Histórias Para Gaivota Dormir

By MarceloQuinaz

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Dez histórias de pessoas, interligadas ou não, unidas por um fato, a cidade em que vivem. More

0 - Oi
1 - O Piano
2 - Lembrança é um prato que se come à tarde
3 - Crime sem castigo
4 - Aquarela
5 - Correio Elegante do Século XXI
7 - Expectativa
8 - Promessas de ano novo
9 - Realidade
10 - Noite Feliz (ou nem tanto...)

6 - N.J.L.

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By MarceloQuinaz

Cheguei na porta da diretoria revoltado naquela manhã. Apesar de já saber o motivo de eu estar sendo chamado lá, eu não concordava. O corredor branco cheio de troféus de campeonatos escolares e certificados de primeiro lugar em vestibulares. Deus, como eu odiava aquele lugar! Sua pele branca como papel, seu batom roxo escuro aberto num sorriso assustadoramente passivo-agressivo, sua blusa de cetim e sua calça jeans branca. Seus cabelos pretos e desidratados caíam sobre seus ombros. Eu sabia que passaríamos pela mesma conversa (uma que tivemos umas três vezes só naquele mês). Mesmo assim, entrei na sala calado e aparentando estar calmo. Eu sempre fazia isso. Cheio de raiva, revolta e amargura. Mas nunca falava nada para ninguém. Era muito mais fácil ficar calado ou pedir qualquer desculpa, dizer o que a pessoa quer ouvir. Evitava conflitos. Não que eu não ame um bom conflito. Mas não com ela. Eu só queria me livrar o mais rápido possível dela.

Sentei na cadeira da direita, como sempre fazia. Tinha um garoto na outra cadeira. Ele parecia assustado e tímido. Eu tinha o visto nos corredores algumas vezes, mas não o conhecia. Ele estava um ano na minha frente. Sua pele escura contrastava com o uniforme branco com azul. Seus cabelos crespos pareciam recém cortados. Ele estava abraçado com sua mochila e parecia realmente assustado. A sra. Viviane fechou a porta da sala e se sentou em sua mesa. Ela parecia estressada. Mas sempre com o sorriso no rosto:

"Vamos começar com você...", ela se virou para o garoto.

"...Jonas", ele completou.

"Isso. Bem, recebi reclamações de seus professores que você não tem aparecido nas aulas há uma semana. Preciso que explique sua situação", seu sorriso cresceu, parecendo mais cínico que nunca. Um arrepio percorreu minha espinha.

"Eu... não estava me sentindo muito bem. Só isso", Jonas diz, encolhendo-se mais ainda.

"Certo. Tem atestado?", ela começou a anotar numa grande agenda que dizia '2º ANO'.

"Não"

"Certo, Jonas. Preciso que pare de fazer isso. Pelo que fiquei sabendo, não é a primeira vez. Senão terei que chamar seus pais. Você não quer isso, quer?"

"Não", mais um arrepio.

"Certo. Então está liberado, querido. Pegue uma declaração com a secretária de justificativa de atraso", ela terminou de anotar e olhava diretamente para ele. Seu sorriso crescia enquanto falava.

O garoto correu para fora da sala, ainda com seu ar nervoso. Viviane se virou para mim e seu sorriso diminuiu um pouco. Ok, isso era novo.

"Luciano...", ela diz. "Mais uma vez? Eu não sei mais o que fazer. Os professores dizem que não tem uma reclamação contra você, você diz que não tem nenhum amigo e, mesmo assim, arranja briga no grupo de mensagens da sala..."

"Eu sei, sinto muito", começo meu discurso de sempre. "Mas eu não consigo evitar. Eu vejo eles falando aquele tipo de coisa e, não sei, talvez na internet eu tenha um pouco mais de..."

"Coragem?", ela se inclina para mim de forma debochada, como se quisesse me humilhar.

"Eu ia dizer liberdade, mas ok, serve", disse, me sentindo mesmo um pouco humilhado.

"Saia desse grupo, pelo amor de Deus. Eu estou te pedindo", sua guarda tinha baixado. Era a primeira vez que via isso. "Eu realmente não quero ter que chamar seus pais aqui mais uma vez por conta disso."

