— Seus pais acabaram de telefonar, parece que saíram, creio que nossa visita a casa deles não seja mais possível.
— Tudo bem.
Como ministro imagino que ele tenha recursos, meios de se comunicar, está mexendo em seu comunicador portátil, tive que limpar as vasilhas que sujamos após o café, Virgo me analisa por alguns instantes e isso me deixa constrangida.
— Prefere que eu vá para a minha casa?
— Fique se desejar, podemos jogar alguma coisa ou conversar, talvez não tenhamos tanto tempo quanto queremos até a cerimônia de noivado.
— Provavelmente não, há muito a se fazer por estes lados.
Não temos castas muito importantes em Zimbar, a comunidade é pequena e formada por serventes e poucos comunicadores, compomos pouco mais de dez mil pessoas no nosso estado, nossa base é a agricultura e pequenos serviços de prestação ao Estado Majoritário, há outros estados dedicados a tecnologias, saúde e educação, tive que cursar a universidade no estado vizinho, fica há cerca de sete quilômetros daqui, voltava para casa aos fins de semana, foi um bom momento para eu aprender a ter mais independência.
— Podemos ficar lá fora se preferir — Virgo sugere.
Volto para realidade, ele já colocou uma camisa comprida de tecido fino, parece confortável em estar aqui, mas não imaginei que fosse querer uma aproximação tão rápida, contudo, afinal de contas, iremos nos casar e ter um filho e isso será uma das coisas mais importantes que já aconteceram em nossas vidas, para nosso planeta, porque ele evitaria se acostumar?
É o nosso destino, nosso dever, mesmo que não seja nossa escolha.
— Prefiro ficar aqui, logo mais posso preparar nossa refeição principal, quer ler algum livro e falar sobre sua profissão?
— Sim, gosto de ler.
Não sei se é hábito da maioria dos homens que conheço de ler, mas imagino que para um provedor de leis seja, talvez não sejamos tão diferentes assim.
— Quantos sobrinhos tem?
— Muito barulho na ligação?
— Sim, bastante.
Começo a sorrir, é engraçado pensar que são tantas famílias em apenas uma.
— Acha que o nosso filho irá ser barulhento?
— Talvez, as crianças da minha família são muito barulhentas, já ultrapassamos a marca dos duzentos.
Vou para o sofá do meu pequeno canto de reflexão, me sento pensando muito sobre tudo isso, sobre o Oráculo, sobre a decisão do meu casamento com um completo estranho e o que isso irá refletir em Navie.
— Me conte um pouco sobre o que sabe do último Oráculo?
— Todos eles nascem de proles muito pobres, ao que tudo indica são crianças que vem de uma genética compatível com os organismos do planeta, podemos falar do ponto de vista científico que todas as genitoras de Oráculos foram mulheres que tiveram seus corpos afetados pelo planeta diretamente, mas pelo outro ponto... o não cientifico preferem acreditar na profecia de que forças do universo enviam um Salvador para renovar a fé que devemos ter uns nos outros.
Virgo se senta ao meu lado no sofá e fica me encarando, curioso, sei que ele já deve ter ouvido diversas vezes sobre essas histórias, porém ele está curioso.
— E em que acredita?
— Não sei se conseguiria explicar, tenho minhas teses sobre o que houve com os Oráculos e anciãos, científicas ou sobrenaturais, em cada uma delas eu estudei meticulosamente as chances de serem uma ou outra e cheguei à conclusão de que por mais que algo seja científico não significa que não seja sobrenatural.
— Eu acredito em coisas que posso ver.
Não é uma queixa, nem imposição e é bom saber que ele é cético porque assim eu sei onde posso pisar quando tratar de qualquer coisa com ele.
— Alguns antigos chamavam eventos sobrenaturais de Milagres, outros ignoravam o fato de que não temos o controle absoluto do universo, nós mal sabemos as origens por trás da nossa criação, é estranho pensar que as pessoas supervalorizavam tantas coisas sem valor.
