Clara dos Anjos (1948)

By ClassicosLP

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Obra do brasileiro Lima Barreto. More

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Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi?

Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô.

Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.

Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que, no seu ativo, o senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas.

Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advogados, injuriando as suas vítimas, empregando os mais ignóbeis meios da prova de sua inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do casamento forçado ou de alguns anos na correção.

Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais, irmãos, tutores, punham-se em campo para processá-lo convenientemente, ele corria à mãe, dona Salustiana, chorando e jurando a sua inocência, asseverando que a tal fulana — qualquer das vítimas — já estava perdida, por esse ou por aquele; que fora uma cilada que lhe armaram, para encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem de boa família etc. etc.

Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.

A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta.

Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento pela polícia.

— Mas é a sexta moça, Salustiana!

— Qual o quê! Calunia-se muito...

— Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no "Joie de Vivre"...

— Mas tudo isto já passou, Maneco. Você quer que o seu filho vá para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não quero.

— Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não estava desmoralizando todo o dia a casa.

— Pois você faça o que quiser. Se você não der os passos, eu dou. Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço — rematava a mulher com orgulho.

O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério. Estreito de ideias, familiarizado no emprego público que, há cerca de trinta anos, exercia, ele tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta no seu comércio com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas as exibições e exageros sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-los lucidamente e puni-los consoante a natureza das suas respectivas faltas.

Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa reta e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de aros de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpático e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata, dos seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção em que seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confrontando a severidade de sua vida com a crapulice de Cassi.

Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade.

Quando se lhe perguntava — seu pai, o que era? — dona Salustiana respondia: era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente do Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com muito sacrifício e graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso às mãos, pudera educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera.

A vaidade de dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso; e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que as suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô como se fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a mãe; mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salustiana casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia provas, à noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se julgavam prestes a se "formar", a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta Escola Normal desta Capital.

Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão, não só pela baixeza de sua conduta moral — o que era merecido — mas, também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos educados.

Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra, a não ser a mãe. As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o severamente e as filhas calavam-se.

Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de Cassi, que fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de casa e da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à intervenção de dona Salustiana; mas o foi em meio.

Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça muito pobre, que morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do Exército, e ela, a Nair, era filha única. Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encaminhando a filha, nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para música e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria. Contava dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos muito negros, pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos.

Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a manobra, proibiu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala, quando estivesse dando lição a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e, por isso, o respeitasse deveras; mas porque "o velho", severo como era, bem podia pô-lo de vez na rua. Se isso viesse a acontecer, não teria para onde ir, e o pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em comissões de agente de empréstimos etc., seria absorvido para a casa e comida, pouco ou quase nada sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto tudo, estava perdido. Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar...

Considerando tal hipótese, não relutou em obedecer à irmã; mas começou a cercar Nair "por fora". Quando ela ia sair, precedia-a, ficava na porta da padaria, cumprimentava. Afinal, pôde conversar e declarar-se com a fatídica carta, que era a reprodução de um modelo que lhe dera um companheiro de malandragem, o Ataliba do Timbó, o qual, por sua vez, tinha obtido de um poeta "porrista" que morava na Piedade. Esse poeta, a quem o "intruso" Ataliba qualificava tão superiormente e de tal maneira, era o célebre Leonardo Flores, que o Brasil todo conhece e viveu uma vida pura, inteiramente de sonhos.

Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de confusos sentimentos, sem ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou nas lábias de Cassi e deu o passo errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que se denunciava pelo estado do seu ventre. Correu ao senhor Manuel, que não estava. Falou a dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente:

— Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é maior.

— Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora.

E pôs-se a chorar e a soluçar.

Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável:

— Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio.

A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:

— Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para mim e para a senhora e família.

— Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa filha...

Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a mão à desolada mãe, como que a despedindo.

A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do delegado distrital e expôs tudo. O delegado disse-lhe:

— Apesar de estar ainda não há seis meses neste distrito, sei bem quem é esse patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo num bom e sólido processo; mas não posso, no seu caso. A senhora não é miserável, possui as suas pensões de montepio e meio soldo; e eu só posso tomar a iniciativa do processo quando a vítima é filha de pais miseráveis, sem recursos.

