Histórias Para Gaivota Dormir

By MarceloQuinaz

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Dez histórias de pessoas, interligadas ou não, unidas por um fato, a cidade em que vivem. More

0 - Oi
1 - O Piano
2 - Lembrança é um prato que se come à tarde
3 - Crime sem castigo
4 - Aquarela
5 - Correio Elegante do Século XXI
6 - N.J.L.
7 - Expectativa
9 - Realidade
10 - Noite Feliz (ou nem tanto...)

8 - Promessas de ano novo

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By MarceloQuinaz

"O que você acha que eu devo colocar em minha lista?" Du me perguntou, assim que saí da cozinha.

"Lista do quê?" Perguntei de volta.

"Minhas promessas de fim de ano, ora! O ano novo é daqui alguns dias, eu preciso ter minhas promessas todas prontas"

"Meu Deus, Eduardo!" Disse, indignado. "Achei que era algo mais importante. Todo mundo sabe que promessas de fim de ano são a maior baboseira da humanidade. Ninguém nunca as segue. É só uma maneira das pessoas pensarem que o ano seguinte vai ser melhor que o que passou"

"Nossa, não sabia que você era tão amargurado assim", ele disse, com uma cara feia. "Ver o futuro com um olhar positivo é bom às vezes, sabia?"

"Escuta, eu estou cheio de coisa para fazer, vou sair para comprar uva-passa, que acabou. Coloca o frango no forno para mim, por favor?" Ele concordou. Abri a porta e estava quase saindo quando ele exclamou:

"Ei, você não quer levar o Moody para passear enquanto for?"

"Certeza? Ele fica bem agitado no mercado"

"Prende ele no estacionamento. Nunca tem ninguém lá"

Peguei a coleira e saí com o cachorro. As ruas estavam movimentadas, mas todo mundo num clima amigável, nem parecia uma manhã de véspera de natal normal, com todo mundo deixando para comprar os ingredientes da ceia de última hora, mercados lotados, correria e os pobres trabalhadores ficando até às nove da noite no caixa. Tudo estava em paz hoje.

Coloquei meus fones, abri minha playlist de músicas natalinas e comecei a caminhar com Moody pela rua. O dia estava nublado e ventoso. Em outros dias de verão, eu reclamaria disso, mas, com as músicas animadas e com sensação de cobertor no frio, parecia muito apropriado.

Entrei pelo estacionamento do mercadinho do bairro e deixei Moody amarrado em um dos postes do "cantinho dos cachorros". Era muito legal que o mercado tivesse esse lugar, principalmente por ser um mercado pequeno, onde a maioria das pessoas apenas paravam para comprar coisas pequenas e, normalmente, estavam com seus pets juntos de si. Tirei o fone e fui para dentro do mercado. A decoração parecia aconchegante e colorida.

Já tinha pego minhas uvas-passas e ido para o caixa quando o vi. O ex do meu namorado.

Eu e o Du tínhamos nos conhecido há três anos. Ele estava terminando a faculdade e eu estava no penúltimo ano. Sempre tivemos uma boa relação, antes de sermos amantes, éramos amigos. Mas, nem ele e nem eu éramos mais adolescentes que estavam vivenciando as coisas pela primeira vez, nós tínhamos tido outros amores. E o Breno era um desses outros amores do Du. Eles tinham se conhecido no ensino médio, eu acho, e tinham continuado juntos até o começo da faculdade. Ele foi o segundo namorado do Du. Eles tinham planos para o futuro e tudo mais, cogitaram até morar juntos, mas aí o Breno conseguiu uma bolsa e uma vaga de estágio na Capital e se mudou para lá, e eles terminaram o namoro.

E isso era muito suspeito, pois, além de o Du ter me contado que o Breno não mantinha contato com ninguém de sua família e, depois de tantos anos, o que ele estaria fazendo no mercadinho a duas quadras de casa? Fiquei observando-o fazer suas compras e sair do mercado. Num impulso, decidi segui-lo. Ele estava saindo com a bicicleta do estacionamento. Tirei Moody do cantinho e fui atrás dele a toda velocidade.

Depois de dar umas voltas, ele finalmente parou no portão de um condomínio, deu seu nome na portaria e entrou. Esperei alguns segundos e fui para a catraca de entrada. Fingi estar passando com casualidade, até que o porteiro me parou e perguntou:

"Boa tarde, senhor. Nome?"

"Hã... e-eu moro aqui", gaguejei.

"Com certeza, não. Eu saberia", ele me olhou com desdém.