— Não sei se poderia acreditar que fui criado por algo, eu não fui ensinado a crer em coisas das quais não posso ver.
— Mas confia o seu destino a uma macumbeira.
Ele me encara por alguns momentos e sei que está constrangido.
— É diferente, ela não faz magia, ela vê.
— Mas crê nela.
— Não faço as regras Hielena.
— Só estou dizendo que sua doutrina de todas as formas não te induz ao fanatismo, mas te induz a fé e isso é algo que por mais que te remeta ao ceticismo é hipocrisia.
— Não creio que seja um ceticismo, é complexo viver uma ciência absoluta e ter experiências que podem mudar o rumo de nossas vidas, sei que é evidente que os Anciãos tem dons que vão além do que sabemos e é justamente por isso que eu acredito neles, mas ao mesmo tempo prefiro crer apenas nisso, nas leis, é mais fácil, se eu for parar para tentar entender a crença como algo que não seja base para estudo eu irei contra o que eu sou.
— Enfim, hipócrita.
Ele sorri, contrariado, mas sorri.
— Nenhum ancião errou as previsões que proferiu.
— Eles são sensitivos natos, podem ver através dos olhos do nosso planeta, eu acho que nossa matéria foi alterada por conta da guerra e que isso de formas inexplicáveis transformou os úteros das mulheres quando ficaram inférteis, é como se a genética houvesse sido alterada de acordo com a seleção que planeta fez.
— Que viagem.
— Não são modos de se referir a Hielena, a mãe do Oráculo.
Emolduro a frase enquanto abro os dedos para os lados expandindo as mãos como em algum tipo de anúncio, Virgo sorri abertamente e minhas bochechas queimam.
— Entendo a importância de sua compreensão das coisas, é jovem, não presenciou o que eu já presenciei em meus anos de trabalho no ministério, de certa forma foi ensinada a sonhar porque cresceu livre de tantas responsabilidades é algo louvável em você Mic.
— Você está me dando um apelido? — indago sem jeito.
— Não devo?
Mic quer dizer Pequena numa das antigas línguas das civilizações primárias.
— Se for mais confortável, por mim tudo bem.
— Quanto mais rápido nos adaptarmos, melhor será nossa convivência.
Ele tem razão.
— Temos a oportunidade de não ser nada formal, já pensou se houvesse um registrador por perto ouvindo tudo o que nós falamos?
— Seria de fato constrangedor.
— Meu avô concedeu uma exceção devido a rapidez do nosso noivado, ele quer que tenhamos boa convivência e que sua gestação seja saudável.
Chego a uma constatação estranha e ruim.
— Seu avô não pode tentar influenciar na educação do nosso filho e nem tornar o nascimento dele algum tipo de conflito de interesses.
— Eu sei disso — sério, Virgo me encara — O intuito dele é apenas nos proteger, mais a você do que a mim, sabemos dos riscos que pode envolver a gravidez de um Oráculo neste momento de instauração de leis mais severas, ouvi falar sobre um pequeno grupo conspiratório que estava se formando dentro dos Estados do Sul, muitas pessoas mentindo sobre diversas coisas.
— Corrupção?
— Sim.
Não estou completamente chocada, Virgo estende a mão e segura a minha com cuidado, eu as olho juntas, diferentes em todos os sentidos.
— Sua segurança vem em primeiro lugar.
— Acredito que a minha visão sobre nosso planeta seja bem teórica.
— Não é, mas temos problemas como em quaisquer sociedades, muitas pessoas não entendem que as leis devem ser obedecidas acima de qualquer coisa.
— Não é da nossa natureza obedecer, Virgo.
— É melhor viver num estado que impõe ordem do que viver da forma como vivíamos, animais movidos pela emoção e pelos desejos carnais.
Enquanto fala, percebo certo rancor na voz dele, sua mão pressiona a minha e os dedos se entrelaçam nos meus.
— Seja como for, é mais seguro que você saiba que não permitirei que ninguém te machuque.
— Eu não estou entendendo o que isso quer dizer.
— Que talvez você morra muito antes de ter tido nosso filho.