"Certo. Se você acha que será o melhor..."

"Eu acho. Pega a justificativa", ela me entrega o papel. "Imagino que saiba o caminho de volta"

"Com certeza", o que estava acontecendo? Ela tinha sido... humana? Longe de legal, mas, humana.

Encostei na bancada da secretaria e pedi minha declaração. O garoto assustado chegou em mim e disse:

"Não consegui não ouvir sua conversa com ela. Problemas de briga?"

"Sim...", suspirei.

"Já estive no seu lugar", ele disse, sorrindo.

"Jura? Qual foi a pior coisa que você fez?", perguntei, fingindo interesse.

"Eu empurrei uma garota no estacionamento da escola e ela quase foi atropelada...", arregalei meus olhos.

"Meu Deus", tomei uma respiração antes de continuar a falar. "Eu achei que você ia falar algo mais leve... não estava preparado para isso... hum, ok. Ela tá bem?"

"Ah, sim. Ela não foi atingida pelo carro. De qualquer jeito, só queria te dizer que isso passa. É só uma fase."

"Eu sei, é só que, eu tô cansado do pessoal daqui. Gostaria de conhecer alguém legal para variar..."

"Creio que possa te ajudar com isso", ele sorriu e apontou a mão em minha direção. "Sou Jonas, quer ser meu amigo?"

"Tá brincando? Você empurrou uma inimiga na frente de um carro. Tudo que eu mais quero é ser seu amigo!", ele riu. "Luciano", apertei sua mão.

"Rapazes, a máquina deu um probleminha, vou precisar que vocês esperem alguns minutos para pegar suas declarações", a secretária se aproximou da bancada.

"Tudo bem, já nos atrasamos mesmo", disse.

"Ok, Luciano, que ano você está?", ele voltou à conversa após ela se afastar.

"Primeiro. E você?"

"Segundo"

"Você é novo aqui na escola?", eu já sabia todas aquelas coisas, mas não queria que ele me achasse desinteressado por não perguntar, muito menos estranho por já saber. A verdade é que eu era muito observador, então sabia e lembrava de quase tudo. Só não tinha ninguém com quem compartilhar minhas sabedorias.

"Cheguei semestre passado. Problemas na outra escola...", ele parecia consternado.

"Nem consigo imaginar o porquê...", sorri. "Posso perguntar algo?"

"Claro", ele sorriu também.

"Por que você faltou esses dias todos?"

"É complicado", ele deu um suspiro. "Digamos que minha saúde mental não esteja no melhor momento dela"

"E você? Por que brigou?", ele perguntou, depois de um tempo. Foi minha vez de suspirar.

"Eu brigo sempre no grupo. Para chamar atenção, ou para me divertir. Mas, dessa vez, uma garota estava falando que homossexualismo deveria ser considerado um crime. E estava mostrando as 'provas' de seu ponto"

"Porra... acho que encontrei o gay certo para fazer amizade"

"Por favor, não ache que eu serei chaveirinho de hétero!", exclamo.

"Não me ofenda desse jeito!", ele fingiu uma cara de bravo.

"Sabia, só estava te testando", ri.

"Sei... ok, isso pode parecer estranho mas, qual sua diva pop favorita?", ele perguntou, inocentemente.

"Que forma estereotipada de falar com um gay!", exclamei. Ele me olhou assustado. "Eu tô brincando. A Britney Spears"

"Fala sério! É a minha também!" Ele exclamou.

"Você tá zoando! Meu Deus, isso é perfeito!"

"As declarações, rapazes", a secretária chegou na bancada.

"Obrigado. Ei, Jonas, quer lanchar comigo hoje?", perguntei.

"Com certeza"

"Certo, você me encontrará ao lado da mesa de ping pong", eu disse. "Cuidado, as coisas são um pouco competitivas por lá", ele riu e assentiu com a cabeça.

Viramos cada um para um lado, em direção às nossas salas de aula.

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Pego minha bebida e volto à mesa. Jonas e Nicole estão rindo de algo. Ainda é estranho olhar para nós assim. Tão crescidos. Sento em minha cadeira, suspirando:

"Esse bartender é muito ruim, socorro. Ele errou meu drink umas três vezes", desabafo.