— Mas, não há remédio, doutor?

— Só a senhora constituindo advogado.

— Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso? Minha filha, desgraçada, meu Deus!

E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou, o delegado mandou que um empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em casa e ficou a pensar nas baixezas, nas dores, nas misérias que as casas encobrem e que, todo o dia, descobria, por dever de ofício.

No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Os jornais esgravataram o acontecimento e contaram as causas do suicídio com todos os pormenores. Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem o jornal, saltou na primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro que nem um furacão, transtornado de fisionomia, com ríctus de ódio que o fazia outro homem muito diferente daquele reservado, bondoso e simpático burocrata que era.

— Quedê ele?

— Quem? — perguntou-lhe a mulher.

— Ele, esse Cassi — fez ele com os punhos cerrados, a errar o olhar desvairado, pelos quatro cantos da sala.

— Mas que há, homem? — fez a mulher assustada.

— Lê isto.

Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.

— Mas que culpa tem...

Não acabou a frase, dona Salustiana; o marido logo a interrompeu:

— Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato.

As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão de ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:

— Sossegue, papai; sossegue.

Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a desonra de Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua discípula gratuita; e assim falou ao pai:

— Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe Nair para aqui, a fim de estudar música comigo.

Depois de uma pausa acrescentou:

— Que se há de fazer? É a fatalidade.

— Não o quero mais aqui — repetiu o chefe da família.

Os jornais não se deixaram ficar na simples notícia do suicídio. Revolveram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de sua mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha uma fazendola em Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se organizar toda a rede de insídias, de cavilosas mentiras, de falsas promessas, com que ele tinha cercado a pobre e ingênua vítima, cuja desonra determinou o suicídio da mãe. Ele, como de hábito, não falava de seus namoros a ninguém, muito menos a seu pai e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança da pobre menina, dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou textualmente: "confessei a mamãe que lhe amava loucamente" e avisava-lhe: "privino-lhe que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu sofrimento"; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe, acabava: "Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que diçestes na tua cartinha" etc. Confessava-se um infeliz "que tanto lhe adora" e lamentava não ser correspondido.

Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse, contava: "tão de pressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o que você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis na água fria" etc. etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida feminina e aduzia: "foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S. sabe de teus particulares moral" (sic).

No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim que eu devo fazer 'se você não quer ser inteiramente minha' como eu sou teu".

Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua irmã Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as despudoradas aventuras do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas, nos arredores do seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã, mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho como aquele, ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa.

Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das primeiras estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro, de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo instruções. A mãe respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria sempre onde comer e dormir.

Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara, como recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café, no compartimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã que despertou no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas de galos de briga — o bicho mais hediondo, mais antipático, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam em ordem; sua mãe cuidara deles, como lhe pedira.

Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura, anteriormente houvesse tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou comprar sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as operações possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com "volta", vendia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a criar e educar, presenteava pessoas importantes, das quais supusesse, algum dia, precisar do auxílio e préstimos delas, contra a polícia e a justiça.

Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver se tinham bouba ou gosma.

Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos.

Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro.

Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então, sim...

Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito.

Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se, na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu importância. Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem, palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central, e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta-se o cavalheiro e procura com o olhar o senhor Cassi.

— É o senhor?

Cassi Jones responde:

— Sou eu.

— Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth.

Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido, que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:

— O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas habilidades, senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando há pouco, já tive notícias do seu valimento.

Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos. Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:

— O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?

Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:

— Não sei absolutamente.

— É minha irmã — afirmou o desconhecido.

— Também não sabia — respondeu docilmente o terrível Cassi.

— Não podia saber naturalmente — justificou o rapaz. — Saio cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço na cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.

Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.

Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando calma, disse:

— Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido à senhora sua irmã.

— É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la — confirmou o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista:

— Quer tomar alguma coisa mais?

— Não; muito obrigado.

Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.

Um deles perguntou-lhe:

— O que queria aquele sujeito contigo?

— Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediu-me que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.

Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele não os amava, como não amava ninguém e com ninguém simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito em torno dele, por todos os rapazes daquelas bandas.

Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem-apessoado, mas antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo, e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro, e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações, no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre muito suburbanamente elegante e tivesse vários uniformes de football.

Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football, em que era considerado bom jogador — "plêiel", como dizem lá.

De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente, porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários, para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho, e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.

Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, nos tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê!

Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas ideias; não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava, vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de pedreiro, apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras habilidades desse jaez.

Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes, todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama "cabeça de mamão-macho".

Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços — ir às compras, ao açougue, lavar a casa — dava-lhe um barracão na chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às refeições. Encontrava-se nessa ruína humana o melhor da turma e o único que não tinha maldade no coração. Era um ex-homem e mais nada.

O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que se faziam moças.

O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout court. Nele, talvez houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua profissão consistia em furtar, no trem, chapéus de sol, bengalas, embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos. De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação pouco frequentada e, quando o trem tomava movimento e impulso, arrebatava rapidamente os chapéus dos passageiros, através da portinhola, principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia os chapéus de sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça, talheres etc.

Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos, ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele tinha também o hábito de arrebatar as notas do Tesouro das mãos das crianças, quando as encontrava sós também a caminho das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à mostra, na imprevidência natural de crianças.

Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que a sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril. A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe, que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações de ternura quando estava às voltas com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.

A sua educação e instrução foram deveras descuradas. Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção da família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas horas passava em casa, vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele, por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia "gazeta", correndo pelas matas das cercanias da residência dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão pela cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava durante as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força moral que o comprimisse; e o pai seria a única.

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos "Salesianos" de Niterói. As informações semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro meses de colégio, não sabemos que torpeza cometeu no colégio que, uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo, que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico:

— Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade. Que castigo, meu Deus!

A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse.

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou:

— Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.

Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição, evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas, chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava arrancar encanamentos de chumbo para vender.

O pai, então, voltou à ideia de pô-lo em uma oficina, a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de tipógrafo.

No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e a meia.

A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava.

Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo é que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos que antevia.

Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices...

Definida como o protótipo de uma classe média suburbana, a mãe de Cassi passa a ser o grande alvo do sarcasmo de Lima Barreto. A arrogante personagem personifica as ambições aristocráticas de parte da burguesia suburbana, intentando distinguir-se do restante da população que residia nos subúrbios. Com isso, Lima Barreto procura demonstrar como existia certa hierarquia social nos bairros suburbanos, desmentindo a ideia equivocada de um subúrbio socialmente homogêneo. A desigualdade se media pelas casas, pelas cores, pelas ruas, assim como pelo histórico ostentado por cada família, como no caso da personagem. Essa aristocracia curiosa seria composta por "uma grande parte dos elementos médios da cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos militares, médicos de fracos rendimentos, advogado sem causa etc." ("Esta minha letra...", in: Gazeta da Tarde, 28 de junho de 1911).

Cassi seria um exemplo excepcional de "modinhoso". Geralmente homens de origem humilde, muitas vezes mestiços, eram aqueles que se dedicavam ao canto de modinhas e ao violão, por puro entretenimento. No entanto, se em Triste fim de Policarpo Quaresma o "modinhoso" representado por Ricardo Coração dos Outros é um personagem de caráter e prestativo, aqui o "modinhoso" Cassi representa o outro lado da moeda. A figura do vilão é associada à prática musical. Lima Barreto expõe a sua aversão pelo uso vulgar da música. Enquanto o vaidoso Ricardo Coração dos Outros se dedicava a tocar nos distintos lares do subúrbio e era reconhecido como um artista, Cassi empregava o instrumento em suas serenatas e aventuras de capadócio. Contudo, no ambiente social de ambos os casos, o violão é visto ainda com certo preconceito, atraindo olhares de desconfiança, principalmente da polícia, uma vez que era associado à vida boêmia.

