*AVISO* se você ficar ansioso com cenas de homofobia ou causar gatilho, então pule, por favor.
Este capítulo possui música
That's Amore - Dean Martin
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Ta Reine- Angèle (version orchestrale)
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Emma Swan
Viajar por tantos lugares, um atrás do outro era extremamente cansativo, mesmo que a equipe — ou boa parte dela se excluíssemos a presença de Zahi — fosse calma e maravilhosa em suas conversas que distraiam todos do cansaço que parecia sempre nos espreitar.
Regina após a Romênia parecia mais empolgada a cada possibilidade, criando roteiros em sua cabeça que ninguém conseguia acompanhar. Não havia cansaço visível em sua pele, diferente de Fiona e eu que possuíamos bolsas que começavam a ficar escuras abaixo de nossos rostos.
Naquela altura do campeonato havíamos apenas nos rendido as ideias que a morena poderia nos oferecer, apoiando-se em nossas cadeiras do aeroporto enquanto ouvíamos a arqueóloga divagando sobre qual lugar da Itália conseguiríamos visitar com apenas cinco horas antes de irmos direto para a Inglaterra.
— Podemos conhecer a praça da Fontana Di Trivi — Mills parou para sentar do nosso lado, olhando em nossos olhos com expectativas — O que acham? Fica perto do aeroporto.
Fiona bateu com a ponta do seu cotovelo na minha barriga, impulsionando para que eu desse uma resposta em seu lugar.
— Acho incrível — Acenei em confirmação, escutando a morena mais alta batendo em sua testa, descontente com o que disse — Podemos aproveitar que está fazendo um dia lindo e andarmos pelas lojas que tem lá.
Regina alargou seu sorriso ao me ouvir, concordando do seu modo contido, porém seus olhos se reviraram ao perceber que Fiona estava muda, fingindo estar ocupada com seu celular, disfarçando de modo péssimo.
— E você, Humbert?
— Eu o que? — Bateu em outra tecla na tela digital, dando-me a ideia que não estava digitando nada além de coisas incompreensíveis.
— Irá conosco?
Escondi o riso que tentou me escapar entre os dedos, percebendo os olhos de Regina se estreitarem, não aceitando que a sua colega de trabalho estivesse mesmo tentando fugir de nós duas.
— Oh, receio que não, eu tenho... — Humbert olhou ao redor, procurando ganhar tempo em uma desculpa mal construída e falhando.
— Ah, por deus, diga logo que não quer ir — Intervi, erguendo a mão em exasperação antes que Mills pudesse a enforcar apenas com o olhar gélido.
— Eu não quero ir. — Repetiu, dando-se ao menos o trabalho de parecer culpada.
— Finalmente — Regina respirou em alívio, pondo-se de pé para empurrar sua mala de rodinhas em direção a outra arqueóloga — Que bom que irá ficar, assim pode olhar nossas malas, certo? Ok, obrigada, Fiona, até mais!
E com um aceno cínico Regina já me puxava consigo, rindo aeroporto a dentro sem um pingo de vergonha ao deixar a morena mais alta com uma careta descontente no meio do saguão.
O sol da Itália sempre soaria diferente para mim em tempos como aqueles, onde nos aquecia mas havia um vento flutuando pelas nossas peles como uma primavera fora de época, balançando as folhas das árvores que ladeavam todo o caminho que fazíamos de taxi para a Fonte que a latina-árabe desejava visitar.
Já havia conhecido a Itália antes, tanto a passeio quanto durante outros trabalhos, descendo ruas se pedregulhos abaixo ou subindo em partes altas para conseguir as melhores capturas através da minha lente.
Como estávamos a apenas quarenta e cinco minutos de distância do local não demoramos muito para nos vermos em uma praça com uma grande quantidade de ambientes gastronômicos, com um cheiro melhor que o outro quando passávamos em frente.
— Eu amo esse lugar — Regina comentou de olhos fechados ao parar no meio da sua caminhada, respirando fundo para sentir o cheiro que nos rodeava — Já percebeu que cada lugar tem uma aroma diferente?
Ergui uma sobrancelha ao refletir um pouco, percebendo que sim, a acadêmica estava certa sobre.
— Nunca havia parado para pensar a fundo, mas agora que disse fica visível na minha cabeça.
* Play That's Amore - Dean Martin *
A morena sorriu, abrindo os olhos para me encarar com suas orbes castanhas lotadas de diversão, segurando minha mão direita entre a sua para nos levar adiante, satisfeita com cada pequena coisa que via.
