Quando a mente se entrega para o que está acontecendo no presente e não buscando novos horizontes, o corpo vai ficando cada vez mais fraco.
A partir do momento que aquela marca queimou sua pele, a raposa branca percebeu que não haveria mais escapatória. Além de sentir que não poderia mais ter história nesse mundo e apenas aceitou o que restou de sua vida, que já estava em posse de um homem maldoso e sem índices de bondade dentro de seu coração, também sentiu que o mundo não se alinhava como achava que deveria ser. O que deixou-o completamente rendido à desistência.
Ele não havia desistido porque queria e sim porque doía. Doía ter perdido sua família. Doía não ter sido o suficiente para salvá-los. Doía se sentir vulnerável. Em um resumo, doía realmente tudo dentro de si e conforme esse sentimento se alastrava dentro de seu corpo inteiro durante anos, sua alma se tornava mais triste a cada novo dia. E, uma alma triste é capaz de matar mais rapidamente do que uma bactéria.
Nesses anos que se passaram, a raposa nunca ousou levantar um único dedo contra qualquer guerreiro, torturador ou superior. Em vista as opiniões dos outros, ele era um dos prisioneiros mais obedientes dentro daquele lugar cheio de pessoas consideradas como "vermes" para a sociedade.
Entretanto, essa sua "obediência" tinha um propósito. A raposa branca agiu pela lógica. Se não fosse contra os homens que vestiam hanfus azuis, eles poderiam não o machucá-lo tanto e deixá-lo de lado por um pouco de tempo, dando atenção aos outros prisioneiros. Para ele, um pouco de tempo a sós já era o suficiente para pensar direito.
E, um dia após ser usado em nome do clã Fai dentro do Campeonato dos Peões, criado por Hong Lan, as suas razões para continuar existindo foram completamente mudadas.
Dois guerreiros, que estavam sentados próximos a cela de prisão da raposa, começaram a conversar entre si em um tom de voz que fez com que a criança prestasse atenção e sentisse diversas emoções dentro de seu coração.
"Você soube da novidade? Líder Fai e sua esposa, Fai Wen, estão prestes a ter um filho!", o guerreiro com uma cicatriz perto da boca comentou, cruzando os braços. "Espero que realmente venha um herdeiro. Pois, se vier uma filha... Líder Fai irá gritar e muito... Pode até chegar a desertar sua própria esposa!"
Os olhos roxos da raposa branca brilharam. Ele pensou que tinha escutado errado, mas a segunda parte da frase daquele guerreiro só confirmou ainda mais que não estava alucinado.
O líder Fai iria ter um filho.
"É compreensível. Mulheres só trazem problemas. Uma mulher sendo a herdeira do poder? Sem chances. Fai Wen que tenha a benção do Imperador de Jade e traga a ela um filho. Seria menos um problema em sua vida", o outro guerreiro mais musculoso respondeu, limpando a boca em seguida, por conta do pó que tinha no lugari.
"Mas... Em nosso passado, já tivemos mulheres guerreiras. Por que não poderia existir uma líder de um clã?"
Quando o guerreiro da cicatriz questionou o outro, a raposa branca, que escutava tudo atentamente, tremeu os lábios. Sua mente trouxe à tona a imagem de sua irmã, JiYing, a doce e brincalhona raposa alaranjada, lutando contra o líder Fai em seus últimos momentos de vida. Se alguém soubesse de sua história e analisando-a de seu ponto de vista, possivelmente a consideraria como uma guerreira, que lutou bravamente contra seu inimigo e a favor de sua família.
"Essas mulheres guerreiras podem até ter existido, mas foram poucas. Por isso não devem ganhar tamanha atenção e representação", o guerreiro com músculos definidos cruzou os braços e olhou estreitamente ao seu colega de trabalho. "E por que está me fazendo tantas perguntas? Se está com dúvidas sobre as posições de poder entre homens e mulheres, vá até o clã Hong e pergunte a Hong Wu, aquele homem sabe de muita coisa."
A conversa continuou e a raposa branca ouvia tudo com extrema cautela.
"Aquele cultivador me dá arrepios... Enfim! Podemos voltar ao assunto sobre o futuro herdeiro do clã? Quando será o nascimento?", o guerreiro da cicatriz perguntou, coçando a nuca. "Temos servas curandeiras o bastante para um parto?"
"Claro que temos. O líder Fai já organizou tudo para o nascimento da criança. Aliás, está previsto para essa semana. O tempo passou muito rápido!"