"Ok, eu estou indo encontrar meu amigo. Aquele moço que acabou de passar de bicicleta! Nós não nos vemos há bastante tempo e eu queria surpreendê-lo"

"E para isso você veio na casa da bisavó da amiga dele?"

"Bisavó da amiga... Certo. Obrigado, moço. Tenha um bom dia", e saí às pressas do local.

"Ei, espera!" Ele gritou. "Você não ia fazer uma surpresa?!"

Voltei o caminho de casa bem mais aliviado. Que bobeira! Eles não se viam há mais de anos. Quais eram as probabilidades? Estava tão aliviado e feliz que voltei o caminho inteiro, basicamente, saltitando com Moody. O clima frio e acolhedor de natal estava de volta.

De volta em casa, encontrei um Eduardo desesperado, correndo pra lá e pra cá na cozinha, checando o forno e o celular a cada cinco minutos.

"Amor, tá tudo bem?" Perguntei, enquanto entrava na cozinha.

"Meu Deus, onde você estava?!" Ele exclamou, preocupado.

"No mercado, ué?"

"Por quarenta e cinco minutos?" Perguntou e me lançou um olhar desconfiado.

"Tava muito cheio", respondi.

"Hum", ele não parecia estar convencido. "Eu já recheei o frango e coloquei ele no forno. Trouxe as uvas-passas?" Mostrei o pacotinho com as frutinhas para ele.

"Certo. Vou sair um pouco agora também, tenho umas coisas para resolver. Já volto. Cuida do frango e já coloca o arroz com a uva-passa no fogo"

"Vai aonde?" Perguntei por curiosidade.

"Vou encontrar com uma amiga do ensino médio. Ela está passando por um momento delicado na família", e então, saiu pela porta. 'Ah, sim', pensei. E então um toque me veio à cabeça.

Saí pela porta num impulso, quase levei Moody comigo. Como assim ele estava indo encontrar uma amiga, justamente na véspera de natal? Justamente no dia em que seu ex-namorado estava na cidade, na casa de uma antiga amiga!

Passei o caminho todo com uma sensação de ansiedade, um frio na barriga misturado com medo, angústia. Eu e o Du estávamos juntos há muito tempo, tínhamos construído toda uma história juntos, nós estávamos morando juntos há vários meses, parecia que tudo estava se encaminhando para um final feliz, como ele podia estar me trocando por um amor antigo de ensino médio?!

Quando o vi entrando na rua em que eu mesmo tinha entrado, alguns minutos atrás, meu coração começou a disparar, senti um embrulho forte no estômago, minha cabeça começou a ficar dolorida e minha visão turva, por conta das lágrimas que começaram a cair. Sentei na calçada, abraçado com meus joelhos e a cabeça por cima deles, ofegante, tentando não fazer barulho enquanto chorava, pensando nos últimos anos jogados fora. Como pude ser tão estúpido? Como ele podia ter feito isso? Ou tinha sido um deslize, ou ele era muito bom ator. Tinha me enganado direitinho...

Estava me preparando para enxugar as lágrimas e voltar para casa, apenas para pegar minhas coisas e voltar para casa de meus pais, quando uma voz surgiu de dentro de um carro, que estava em baixa velocidade, por conta da curva onde ficava a famigerada rua.

"Gil? O que você está fazendo aqui?" Levantei-me o mais rápido que pude, enquanto enxugava o rosto e tentava fazer uma cara de indiferença. "Amor, você tá chorando? O que houve?!"

"Você foi o que houve, Eduardo!" Minha voz saiu embolada, cheia de catarro. "Depois de tudo... três anos jogados fora, eu não acredito, como você pôde?"

"Como eu pude o quê?"

"Se encontrar com o seu ex, logo depois de me beijar!" Gritei. Ele saiu do carro, com ele ainda ligado. Tentei me afastar, mas ele segurou minhas mãos, seu corpo exalava uma energia calma. Como ele podia estar tão frio depois de tudo que tinha feito?

"Eu não faço a menor ideia do que você está falando. Entra no carro, no caminho de casa você pode me explicar melhor", falou, calmamente. Seu rosto transparecia uma feição insegura.

"Não quero entrar em porra de carro nenhum com você!" Falei, um pouco mais baixo, porém com o mesmo tom de agressividade que antes, para que ele entendesse a mensagem.

"Então não sei o que posso fazer. Essa é minha melhor ideia. Quer me explicar aqui, então?"

"Tudo bem. Eu entro no carro. Mas só porque quero chegar em casa o mais rápido possível", larguei suas mãos com rispidez e entrei no automóvel. Depois de alguns minutos de silêncio, Eduardo finalmente falou:

"Você não vai mesmo falar por que está bravo comigo?" Suspirou.