"Ruim e gostoso", Jonas diz.

"Isso não é algo que se espera que um noivo diga na noite anterior ao casamento...", Nicole diz, sorrindo.

"Esse não é meio que o objetivo de uma despedida de solteiro?", pergunto.

"Já falei que não quero esse nome", ele protesta. "Só estou me reunindo com meus melhores amigos um dia antes do meu casamento. Esse nome soa como 'michês, drogas e alguma besteira que pode arruinar o casamento'"

"Ok, quem deixou você assistir 'Se Beber, Não Case'?", pergunto.

"O quê?", Nicole diz.

"O filme com o Bradley Cooper. Nunca viram?"

"O que aconteceu com você? Você costumava ser mais gay...", Jonas balança a cabeça, fingindo desapontamento.

"Para, eu assistia ele quando era criança", digo, com um tom de justificativa.

"Ah, então foi antes da transformação", Nicole ri.

"Idiotas", rio também.

"Ok, vamos ao que importa", Nicole diz. "Antes de você voltar, eu e o Jonas estávamos tentando lembrar como a gente tinha se conhecido. Eu sei que vocês dois já eram amigos. Nem isso ele lembra na verdade"

"Ei, não!", Jonas diz, depois de dar um gole na sua bebida. A memória dele era como uma piada interna para nós. "Eu sei que eu e o Luciano já conversávamos. Só não lembro como foi. Foi no recreio?"

"Meu Deus... não, não foi no recreio. Foi na diretoria. Você tava naquela época ruim, faltando e tal, lembra?", digo. Ele concorda, parecendo se lembrar. Nicole e eu começamos a rir dele.

"Já não tem mais graça", ele diz, fechando a cara.

"Sempre vai ter graça", ela diz, entre gargalhadas.

"Ok, isso ainda não resolve nosso problema. Como nós três nos encontramos pela primeira vez?", ela volta ao assunto.

"Eu sei que eu já tinha te visto quando fazia ballet", digo. "Mas foi uma ou duas vezes. Depois a professora separou as turmas em primeiro, segundo e terceiro ano. E eu também te achava mega metida"

"O quê? Por quê?", ela me olha, incrédula.

"Você era mega sociável e sempre reclamava que a professora estava te colocando no fundo da coreografia. Parecia pretensão para mim. Depois eu fui entender melhor que ela era o problema"

"Você me lembrou disso, agora eu quero te bater", ela diz.

"Lembra quando ela surtou por que eu apareci com a sapatilha no tom de marrom errado? NO ENSAIO!"

"Oh, se lembro", ela vira o grande copo de cerveja de uma vez.

"Gente, foco!", Jonas diz. "Você se lembra como a gente se conheceu, Luciano?"

"Lembro. Foi aquele dia que a Nicole tinha acabado de se meter naquela confusão da bandeira e..."

"Que confusão?" Jonas pergunta, interrompendo-me.

"Ah, lembra, ela e as amigas tinham levado a bandeira LGBT para a sala e tiraram foto. E aí teve uma mega confusão...", minha mente começa a voltar para anos atrás. "Enfim, elas iam fazer um protesto contra a opressão da diretoria, algo assim..."

"Se somos todos iguais, por que a discriminação dos problemas dos LGBTS? Se quer solução, compareça ao protesto amanhã, às nove da manhã, no refeitório!", várias garotas com megafones falavam, passando pela quadra. Os professores negavam com a cabeça, alguns observavam com cara de nojo, outros sorriam. Umas garotas com saias até os joelhos e tranças no cabelo olhavam, incrédulas. Os garotos que jogavam futebol na quadra durante o recreio zombavam da cara delas, assobiando e gritando piadinhas.

Uma das garotas, de cabelo curto e pele amendoada chegou perto de nós (eu e Jonas) e entregou panfletos:

"Compareçam no protesto amanhã se vocês se importam com os casos de opressão LGBT no colégio!", ela falou, animada, até demais.

"No refeitório, às nove? Isso não é no horário de lanche dos docentes?", Jonas perguntou.

"Exatamente", ela sorriu.

"Quem está organizando o protesto?", perguntei.