Indivíduo charlatão e trapaceiro que, de noite, vai tocar e cantar sob as janelas da namorada. Tipo pernóstico e maneiroso, indivíduo do povo que se dá ares de importância.

Rua que se transformou em símbolo das novas vogas e costumes, no Império e também na República. A influência francesa, e depois estrangeira, teve a rua do Ouvidor como porta de entrada. A rua tornou-se um grande símbolo por conta da grande diversidade comercial, dos negócios pertencentes a estrangeiros (como as modistas francesas), e também das casas de entretenimento. Eram confeitarias, cafés, cinematógrafo, livrarias e lojas com toda sorte de novidades europeias — a "via dolorosa dos maridos pobres", definia Machado de Assis. Apesar da abertura da avenida Central (atual avenida Rio Branco), no início do século xx, a Ouvidor permaneceu famosa. Lima Barreto ironizava as modas artificiais que imperavam no local, mantendo uma relação tensa com essa rua. Frequentador desde 1897, quando tinha dezesseis anos (momento em que ingressou na Escola Politécnica, situada no Largo de São Francisco, muito próximo da Ouvidor), teceu críticas à importância que essa via ganhava no imaginário carioca, em contraposição do extenso e desacreditado subúrbio. Ela não conteria toda a verdadeira alma e substância da cidade. Lima acusava os cariocas de conhecerem o bairro de moradia, a avenida Central e a rua do Ouvidor, desprezando todo o restante, por ele valorizado. Referia-se, com saudosismo, aos subúrbios cariocas, atravessados pelos trilhos do bonde que conduziam Lima até o centro da cidade e "onde toda a gente se encontra no Rio, isto é, a Ouvidor".

O termo francês dégager significa "desenvoltura", "desprendimento", "despojamento". Referência a um desembaraço no vestuário característico das mulheres residentes nos subúrbios cariocas.

Brincadeira com a imagem de janota — indivíduo que se gaba por se vestir de maneira apurada.

Qualidade de estar mal trajado, mas manter-se pretensioso mesmo assim.

Forma de penteado masculino, característico da época, em que uma pequena pasta de cabelo, formando uma onda, é puxada para a testa.

Ato de tirar a virgindade, constituído como crime pelo Código Penal de 1890, consistindo em "deflorar mulher de menor idade [21 anos], empregando sedução, engano ou fraude". A pena era a prisão de um a seis anos. Mas no artigo 276 desse código havia, para determinados crimes (defloramento, estupro e rapto), a possibilidade da extinção da punição do acusado quando a queixa resultasse no casamento com a vítima. Tal medida denota a valorização da instituição matrimonial nesse contexto social, também representando uma maneira de restituição da dignidade à mulher deflorada e, por conseguinte, à sua família. Contudo, havia os atos que não se adequavam a esse artigo e não escapavam à punição do acusado por intermédio da contratação matrimonial. Eram eles, os crimes de corrupção de menores, atentados ao pudor e atos libidinosos.

Vale a pena reparar como é nesse romance que Lima Barreto, sempre atento às cores que no Brasil se combinam com hierarquias sociais, está particularmente preocupado com essas "classificações raciais". Em sua obra é comum o emprego de diversas designações para descrever a tonalidade da pele, como crioulinha, branquelo e mulata, por exemplo.

Termo pejorativo para designar uma mulher como prostituta.

O mesmo que relacionamento.

Modelo de óculos usado do século xv ao início do xx, cuja fixação era feita apenas apoiando-se sobre o nariz, uma vez que sua estrutura era desprovida de hastes.

Tradicionais colégios internos, que formavam professoras normalistas.

