— Você não come muito.
— Eu economizo.
Não é algo do qual me envergonhe, isso pode me render mais alimento para o futuro, economizar é a única e verdadeira forma de garantia algum tipo de conforto há longo prazo, ainda mais porque em algumas épocas há escassez de alguns alimentos e outros só temos acessos nas poucas estações do ano.
Virgo morde uma fruta vermelha e continua a me analisar em silêncio, preparei uma refeição com grãos cozidos e frutas, ovos, há bastante tempo não tenho tido a oportunidade de ter pão também na minha mesa.
— Você parece meio magra para a sua idade.
— Não sofremos de desnutrição e somos todos saudáveis, apenas economizamos, temos famílias grandes e numerosas aqui, quando em algum momento falta na casa de algum irmão, doamos um pouco dos nossos alimentos ou reserva.
— As mulheres do meu estado são muito diferentes das daqui.
— São coradas?
— Sim e se pintam.
— Promissor.
Só me pinto quando vou a celebrações familiares, maquiagem é um luxo assim como roupas de tecidos diferentes, ainda uso muitas roupas doadas pelo Estado Majoritário quando fui para a universidade, não é algo que me importe, mas é muito visível a forma como cada prole é tratada a depender do estado em que vive.
— Os estados do Norte compactuam do investimento em tecnologia, por isso são mais direcionados nesse sentido.
— É, aqui vivemos da agricultura.
— As frutas aqui tem um sabor muito diferente.
— Nossos cultivos são muito ricos e nossos cultivadores sempre tentam cuidar de forma natural das plantações, em outros estados são usadas técnicas diferentes.
— Nunca fomos abastecidos pelo seu estado é bom saber.
— Espero que a sua mãe esteja apreciando a ideia de morar aqui.
— Ela não esperava, mas acolheu a decisão.
— Ela não votou para vir?
— Infelizmente mamãe se abstém de votar nas decisões de família, ela não gosta da responsabilidade de carregar a decisão de ninguém nas costas e isso tem um preço.
— Meus pais sempre me deixaram votar assim como meus outros irmãos, ainda mais em quando se tratava de decisões da nossa casa quanto a divisão de tarefas.
— Mamãe diz que é muito peso para se carregar, como quando ela teve que ir votar para o exílio do meu pai, ela simplesmente optou pelo direito de silêncio, permaneceu durante toda a audiência calada.
— É uma boa escolha.
— Você acha que não participar de nada é uma boa escolha?
— Eu imagino que ser capaz de não opinar é uma dádiva, ela é empática, compreendo que o direito de não ter que escolher dá muito mais a ela do que aos que escolhem.
Mordo um pedaço do pão e mastigo, não sei bem sobre a mãe do Virgo, mas ela faz excelentes pães, muito bons.
— Mesmo que isso envolva as suas escolhas?
— Sim, não sei se eu conseguiria ser assim, nesse sentido meus pais sempre me apoiaram.
— Sou dono de mim, tanto, mas tanto que sou incapaz de imaginar que alguém se incumba de cuidar dos meus interesses.
— Você não consegue pensar como seria conferir sua decisão de opinar a outra pessoa, mas confiou seu celibato a uma anciã.
— Ela não me gerou em seu ventre.
Penso por alguns momentos e devoro o outro pedaço do pão.
— Você nem consegue imaginar porque foi escolhida?
— Para ser a mãe do Oráculo?
— Sim?
— Não, nem imagino, eu sou tão... comum.
— Você é muito inteligente e conhecedora de toda a história, talvez ele a tenha escolhido porque sabe que terá alguém que o guie pela história.
— E a você por proteção.
— Sim.
Algo me passa pela cabeça e me sinto um pouco assustada, mas não digo nada.
— Não conseguiria imaginar um Oráculo nascendo em uma família de prole diferente da sua. — Virgo está pensativo — Quando meu avô me comunicou sobre o encontro com a anciã e que já havia sido escolhido uma noiva, fiquei bastante decepcionado.
— Ao menos lhe foi concedido o direito de saber antes de mim.
— Mas não sabia que era você, fiquei sabendo naquele dia no ministério, só fui comunicado que haviam escolhido alguém para mim e que deveria me apresentar.
Não imaginei que havia sido assim.
— Eu não atingi nem a idade para o casamento, não me preparei psicologicamente para isso, fico me perguntando como em algum momento da nossa história as pessoas se atreviam a fazer casamentos infantis, sou adulta e ainda sim, mesmo sabendo que terei que me casar não me sinto pronta, imagina se eu tivesse apenas doze anos de idade.
— Você compreende a importância da conveniência mútua? Havia muitos abusadores de mulheres nas antigas províncias, os colonizadores abusavam de meninas jovens, alguns de crianças com menos de dois anos de idade, como pode desejar que o Estado abra mão do poder sabendo que todos nós poderemos em algum momento ceder aos nossos impulsos?
Aquilo a fez refletir porque sabia que ele tinha razão sobre o lado ruim de sua espécie.
— Talvez tenhamos perdido nossa humanidade ao terceirizar o livre arbítrio para nosso Estado.
— Talvez ser humano é algo tão sublime que nós não saibamos o caminho para ser.
— Nos perdemos no percurso quando destruímos nossas florestas e matamos pessoas, no final das contas por ganância, exploramos muito sem nos importar com o que deixávamos para os outros.
— E pagamos por isso, você vê o que o Estado faz por nós, vivemos civilizadamente, nos amamos, convivemos em paz, sem armas, sem brigas...
— Oprimidos pelo sistema de poder que não nos deixa escolher nossos parceiros para a vida, um sistema que se importa mais com a procriação do que com o direito a uma vida digna para mim, se eu tiver filhas elas serão obrigadas a ter quantos filhos exigirem que ela tenha.
Virgo ficou calado.
— Não quero ser só uma reprodutora, acredito que já somos muitos, por que devo ter tantos filhos? Para que sejam meros serventes do Estado?
— Talvez nosso filho mude isso, Hielena, talvez ele venha para mudar tudo isso e quando ele crescer ele terá todo o poder para si, para tomar as decisões.
— Eu espero que ele mude muitas coisas, o que não deixa de ser ironia é claro é o fato de que não se importam com nada, mas acreditam em um salvador místico que poderá mudar as vidas deles para sempre.
— As provas de que um Oráculo toma boas decisões é incontestável, o penúltimo desenvolveu nossos antigos sistemas de irrigação e replantou toda uma área de plantas extintas numa terra infértil, ele também desenvolveu remédios para doenças até então incuráveis, e ele só tinha dez anos quando fez tudo isso.
Ela sabia daquilo.
— Salvador ou não, eu sei que ele será muito inteligente e sagaz, terá uma mãe teimosa e justiceira.
— E revoltada.
Virgo sorri, fico constrangida.
— Espero que tudo mude.
— Vai mudar Mic, vai mudar.