"Eu e minhas amigas"

"Não acha que os próprios LGBTs do colégio deveriam organizar?", Jonas disse, debochado.

"Com licença?", ela arregalou os olhos, incrédula, e saiu de perto de nós.

"Meu Deus, você não fez isso!", disse. "Ela é lésbica, Jonas!"

"O QUÊ?!", ele exclamou. Conseguia sentir sua vergonha pairando no ar.

"Sim, ela e todas as amigas. Pelo menos segundo os boatos. E o Instagram dela", apontei o celular para ele.

"Nossa, que bola fora", ele riu, nervoso.

"Acho que devemos confirmar nossa participação", eu disse. Ele assentiu e nós corremos até ela.

"Estamos dentro", disse. Ela sobressaltou e se virou para mim.

"Que bom", e então se virou em direção à sua classe.

"Espera!", Jonas disse. "Desculpa pelo 'os próprios LGBTs do colégio', eu não sabia..."

"Tá tudo bem, sério", ela falou, já se virando novamente.

"Ei, você disse no seu perfil que gosta de Minecraft", falei. "Eu e o Jonas estamos precisando de alguém para jogar com a gente"

"Eu nem sei o nome de vocês!", ela nos olha com desdém.

"Eu sou Luciano, prazer. Esse é o..."

"...Jonas, já entendi. Vou pensar no caso de vocês", ela disse e se voltou para o caminho da sala.

"Por favooooor, nós realmente precisamos de alguém para jogar. Por favor, por favor, por favor, por favor", gritei. Ela parou no meio do caminho, assustando-se novamente.

"TUDO BEM! Manda uma mensagem para mim", ela disse, sem se virar e voltou a andar para a sala.

"Você não deu seu número!", falei. Ela suspirou.

"O que eu fiz pra merecer isso? Manda pelo Instagram!"

"Tudo bem! Boa aula!"

"...e foi isso", digo.

"Uau, viagem no tempo", Jonas bebe um pouco de sua cerveja, parecendo nostálgico e assustado.

"Meu Deus, não lembrava que vocês tinham sido tão insuportáveis", Nicole diz.

"Me tira fora dessa, quem fez tudo foi o Luciano", Jonas falou, levantando as mãos.

"E nada teria acontecido se eu não tivesse feito. De nada", digo, mostrando a língua.

"The man's got a point!", Nicole diz.

"Começou o inglês", rio. "Alguém tira a bebida dela!"

"Ai, Luciano, me deixa em paz", zoar uns aos outros era como nossa amizade funcionava.

"Gente, eu tenho uma pergunta", Jonas diz. "A Viviane continua diretora?"

"Sim", Nicole responde. "Eu tenho um programa de terapia de graça para os LGBTs da cidade, pela internet. Digamos que mais de um aluno de lá frequenta as sessões"

"Vaca", digo.

"Luciano!", Jonas ri.

"Ah, quem se importa? Ela é uma vaca mesmo", Nicole vira um drink. "Vou pegar mais para mim, alguém quer?"

"Não", dizemos em uníssono.

"Certo. Já volto"

"Sabe do que eu estava lembrando?", Jonas diz. "Daquela vez que a Nic terminou a amizade com aquela menina, Paula"

"Nossa, verdade. A gente já era amigo há um tempo, né?", lembro-me do ocorrido, que agora parece ter acontecido em outra vida. "Depois teve todo o lance com aquele amigo em comum das duas"

"E a mudança para Campinas?", Jonas faz uma careta.

"Vixe... ela tá vindo, deixa quieto", digo.

"Que nada, ela não se importa. Somos melhores amigos!"

"Do que vocês tão falando?", ela se senta novamente.

"De você", Jonas diz. "Lembra da sua mudança temporária para Campinas?"

"Se eu lembro? Como poderia esquecer?", ela suspira.

"Você ainda mantém contato com aquela menina, Rue?", ele pergunta.

"Não. Ela mudou de país há muito tempo. Acabamos perdendo o contato", sua feição se altera um pouco.

"E aquela outra, que você brigou, Paula?", pergunto.

"A gente voltou a se falar no último ano do ensino médio. Mas eu perdi o contato com quase todo mundo de lá quando fui pro Rio", ela faz uma cara feia e vira mais um drink.