Trata-se possivelmente de uma referência irônica de Lima Barreto a sua própria profissão como amanuense na Secretaria da Guerra (na qual ingressou em 1903 e aposentou-se em 1918) ou mais uma crítica ao funcionalismo público. O escriturário cuidaria de tarefas puramente burocráticas, como o protocolo; um cargo menor. Vale lembrar que em Triste fim de Policarpo Quaresma, o personagem-título era subsecretário no Arsenal de Guerra. Esse inicialmente funcionava na Ponta do Calabouço, no conjunto arquitetônico que constitui hoje o Museu Histórico Nacional, no centro do Rio de Janeiro. O novo Arsenal foi inaugurado em 1892 e até hoje permanece em funcionamento como organização militar do Exército Brasileiro.

A Guerra do Paraguai ocorreu de 1865 a 1870. A princípio anunciado como um embate breve, acabou durando cinco longos anos e tendo consequências graves para todos os países envolvidos. No caso do Brasil, uma de suas consequências foi a criação do Exército como instituição, e toda uma nova relação de galhardia e honra. Os herdeiros da Guerra do Paraguai ostentavam suas insígnias como se fossem troféus a dignificar sua vida presente. Além do mais, os próprios descendentes pareciam herdar essa concepção de status social.

O Instituto Nacional de Música (atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro), nome do antigo Conservatório de Música, criado em 1848, que com o advento da República teve o nome alterado. Ele ficava localizado no largo da Lapa e correspondia a uma espécie de "trampolim" para as moças estudantes conseguirem um namoro e possível casamento com um engenheiro ou advogado: um "doutor".

O ensino oferecido às estudantes pela Escola Normal, criada no Rio de Janeiro, em 1880, era visto negativamente por Lima Barreto, uma vez que o curso secundário para moças estava praticamente circunscrito a essa instituição. Em uma crônica deixou sua visão pessimista — "fico interessado em achar no meu espírito uma solução que satisfizesse o afã do milheiro dessas candidatas a tal matrícula, procurando com isso aprender para ensinar, o quê? o curso primário, as primeiras letras a meninas e meninos pobres, no que vão gastar a sua mocidade, a sua saúde e fanar a sua beleza. Dolorosa coisa para uma moça..." (ABC, 8 de junho de 1918).

Ilustre, celebrado, famoso.

Nessa época, as brigas de galo faziam sensação. No romance todo Lima estabelece um paralelo entre a falta de cuidado e compaixão de Cassi para com suas "vítimas" — que uma vez conquistadas perdiam, para ele, todo interesse — e sua dedicação continuada por esses bichos, considerados pelo escritor como "odiosos". Em 1873, no Jornal das Famílias, Machado de Assis declarava que a "briga de galos é o Jockey Club dos pobres". A proibição das rinhas de galos só se deu em meados do século xx.

Aquele que toma "porres", permanecendo insistentemente ébrio.

Bairro do subúrbio carioca localizado entre o Méier e Madureira, fazendo limite com outros bairros suburbanos. Sua estação de trem foi inaugurada em abril de 1873. Foi na Piedade e no Encantado, um dos bairros vizinhos, que se inaugurou a luz elétrica nos subúrbios, em 1905. O bairro tornou-se conhecido por nele ter sido assassinado Euclides da Cunha pelo amante de sua esposa, em 1909.

A legislação de amparo financeiro aos herdeiros de militares prevê que mães, filhas e viúvas de militares tenham direito à percepção do meio soldo das patentes de seus respectivos maridos ou pais e do montepio militar.

Desinfetante e antisséptico, formado por cresóis e sabão de potassa, em óleo de linhaça.