Retirei a câmera da sua capa para fotografar a mulher a minha frente em seu macacão vermelho confortável e o chapéu de tecido branco e largo na sua cabeça, os cabelos negros balançando com o vento, levando seu cheiro flutuando ao meu nariz mais do que qualquer outro ao nosso redor.
Estava tão ocupada fotografando que mal percebia o que acontecia até pararmos em frente a Fonte que a arqueóloga queria visitar, o barulho de água e multidão me chamando a atenção.
— Você tem uma moeda? — Questionei para a morena distraída, roubando sua atenção.
— Perdão? — Abaixou-se para tocar no material que montava a grande atração branca, que refletia no sol da tarde italiana.
— Uma moeda jogada e uma realização de um desejo. — Esclarecia, procurando dentro da bolsa que estava pendurada no meu ombro, retirando duas pequenas moedas egípcias, entrando uma para Mills.
— Funciona mesmo?
— Nunca testei — Dei de ombros, rodando a esfera gelada de metal entre os meus dedos antes de jogar na fonte abruptamente, observando afundar água a dentro.
— Qual foi seu pedido? — Regina perguntou, ainda encarando a sua na palma da sua mão, reflexiva.
— Eu apenas joguei, deixarei o universo encarregado por mim. Ele deve saber mais o que eu quero do que eu mesma — Sorri, incentivando com um gesto para que fizesse o mesmo que eu, observando Regina fazer meu mesmo movimento, jogando para o alto até cair dentro da água clara na fonte famosa.
— A Liberdade — A morena sussurrou em árabe, voltando-se para mim com um belo sorriso de lábios vermelhos — Sorvete ou massa?
— Por deus, sorvete! — Exclamei, entrelaçando nossos braços, com meu vestido branco flutuando pelos nossos passos rápidos até alguma sorveteira próxima da onde estávamos, andando pelas pequenas ruas como se tivéssemos o tempo do mundo, sendo rodeadas pelo italiano falado comumente entre quase todos.
E para minha surpresa, Regina era quase fluente ao falar, pedindo o sorvete de menta com a mesma habilidade de um nativo.
〽️
Pisar na Inglaterra era sempre um desafio, a sensação de uma pássaro voltando para a gaiola após pouco tempo sendo livre. Suspirei ao sair no clima frio do país, voltando a sentir uma sensação de aperto em meu peito, como se uma mão invisível apertasse coração e pulmão, fazendo o primeiro acelerar e o segundo lutar por ar.
Era sufocante.
Reprimi a sensação por todo o tempo que podia, rindo com Graham e Archie ou os outros funcionários que trabalharam na empreitada de Cleópatra, entretanto não consegui disfarçar meu incômodo para Regina que havia percebido a tensão em meus ombros duros igual pedra, perguntando se eu estava bem assim que saímos do aeroporto e nos dirigimos até o hotel que ficava perto do Museu Britânico, onde seria a exposição de alguns materiais da Faraó e também a palestra que seria administrada.
Daquela vez possuíamos apenas uma quarto para cada uma, não sendo necessário dividir com ninguém e por isso deixei meu corpo relaxar dentro da banheira com água morna, lotada do aroma de lavanda, lembrando da minha infância na casa da minha vó.
Levantei a mão deixando a água cair, em um movimento displicente que era observado pelos meus olhos vidrados e perdidos em memórias, desfocados pelo tempo e momento antes de escutar batidas na porta que me arrancaram bruscamente dos meus devaneios, me fazendo erguer no meio da banheira, deixando a água pingar corpo abaixo até estar enrolada no roupão branco felpudo disponibilizado pelo hotel.
Caminhei em passos molhados até a porta, abrindo para encontrar uma Regina vestida de negro da cabeça aos pés, pronta e adiantada pela conferência. Seu sobretudo estava apoiado em suas mãos, mas a blusa preta e grossa de mangas com uma renda dourada em pequenos trechos do pulso e no alto do pescoço — que era o único tração de cor — já fazia o trabalho de a aquecer muito bem.
— Pensei em ver como... Você estava — A morena suspirou, cruzando suas mãos na frente do corpo com o sobretudo quase tocando o chão pelo seu movimento.
Pisquei lentamente, sentindo a ponta dos meus cabelos loiros pingarem no chão. Levei uma respiração profunda para fazer as palavras saltarem da minha boca com normalidade.
— Estou ótima, creio que seja apenas mais uma das minhas enxaquecas — Sorri, passando os dedos nos meus fios até os erguer e prender em um coque para impedir que eu continuasse a molhar toda a entrada do quarto.