"Dois", digo.

"Três", rimos todos.

"Chega de falar do meu passado. Gatilhos. Vamos falar do Jonas!", digo.

"Oh, meu Deus", ele esconde o rosto com as mãos.

"Aquele primeiro 'namorado' dele que enganou ele", rio. "Lembra do drama?"

"Coitado", Nicole começa a rir também.

"Eu odeio vocês!"

"Estamos brincando", bato a mão na sua cabeça, como se quisesse confortá-lo. Ele me dá o dedo. "Mas eu devo dizer que, de todas as profissões que você pensou depois do colégio, corretor de imóveis nunca seria o meu palpite"

"Né!", Nicole exclama.

"Eu sei, eu sei. Nem eu imaginava isso. Mas até que, no fim das contas, é bem legal"

"E te rendeu alguns frutos...", aponto para o anel de noivado em sua mão.

"E como vão as coisas com a Aline, Nic?", Jonas diz, depois de alguns minutos de silêncio. Que estranho. Ele não era de fugir de assuntos pessoais, eu costumava ser o reservado do grupo.

"Isso que eu chamo de mudança de assunto", ela demora um tempo para processar a virada de chave no sujeito da conversa. "Nós terminamos semana passada", então diz, rapidamente.

"Sinto muito", dizemos nós dois.

"Ah, que nada! Ela estava surtando que eu ia visitar vocês aqui. Não preciso de alguém assim, pelo amor!"

"E você, Luciano?", Jonas me olha com um sorriso.

"Eu o quê?", pergunto, revirando os olhos. Odiava falar de mim.

"Como andam os namoradinhos?", Nicole solta uma risadinha.

"Se eles existissem..."

"Você sempre teve essas dificuldades né", ela diz. "Lembro de quando você procurava uns caras na internet e sempre dava errado", os dois riem.

"Com licença? Não gostei, vamos voltar a falar do coração partido do Jonas", nós rimos.

"Nós não precisamos de nenhum deles!", Nicole dá outro gole. "Só precisamos de nós. Eu e meus filhinhos"

"Ok, você é literalmente a mais nova", digo.

"Ainda assim a mais responsável", ela diz. Reviro meus olhos. "Eu terminei a escola primeiro que vocês!"

"Nós terminamos juntos", Jonas diz.

"Você era adiantada. Não conta", protesto.

"Dane-se. O que importa é que eu sou a mãe"

"Lembra quando a gente era casado", rio de um jeito histérico.

"O quê?", Nicole ri também.

"No começo da nossa amizade, nós tínhamos algumas opiniões parecidas. Aí brincávamos que éramos marido e mulher"

"Ah, é! Não durou um mês, né?"

"Não. Logo a gente se conheceu melhor e bem..."

"Como a gente nunca brigou?", Jonas pergunta.

"Eu não faço a menor ideia", ela diz.

"Acho que a gente sempre teve a maturidade de separar discussões bestas de algo mais sério", digo. "E também sempre tivemos a oportunidade de dizer quando um irritava o outro"

"A gente te irritava, Luciano?", Nicole pergunta, fingindo surpresa.

"Ah, todo o tempo. Juro por Deus, quando vocês falavam aquilo de... deixa pra lá"

"Agora eu quero saber", Jonas aponta a bebida para mim. Ainda estava na metade. Meu Deus, aquilo devia estar quente.

"São coisas pequenas, deixa pra lá", pego um pouco da porção de batata que tínhamos pedido

"Ih..." Nicole começa a rir.

"Ai, gente, nem acredito que já passou esse tempo todo...", digo. "Lembra quando a gente se mudou?", eu tinha ido para SP, Nicole para o Rio e o Jonas para a capital. "Tivemos que nos adaptar à moda da web amizade"

"Nós nos ligávamos toda noite porque não sabíamos fazer nada", Jonas ri.

"Bons tempos...", Nicole sorri de um jeito bobo, lembrando-se de tudo.

"Queria que tivéssemos mais tempo. Tudo está mudando agora. Parece que é um aviso da vida: tem que crescer, querendo ou não", digo.

"Em um minuto você está num protesto sobre uma bandeira estúpida e uma diretora injusta, e no outro, casando...", Nicole reflete.