Como em outros de seus romances, também este traz vários traços autobiográficos. Lima Barreto foi igualmente enviado pela família para o afastado bairro de Guaratiba, no Rio de Janeiro, em 1914, após uma sequência de delírios presenciados por todos em sua casa, em Todos os Santos. No mesmo ano, fazia a seguinte anotação: "Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei indo para a loucura?" (Diário íntimo). Na cidade de Guaratiba ficou na casa de seu tio Bernardino Pereira de Carvalho (irmão de sua mãe, Amália Augusta) onde permaneceria até curar-se dessa primeira séria crise de delírio. Agravada a sua crise, foi conduzido pela polícia de Guaratiba ao hospício, pela primeira vez. Em sua primeira internação no Hospital Nacional de Alienados, em agosto de 1914, a passagem por Guaratiba foi descrita no seu prontuário de observação: "indo à casa de um seu tio em Guaratiba, preparam-lhe uma assombração, com aparecimentos de fantasmas, que, aliás, lhe causam muito pavor. Nessa ocasião, chegou o tenente Serra Pulquério, que, embora seu amigo de pândegas, invectivou-o por saber que preparava panfletos contra seus trabalhos na vila proletária Marechal Hermes. Tendo ele negado, foi conduzido à polícia, tendo antes cometido desatinos em casa, quebrando vidraças, virando cadeiras e mesas. A sua condução para a polícia só se fez mediante o convite do comissário, que lhe deu aposentos na delegacia até que transferiram-no para a nossa clínica. Protesta contra o 'sequestro', pois vai de encontro à lei, uma vez que nada fez que o justifique" (A vida de Lima Barreto, p. 367). A viagem de Guaratiba até o Hospital Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, dentro do carro-forte da polícia, foi recuperada no conto "Como o homem chegou", datado de 18 de outubro de 1914. Como que para não se esquecer, anotou — "Estive no hospício de 18-8-14 a 13-10-14" (Diário íntimo).

Em vários textos, Lima brinca com o uso do "brasileiro falado e do português escrito".

Antes da estação do Engenho de Dentro havia, no início do século xx, dez estações de trem. Eram, a partir da Central do Brasil, as seguintes — Lauro Muller (atual Praça da Bandeira), São Cristóvão, Derby-Club (atual Maracanã), Mangueira, São Francisco Xavier, Rocha (hoje desativada), Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo e Méier.

Termo pelo qual é conhecida a briga de galos, e também o local em que são realizadas.

Referência ao jogo de dados, que compreende realizar pontos ou combinações com os dados.

Enfeitados, airosos, elegantes.

Virose que, nas aves, se caracteriza por nódulos epiteliais na cabeça, cristais e barbelas.

Doença das aves, principalmente dos galináceos, que se manifesta pelo surgimento de uma película na ponta da língua.

A presença da malandragem como um tipo de comportamento que se via espalhado pelas ruas, era, na visão de Lima Barreto, um elemento nocivo para a construção da sociedade brasileira. Contudo, sua crítica à malandragem não se restringia àquela praticada por elementos como Cassi, mas por indivíduos que circulavam por outras esferas, como a burguesa, intelectual, burocrática, político-administrativa e literária.

Em francês, "armamento", "equipamento".

Bebida alcoólica, servida como aperitivo e produzida com vinho branco com infusão de certos vegetais e outros elementos, como baunilha e noz-moscada, triturados e colocados em sachês ou pela adição de essências aromatizantes.

Expressão latina que qualifica evento súbito, repentino.

O mesmo que desviar de um assunto, fazer uso de subterfúgios ou de outras tentativas para não enfrentar um assunto.

Termo que indica ação executada repetidas vezes.

Antigo bairro existente próximo ao bairro de Madureira. Este contava, desde junho de 1890, com uma estação de trem. Em fevereiro de 1897 foi inaugurada a estação no pequeno bairro de Dona Clara, com o fim de acabar com um percurso giratório que os trens eram obrigados a executar, pois a linha férrea saía da sua rota normal para fazer uma grande curva em torno dessa estação, que ficava onde hoje é a praça Patriarca, em Madureira. Essa estação foi construída na antiga chácara de dona Clara Simões. Em 1937, com a eletrificação da E. F. Central do Brasil, a estação de Dona Clara foi desativada, já que os trens elétricos não precisavam dar a volta.

Espécie de jogo de cartas.

O mesmo que "corrompido", "subornado", "comprado".