— Claro... — Mills concordou em um tom que demonstrava que não acreditava muito bem na minha afirmação, mas deu meu espaço ao tomar um passo para trás, acenando afavelmente — Caso não consiga estar presente hoje não há problema, podemos pedir para que gravem e tirem fotos, apenas me deixe ciente.
— Oh, não se preocupe, já tomei um remédio. Logo mais estarei como nova — Sorri, dando de ombros, mesmo que fosse mentira. Eu era acostumada demais a me esconder em mentiras que viravam uma bola de neve, até eu ser engolida pelo gelo.
— Se precisar estou a um quarto de distância — Regina sorriu, sorrindo calmamente antes de se afastar, andando em passos firmes e devagar, o barulho do seus saltos da bolsa sendo engolidos pelo carpete.
Fechei a porta logo em seguida após a sua presença ir embora, deixando minha testa apoiada na madeira branca antes de criar forças para me arrumar do melhor modo possível antes que o atraso fosse inevitável.
A calça negra de cintura alta era quente e agarrada ao meu corpo, quase como um couro fosco, a blusa branca de tricot bem intricada ajudava a continuar aquecida, assim como o sobretudo negro de botões pratas lisos e largos descendo pela extensão do tecido.
Olhei-me no espelho por um tempo, observando meu rosto desanimado beirando o abatido até ter certeza que a maquiagem seria obrigatória naquela tarde.
Com um batom levemente avermelhado, olhos delineados e esfumaçado, um pouco de cor e contorno eu já parecia pronta para enfrentar algumas coisas que eu não sentia ser possível.
Ao terminar de prender meu cabelo em um coque no alto da cabeça com uma única mecha de trança capturei meu celular para enviar uma mensagem para alguém que não falava a tempos.
Emma Swan: Estou em Londres. [16:08]
A resposta não demorou a chegar, perguntando onde poderia me encontrar, curiosidade e saudade escapando pelas letras digitais, quase escorrendo em satisfação, e por isso enviei o horário que poderia me encontrar no Museu, após a palestra.
Com uma última mensagem guardei o celular no bolso do sobretudo, saindo para descer para o saguão com meus materiais para o dia. Queixo e ombros erguidos como uma muralha inabalável, até esbarrar nos olhos analíticos de Regina.
Havíamos passado tempo juntas demais para que qualquer mudança minha passasse despercebida da morena e eu sabia disso, mas ignorei por um tempo, seguindo para a Van que nos levaria ao museu, sentando na cadeira do corredor, deixando a da janela a sua disposição, já que a latina sempre gostava de observar as paisagens, enquanto aquilo me deixaria enjoada.
E como eu imaginava, o Museu Britânico permanecia o mesmo, apenas mais organizado em sua segurança e agora ladeado por uma sala gigante para palestras, abertas para a mídia e investidores que estavam curiosos para ver os artefatos de Cleópatra tão de perto.
Regina já era mais relaxada a essa altura, respondendo as perguntas com mais firmeza do que a primeira conferência feita no Egito, seguindo com êxito, ignorando qualquer palavra que Zahi desse, evitando o olhar através da bancada, repugnando sua presença péssima.
Fazer meu trabalho e ser imersa em uma sala que nunca havia visto, cheia de perguntas, curiosidades e artefatos egípcios apenas me distraía de modo necessário que eu não havia conseguido perceber antes.
Com uma última captura de todos os arqueólogos e equipe em pé sendo aplaudidos após horas de conversa meus ombros relaxaram mais, fazendo-me sorrir para a morena que desfia do pequeno palco, tentando andar em minha direção mas sendo impedida pelo diretor do Museu que possuía perguntas.
Pisquei um olho para a morena antes de sair de sair da sala, a bolsa transversal pendurada em meu ombro balançando para frente e para trás enquanto eu olhava com curiosidade para a exposição egípcia que estava ali a anos consecutivos e provavelmente desde antes do meu nascimento.
Fiz uma careta para as caixas de vidro sem os detalhes que no Egito seriam tão visíveis e bem cuidados.
— Quem roubou mais artefatos egípcios, os britânicos ou franceses? — A voz rouca de Mills soou, flutuando até mim ao passo que a morena andava até mim com as mãos atrás das costas, séria e divertida ao mesmo tempo.
— Os franceses — Respondi sem precisar pensar muito, levando em conta que o Louvre possuía uma área imensa apenas para isso.