"Pois é, parece que nossos quinze anos foram ontem", a voz de Jonas vacila. "Agora eu vou... eu... eu... não consigo fazer isso!"

"O quê?!" Nicole e eu dizemos em uníssono.

"Tudo isso! Casamento, vida juntos, meu Deus e se ele quiser um filho?! Eu não consigo", ele se levanta e sai correndo.

"Por esse twist eu não esperava ", digo.

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"Jonas, Jonas!", Nic e eu batemos na porta do banheiro, onde ele estava trancado há dez minutos.

"Eu quero ficar sozinho!", ele grita de lá de dentro.

"Você não pode ficar aí para sempre!", digo.

"Vão embora!"

Nos afastamos na parede e continuamos a conversar mais baixo:

"E agora?", ela pergunta.

"Eu não faço a menor ideia. Por que ele fez isso?", digo, começando a me desesperar.

"Deve ser estresse pré-casamento. Eu espero. Ele não pode desistir"

"Meu Deus, e se ele desistir? Nic, isso é mau, isso é mau, mau, mau!", talvez eu já estivesse desesperado.

"Controle-se, homem!", ela me sacode.

"Nós precisamos ajudar! O que..."

"Com licença", um garoto chega ao meu lado, interrompendo-me. "Você é aquele escritor que estudou na escola pública daqui?", suspiro, me recomponho e digo:

"Sou. Sou eu, sim"

"Ah, li alguns dos seus trabalhos"

"Que legal. O que achou?", sorrio.

"Muita coisa de gay. Não faz meu estilo. Talvez se você saísse da sua zona de conforto...", ele fala, gesticulando bastante. Meu queixo cai. Sinto minhas bochechas corarem, mas tento não demonstrar.

"Hum, obrigado? Algo mais?"

"O banheiro tá ocupado?", ele aponta para a porta.

"Sim, meu amigo está lá"

"Ah, certo. Tchau. Hum... sucesso", ele dá uma piscadela para Nicole, que faz uma cara de nojo.

"Au. Essa doeu", digo.

"Já te disse para parar de perguntar o que as pessoas acharam dos seus livros. Isso acontece", Nicole começa a rir. "Que garoto abusado. Ainda tentou... em mim...", seu corpo dá uma tremida e ela ri, descrente do que acabou de acontecer.

Jonas sai do banheiro. Sua cara não está das melhores, mas parece estar menos em pânico que antes.

"Hum, tudo bem?", pergunto. Ele faz que não.

"Quer conversar sobre o que rolou?", Nic pergunta.

"Talvez", ele diz. Sua voz sai miúda.

"Olha, ficar nervoso antes de tomar passos grandes na vida é normal. Você só precisa relaxar. Vai dar tudo certo", Nicole diz.

"Só senti que não vou mais ser um adolescente, que tô crescendo..."

"Um pouco tarde para ter a crise dos dezoito", digo. Nic me lança um olhar reprovador.

"Eu só... sei lá, revendo tudo... e se eu não estiver pronto?"

"Você está", dizemos juntos.

"Só de você ter aceitado fazer isso, já prova que você quer e sente que está pronto", Nicole diz, abraçando-o.

"Sim, você sempre conta pra gente como estava super ansioso para o casamento, contando os dias, que não via a hora. Isso é só um estresse pré casamento", digo.

"Obrigado, gente", ele diz, com um sorriso amarelo.

"Vamos embora? Eu estou muito cansado e temos bastante trabalho amanhã", digo. Eles concordam.

"Er, hum, gente", Jonas diz, enquanto esperamos o táxi. "Se vocês puderem dizer que teve muita droga e michês para o Ângelo... é que nós fizemos uma aposta. E eu errei feio na despedida de vocês..." começamos a rir.

"Ok, meu bem, mas você paga o táxi", Nic diz.

"Ei! É a minha despedida de solteiro! Vocês que deveriam me agradar"

"Você quase nos matou do coração há dez minutos atrás", digo. "Tem que pagar de algum jeito"

"Tudo bem", ele concorda.

Eu e Jonas passamos os braços ao redor de Nicole e começamos a caminhar assim em direção ao ponto de táxi. Tudo estava bem.

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