O jogo do bicho nasceu em 1890, com o objetivo de angariar fundos para a manutenção do Jardim Zoológico criado dois anos antes, pelo barão de Drummond, no bairro de Vila Isabel. Seu criador obteve permissão do governo para a realização de jogos lícitos nos limites do Jardim, que se dariam sob fiscalização policial. Nesse momento, o Código Penal vetava os jogos de azar. Para atrair o público, além dos jogos de bilhar, carteado, jogo da pelota e frontão, passou-se a estampar um animal em cada ingresso e promover a entrega de um prêmio aos visitantes cujo ingresso portasse a figura do "animal do dia", previamente escolhido pela administração do zoológico. Dependendo do número de bilhetes vendidos e da incidência do animal escolhido nos bilhetes impressos, o prêmio podia chegar até 20 mil-réis. O sucesso inicial do jogo deu lugar à intensa especulação de apostadores em busca de dinheiro fácil, despertando a desconfiança das autoridades e levando o jogo a ser enquadrado formalmente como jogo de azar. Sua proibição formal, em 1895, e o sucesso que o jogo alcançava contribuíram apenas para que ele se espraiasse para outros espaços públicos. Essa irradiação foi muito favorecida pelo crescimento da cidade entre 1890 e 1910, que presenciava a intensificação do mercado de loterias lícitas e ilícitas e dos jogos de azar. O jogo passou por adaptações, na numeração e nas formas de sorteio e venda, e manteve-se em intensa propagação, resistindo à perseguição do poder público. Segundo Lima Barreto, uma vez caído no gosto popular, não haveria mais forma de ser extirpado o jogo do bicho, "uma das mais sólidas instituições nacionais" ("Bônus da Independência", in: Careta, 17 de dezembro de 1921).

Aparência muito magra.

Após a abolição da escravidão, uma verdadeira mania de sapatos instaurou-se no país. Como em muitos locais ainda se proibia aos escravos o uso de sapatos, imediatamente após a manumissão oficial o uso de calçados virou símbolo de distinção e até de liberdade.

Enredos, intrigas, trapaças.

Seguidor, partidário, adepto.

Indivíduo que canta ou compõe modinhas.

Expressão francesa que indica "nenhuma ideia a acrescentar", "sem mais nada".

Pedregoso, desértico.

"Fazer gazeta" é o mesmo que faltar às aulas ou a outro compromisso.

Rocha é um bairro do subúrbio carioca, que faz limite com Todos os Santos, Riachuelo e Triagem. Sua estação de trem foi inaugurada em dezembro de 1885 e hoje encontra-se desativada.

Atitude feita de forma aberta, escancarada, a descoberto.

Referência aos colégios fundados pela ordem Congregação de São Francisco de Assis, criada em 1859, na Itália. Trata-se de uma ordem religiosa dedicada essencialmente ao ensino. A cidade de Niterói recebeu o primeiro colégio salesiano, instalado no bairro de Santa Rosa, em 1883.

Lima Barreto insere aqui outra possível referência à sua biografia. João Henriques de Lima Barreto, seu pai, dedicou-se à tipografia durante muitos anos. Em setembro de 1921, o escritor escreveu — "João Henriques de Lima Barreto. Nasceu em 19 de setembro de 1853. Foi chefe de turma das oficinas de composição da Imprensa Nacional, depois de trabalhar como tipógrafo em várias oficinas particulares e de jornais do tempo; mais tarde, chegou a mestre da referida oficina da mesma Imprensa, donde foi demitido com o estabelecimento da República, em 1889". Seu pai traduziu uma obra do célebre impressor francês Jules Claye, o Manual do aprendiz compositor, publicada em 1888. Segundo Francisco de Assis Barbosa, além da tradução do francês realizada, João Henriques adaptou as lições às condições da Imprensa Nacional (A vida de Lima Barreto, p. 51).

Gíria que significava um sujeito não só insignificante, como também algo odioso e imoral em seu comportamento.

Interessante que Lima pense em psicologia e inconsciente nesse momento em que a prática acabava de entrar no país; sobretudo as teorias do inconsciente de Freud. Na biblioteca, nomeada de Limana, havia alguns livros sobre psicologia, e em algumas crônicas o escritor revela o interesse despertado pela leitura de obras de psicologia moderna.

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