difíceis. Só ela está aqui agora, sequer meus amigos imaginários aceitam falar nesse momento, só a dor está aqui comigo.

HOMEM — (voz suave) Eu estou aqui.

(Sünder, confuso, se sente constrangido)

SÜNDER — ...E... quem é você? ...Está aqui a mando do tempo? Pois foi ele quem me obrigou a pensar os pensamentos que não eram meus antes de tanto tempo passar. O tempo me fez perder minutos que se tornaram horas, sem fazer nada. Eu tive a insolência de procrastinar todo o tempo que o tempo me deu. Eu me perdi na casa de meus pais. Olhe!

(Sünder abre os braços)

(Hesitante, Sünder dá um passo)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Não!

(Sünder para)

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Eu sei o que você iria fazer, iria abrir a porta para ele, mas não o conhece! Ele pode dizer que o conhece e que você tem memória curta para não se recordar, mas lembre-se que temos dores e dores guardadas e estocadas. É claro que não temos uma memória curta, temos uma memória bem rancorosa e ampla. Ele está mentindo para você.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não deixe ninguém te ferir de novo.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Porta fechada é proteção.

HOMEM — (voz suave) Onde eles estão agora?

SÜNDER — Eu mandei os meus pais embora. (disse de imediato) Eu os mandei procurar outro lugar, carregaram o meu irmão menor nas costas. Eles saíram por essa porta a qual você se encontra e, em seguida, achei as fitas pretas, junto à ideia. A ideia estava junto delas, foi fácil pôr em prática. Quando notei, tinha feito o que o homem de terno, de olhos cor de queimado, disse... Ele... Ele tinha me dito, logo depois de eu o expulsar de minha casa, que eu só encontraria a paz quando não encontrasse com mais ninguém. Ele acertou! Aqui há paz, há tranquilidade. Aqui não há dor de decepção, de frustração. Não há traição, impaciência. Eu estou sozinho com a paz, com a harmonia de mim. Eu sei que o alívio de não sentir nada por ninguém também me trouxe a angústia de não sentir nada nem por mim, mas...

(Sünder, lacrimoso, sorri)

HOMEM — Só há você.

SÜNDER — Sim!

HOMEM — (voz entristecida) Mas só há você.

SÜNDER — Sim... Sim. Sim, mas entenda que não há traição (dá de ombros, sem o Homem à porta o ver), só... É, um pouco de solidão. Só que também não há longas conversas e risadas, apenas a tranquilidade de fora e as vozes de dentro. Não há tormento alheio, só há o pessoal. Não há decepção de amores, só há rejeição que vem... de mim. (pigarreou) Não há críticas de terceiros, há somente meu próprio dedo a me mirar. Não há essa felicidade externa. Não há luz.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Estamos falando dos pontos positivos ou estamos...

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Não fale mais com o Homem.

SÜNDER — Sim, eu...

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Ele sequer entrou e você próprio já está distorcendo suas palavras e seus pensamentos que sempre foram concretos. Não seja tolo, dê o que ele merece: o ignore até ele desistir de você. Assim como fizemos com todos os outros.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Só precisamos aguentar um pouco mais. O próprio Homem logo se cansará. Note na voz dele.

SÜNDER — Talvez ele queira conversar.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Lhe apontando suas falhas?

SÜNDER — Ele só disse que eu estou sozinho...

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Ele mesmo te fez repensar suas falhas.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Como ele foi baixo, não deveria mesmo se importar com o que um estranho diz do outro lado da sua porta.

SÜNDER — (voz baixa) Mas vocês se importam tanto... com o meu importar... quanto a importância... que esse estranho me oferece.

(silêncio)

HOMEM — (voz suave) Ainda estou aqui.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Não! Nem ameace abrir sua boca, feche os olhos e mentalize um homem de terno indo embora da sua porta.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Ele com certeza deve estar de terno como o primeiro esteve. Ele claramente deve ter olhos cor de queimado como o primeiro tinha. Ele tem o mesmo timbre de voz...

SÜNDER — Não achei...

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — A sombra faz o mesmo formato. Olhe!

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Você não tem nada a oferecer a ele. Você não tem alimento decente, você não tem um local adequado para ele passar a noite. Pode estar frio do lado de fora, que aqui ele passaria o dobro das tremedeiras! Pode estar quente do lado de fora, que aqui ele perderia o dobro de suor!

HOMEM — (voz suave) Ainda estou aqui.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Pobre homem, você não tem sequer um local com aparência agradável aos olhos. Abra os olhos outra vez, querido. Olhe a sua direita, essa cozinha imunda. Xícaras quebradas, pratos sujos, talheres tortos e panelas que somem dentro de sua própria casa. Tudo sob a pia.

HOMEM — (voz suave) Ainda estou.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Eu escolho a esquerda. Veja, a sala de estar é a porta de entrada de qualquer residência e a nossa está escondida. Não vejo toda a sala! Está sob as calças rasgadas, as cuecas furadas, as meias sem pares, as blusas manchadas. Eu vejo até sapatos sem sola, seus favoritos estão sem sola. Como pode ter sido tão desmazelado consigo mesmo?

SÜNDER — (voz para dentro, choroso) Sempre concordamos... que eu estava dando... o meu melhor.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Sim. Mas entenda, se este é o seu melhor para si mesmo, imagine o que tem a ofertar a um homem que sequer viu o rosto ainda?

SÜNDER — (voz para dentro) Ele disse que me conhecia...

HOMEM — (voz suave) Ainda estou.

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — Qual versão?

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Sim! Qual parte de você?

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — (ao pé do ouvido esquerdo de Sünder) A versão que tinha dado certo até então ou a versão que achávamos que estava no topo? A versão que foi humilhada em público ou a versão que foi abusada às escondidas pelo amigo do seu pai que veio às pressas?

AMIGO IMAGINÁRIO 1 — (ao pé do ouvido direito de Sünder) A versão que achava que iria salvar o mundo inteiro ou a versão que descobriu que logo um mundo interno, cheio de problemas e dores, iria nascer dentro de si? A versão ainda sem rachaduras ou a versão que caiu no chão, pele de porcelana?

SÜNDER — (cabisbaixo) Não sei.

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — O quê?

SÜNDER — (voz entristecida) Qual eu sou hoje. Eu não sei qual versão de mim eu estou vivendo todas as manhãs.

(silêncio interno)

(silêncio externo)

AMIGO IMAGINÁRIO 2 — Não precisa mais se preocupar.

AMIGO IMAGINÁRIO 3 — Você foi um bom menino.

SÜNDER — Por quê?

(a sombra atrás da porta some)

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