Não se importando com as ordens de permanecer em silêncio, a raposa branca assustou os guerreiros quando ergueu todo seu pequeno corpo e agarrou os bastões de ferro da cela, a fim de chamar a atenção.
"Quanto tempo eu estou aprisionado?", a criança perguntou, em um tom de voz assustador e olhando diretamente para o guerreiro que tinha uma cicatriz.
"E isso importa?", o guerreiro musculoso retrucou, chegando mais rente a cela. "Por que um yaomo se importaria com o tempo?"
"Pelas minhas contas, você está aqui por um bom tempo... Uns dois anos? É um chute!", o outro respondeu, já praticamente com a cara grudada aos bastões de ferro, deixando o guerreiro musculoso confuso. Pois ambos sabiam que não deveriam responder quaisquer perguntas àquele prisioneiro e muito menos chegar tão perto.
"O que há com você? Se o líder Fai souber que você deu respostas a essa hulijing, nós dois seremos mortos!", o guerreiro musculoso disse em um tom de voz mais alto, puxando o outro pela gola de sua vestimenta.
A hulijing olhou para o outro guerreiro e sorriu, estendendo o braço para acariciar os cabelos do homem que estava com o rosto extremamente próximo dos bastões de ferro e sequer conseguia mover um único músculo.
"Líder Fai pensou bem. Ao conversarem comigo, vocês facilmente poderiam ser levados pelas minhas palavras", a raposa branca passou seus dedos leves no rosto do guerreiro, que já estava com um olhar desesperado em seu rosto. "Devo admitir... Nesses últimos anos, eu não tinha razões para continuar vivo. Mas, depois dessa notícia grandiosa, eu devo mudar minha história. Devo... Construí-la novamente."
O guerreiro musculoso olhou para o menor com uma expressão desordenada. Porém, a pequena raposa não deixou-o pensar muito sobre suas novas ações e apenas ativou seu maior poder como uma hulijing.
O poder da "lábia".
Ele nunca manipulou um humano, mas chegou o momento de testar e ainda tinha duas vítimas para isso. A primeira, já frente aos bastões de ferro, teve sua respiração rompida assim que a mão daquela pequena criança, perfurou seu peito e com apenas um puxão, arrancou tanto seu coração quanto a energia vital de todo seu corpo.
"Você... Estava fraco... Como...", o guerreiro que ainda estava vivo gaguejou, caindo de joelhos no chão e não conseguindo mais se mover. "Por que... Eu não consigo..."
"Se mexer? A resposta é tão óbvia...", a raposa branca suspirou, jogando o coração humano no chão e apenas lambendo o sangue que derramou em suas mãos. Enquanto realizava aquele ato, tomou também uma nova decisão.
Mudou a sua versão corporal para uma de um jovem.
Seu corpo se tornou mais definido, seus cabelos cinzas chegaram quase ao tamanho da cintura e como característica mais marcante em seu perfil, seus olhos roxos estavam mais vivos como nunca. Deixando claro que ele estava pronto para sua transformação, como yaomo e como homem.
"Respondendo à primeira pergunta, eu estava com dor. Dor de não saber mais que rumo tomar e apenas aceitar o meu destino como prisioneiro. Por isso estava fraco aos olhos dos humanos. Mas, a vida realmente é uma caixinha de surpresas...", a raposa branca sorriu, olhando para sua nova versão com um grande orgulho. "Agora, respondendo sua segunda pergunta. Seu corpo não se mexe, pois está com medo e eu apenas o manipulei para sentir ainda mais temor por mim. É simples e óbvio."
Sem esperar uma resposta do guerreiro petrificado, a raposa chutou as barras de ferro, rompendo-as com uma força inabalável. E, já livre, em seus poucos segundos, havia consumido toda a energia vital do homem medroso.
Diante daquela cena cheia de sangue, uma salva de palmas foi executada, trazendo a atenção da raposa para uma das celas que havia por perto.
"Isso foi impressionante. Não entendo ter demorado tanto tempo para se rebelar contra esses frágeis humanos. Agora está preparado para uma vingança contra o homem que matou todas as hulijings?", uma voz delicada surgiu dentro daquela cela, deixando o maior curioso. Sem esperar um tempo necessário para entender aquele novo entretenimento, a raposa chegou mais perto da prisioneira e olhou-a detalhadamente.
Seus cabelos eram pretos, lembrando de uma floresta na escuridão; seus olhos também eram puxados para tons escuros e sombrios; e sua pele poderia ser comparada à de um lobo branco. Bela, feroz e perigosa.