"Estou surpreso por você não saber. Não foi o único hoje?"

"O quê?"

"Caralho, Eduardo! Você foi se encontrar com o Breno hoje! Eu vi ele no mercado hoje", parei um pouco para pensar se realmente queria revelar aquilo. "E... eu o segui para ver onde ele estava ficando. Aí, agora, você veio, curiosamente, para o mesmo lugar que ele. Eu sei juntar um mais um!" Ele começou a rir. Aquilo me irritou de tal forma, eu sentia arrepios de indignação. "Tá rindo do quê, palhaço?!"

"Da sua bobeira. Meu Deus, o Breno. Há quanto tempo eu não ouço esse nome", ele riu mais ainda. "Olha, Gil", ele soltou um risinho de canto de boca. "Eu não sei que surto de ciúmes foi esse. Eu e o Breno não nos falamos há uns bons anos, desde o dia que terminamos, se não me engano. Isso deve ter sido uma infame coincidência, já que ele sequer conhece a Viviane, a amiga que eu fui visitar"

"Então como ele foi visitar uma amiga naquela mesma rua?"

"Mas aquela rua só tem a casa da família da Vivi, é uma rua sem saída", ele me olhou, sem entender.

"Você vai querer mentir para mim a essa altura do campeonato?" Disse, com ironia. "Eu vi você entrando e saindo daquela rua"

"Espera, você está falando sobre a rua que eu virei na volta e te encontrei?"

"Sim, ué!"

"Oh, meu Deus", ele voltou a rir. "Eu não parei naquela rua. Gil, você precisa parar de tirar conclusões precipitadas!" Ele ficou sério. "Viu algo e tirou mil conclusões, eu não sabia que você era tão inseguro"

"Eu não sou!" Exclamei. "É só que, sei lá, você sempre me falava dele com uma felicidade, que vocês tinham planos e..."

"Eu fiz planos com todos os meus namorados", ele me cortou. "Mas esses tais planos só estão se cumprindo com você"

"Eu..."

"Eu sei que você não tem controle dos seus sentimentos e eu realmente acho que devemos admitir sempre que sentimos algo, mas, temos que controlar nossas ações em relação a esses sentimentos. Se você continuar com essas atitudes, nossa confiança no outro vai acabar. E, sem confiança, não há relacionamento"

"Eu sinto muito, Du. Eu não sei onde eu estava com a cabeça, eu só..."

"Está tudo bem", ele estacionou na frente de casa. "Só preciso que você confie em mim. Estamos juntos há três anos"

"Eu sei. Sinto muito", nos beijamos e saímos do carro. Ele estava abrindo o portão quando disse:

"Acho que sei qual vai ser minha promessa de fim de ano", sorriu.

"Qual?"

"Eu prometo que ano que vem eu irei te trair!"

"Como é que é?!" Exclamei, indignado. Ele riu:

"Não foi você que disse que ninguém nunca cumpre essas promessas?" Empurrei-o e soltei um "bobo!". Entramos pelo portão, e então senti algo:

"Que cheiro é esse?" Falei.

"Gil, você desligou o forno?!"

"Puta merda!"

Entramos correndo pela porta, a ponto de ver a fumaça preta e de cheiro forte caminhando pela cozinha, lentamente. Desliguei o forno e fui para o quarto pegar o ventilador. Quando voltei, encontrei uma bola preta numa forma em cima da mesa e um Du inexpressivo sentado na cadeira.

"Desculpa", suspirei. Ele começou a rir novamente.

"É hilário, mesmo sendo trágico", ele gargalhou histericamente. Comecei a rir também. "É... acho que vamos ter que passar o natal na sua mãe, mesmo"

"Ela vai pirar de felicidade", liguei para ela para combinar e depois voltei à cozinha. "Ela concordou em receber a gente, mesmo sem ter levar nada"

"Que bom..." ele ficou esperando que eu dissesse algo mais.

"O que foi?"

"Não vai ter nenhuma regra?" Ele perguntou.

"Ah, bem, na frente da tia Marília teremos que fingir, a não ser que você queira um escândalo"

"Acho que cansei de dramas hoje", ele falou e concordei. "Ainda temos algumas horas para começarmos a nos arrumar. E, como vamos ter que fingir", ele deu um sorrisinho, levantou-se e começou a andar de costas em direção ao quarto, puxando-me com uma corda invisível, como um mímico. Sorri como um bobo e comecei a segui-lo. Como eu amo o natal...

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