As características da jovem eram realmente atraentes. Porém, a raposa não se interessou por elas e sim, por um talismã de papel anexado pendurado naquela testa.
"Um feitiço de aprisionamento?", a hulijing perguntou a menor, que logo levantou seu hanfu preto e mostrou suas pernas acinzentadas e cheias de manchas. "Hum... Uma jiangshi? Não esperava encontrar uma e muito menos aprisionada."
"Eu fui aprisionada por um deslize meu. Tentei me alimentar exclusivamente do qi de um indivíduo vivo para meu sustento. Porém, escolhi a pessoa errada", a jiangshi levantou os braços e se espreguiçou. "Tentei devorar o líder Fai. Ele tinha uma energia tão forte. Parecia ser tão saborosa e..."
A raposa branca não pensou duas vezes e simplesmente arrombou a cela daquela jiangshi que, ao ver aquelas barras de ferro sendo jogadas de uma forma tão violenta contra a parede, abriu um enorme sorriso.
"Eu devo lhe agradecer ou isso foi um jeito de ter um favor em troca de minha liberdade?", a jiangshi indagou a hulijing, que apenas virou-se de costas e seguiu o caminho para a saída daquele lugar que o trouxe tantas agonias.
Apenas aceitando a reação da raposa, a jovem de cabelos pretos, ao sair daquela cela, disparou seu corpo em uma velocidade sobrenatural, ficando lado a lado ao maior.
"Eu me chamo Qiang", a jiangshi disse, olhando para a raposa branca, que mantinha seu olhar vidrado ao caminho para a saída. "Devo me lembrar do homem que deverei servir futuramente. Então, qual é o seu nome?"
Ao ser questionado de seu nome, a raposa branca parou frente a porta daquele lugar escuro e fechou os olhos, lembrando-se perfeitamente de sua mãe acariciando seus longos cabelos acinzentados e lhe dizendo para escolher um nome que marcasse a mente de todos e ninguém poderia esquecê-lo, graças a sua personalidade marcante.
Em seguida, sua mente tirou a memória delicada e voltou-se a uma violenta. No caso, as últimas palavras de seu pai antes de morrer estrangulado por Fai Xin.
E, com elas, decidiu seu nome.
O jovem esbelto jogou seus cabelos para trás, amarrou suas mechas de franja com seus próprios fios e abriu os olhos. Depois, pousou agressivamente a mão sob aquela porta de correr e arrebentou-a, abrindo a passagem para uma nova história.
Antes de dar o primeiro passo, ele virou seu rosto para a jiangshi e falou, com um tom de voz sereno:
"Me chame de Huli."
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Observações:
- Mulheres guerreiras: Na historiografia da China Antiga, existem alguns registros de mulheres guerreiras chinesas. Uma dela foi Fu Hao; uma das muitas esposas do rei Wu Ding da Dinastia Shang e que serviu como general militar e alta sacerdotisa. Lutou contra Tu Fang e seus soldados, os quais foram derrotados em uma única batalha decisiva. Além de suas conquistas, ela foi lembrada por criar a primeira emboscada em grande escala na história chinesa. No final, ela foi a general Shang mais poderosa de seu tempo. Outra guerreira bastante renomada, foi Xun Guan, que viveu durante a dinastia Jin e que liderou um grupo de soldados para a batalha aos treze anos de idade.
- Jiangshi: Na mitologia chinesa, é um vampiro/zumbi cujo nome se traduz em "cadáver rígido". É uma criatura que geralmente ataca pulando em humanos ou criaturas vivas sugando toda a força vital/qi deles. Sua história apareceu diante do governo de Qin Shi Huan, o primeiro Imperador da China. Aparentemente, foi a guerra de unificação de Qin Shi Huang que fez com que os vampiros saltitantes existissem. Além do mais, os jiangshi já foram seres humanos vivos.
- Huli: É uma abreviação de "Hulijing" ("espírito de raposa"), significando apenas "Raposa" em chinês.
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- ale yang on -
Bem... O nome de Huli já dava a dica sobre a sua verdadeira identidade. O que acharam disso? (risos)
Eu gostei bastante de escrever esse capítulo. Espero que tenham gostado também!
Aliás, não sei se vocês perceberam, mas vou logo dizer: a jiangshi que apareceu é aquela mulher que lutou contra Hu Long no Campeonato dos Peões. Lembram dela? Wei Qiang? Ela finalmente terá uma melhor aparição nesse atual arco.
O próximo capítulo trará o começo da vingança planejada por Huli! Estou ansiosa para ver a opinião de vocês a respeito das ações desse personagem.
Até domingo!