— Resposta correta, srta. Swan — Piscou um olho para mim, finalmente abrindo um sorriso — O que faz aqui tão longe? A nossa equipe está planejando um ótimo jantar para comemorar o nosso último país europeu.
— Eu estou...
Iria explicar o que fazia mas braços cobertos por um sobretudo creme rodeou minha cintura repentinamente, fazendo-me sorrir ao sentir o cheiro de cereja e do impacto animado que seguiu o meu corpo.
Virei de frente para encarar a britânica que mais sentia falta, a arrancando arrancando força e empolgação, deixando seu cheiro me transmitir um pouco da calma que eu precisava.
— Emma! Eu estava com tanta saudades! — A morena murmurou, me balançando de um lado para o outro até me soltar, suas mãos descendo e subindo pelos meus braços em um carinho comum seu.
— Eu também, mesmo que eu não demonstre tanto — Sorri de lado, a segurando de lado pela cintura ao me virar para Regina que permanecia parada e com um olhar curioso em seu rosto limpo de expressões.
— Oh! Olá — A figura grudada em minha cintura exclamou ao ver a arqueóloga — Desculpe a indelicadeza, não vi que a Emma estava com companhia.
Regina balançou a cabeça, em um gesto que demonstrava que não havia se sentindo ofendida, oferecendo sua mão para um cumprimento educado.
— Sou Regina Mills, colega de trabalho da srta. Swan — Explicou ao ter sua mão cheia de anéis dourados agarrada pela morena que não soltava a minha cintura.
— Um prazer conhecê-la, sou Ruby Luccas — Sorriu, separando-se de mim para sussurrar enquanto me encarava — Por que não me disse que trabalhava com pessoas tão bonitas? Eu teria largado a psicologia para trabalhar com jornalismo cultural.
Ri alto, a risada ecoando na sala quase deserta do museu ao ver que Regina havia escutado e arregalado os olhos com a sinceridade da minha amiga.
— Pare de constranger as pessoas! — Reprimi seu comentário, virando-me para encarar a arqueóloga — Regina é a responsável por encontrar Cleópatra, chefe da equipe e teoricamente minha chefe também.
— Pelos deuses, eu não sou sua chefe, Swan — Mills cruzou os braços sobre os seios, me fazendo rir um pouco mais pela sua expressão, entretanto um movimento no canto da sala chamou minha atenção para a pessoa que cruzava as portas daquela área, arrepiando meu corpo com a sensação de vertigem e ânsia de vômito.
Os olhos do homem que estava acompanhado de uma pequena menina esbarraram nos meus e deslizaram para encarar a mão de Ruby grudada na minha cintura.
Minha amiga de anos tremeu ao ver onde eu olhava, seu sorriso desvanecendo aos poucos até se tornar uma expressão amedrontada.
O homem deixou a pequena garota, que parecia ter em média nove anos, observando algumas estátuas egípcias ao andar em nossa direção com passos duros.
Engoli em seco ao sentir sua presença invadindo meu espaço depois de quase duas décadas, mas aquele olhar de nojo nunca fugiria da minha mente. Me assombrava muitas noites insone, como um breve aviso de como tudo não era perfeito, por mais que eu mascarasse ou viajasse o mundo todo.
— Mesmo tanto tempo depois você ainda não aprendeu — Neal falou alto, ficando próximo o suficiente para percebemos em seu tom de voz que a raiva pingava de cada palavra sua — Ainda faz essas suas nojeiras aos olhos de todos, em um ambiente que entram crianças como a minha filha.
— Neal... — Ruby sussurrou, tentando parar as palavras do meu meio irmão com um aviso de que aquele não era o lugar para fazer isso — Apenas vá embora.
— Ou o que? O que uma vagabunda como você vai fazer? Nem sua família te daria voz, e quisera eu nunca mais olhar pra você e ver o que fez com a minha irmã — O dedo erguido em direção ao rosto de Ruby me acordou para a situação, me dando a percepção que Regina assistia a cena que se desenrolava com pura descrença, o rosto se tornando pedra aos poucos, séria.
— Meia-irmã, Neal — O corrigi, retirando um pouco de força que havia de dentro do meu âmago para falar, torcendo para que me escutasse e sumisse — Tudo o que fiz foi consciente, você já sabe da história e já passamos do tempo das explicações. Apenas se retire e não traumatize sua filha — Falei, olhando a menina que de certa forma era minha sobrinha, seus cabelos loiros como herança da nossa família não o deixava dizer o contrário.
Entretanto meu irmão não estava tão decidido a sair enquanto não jogasse todo seu lixo em cima de mim e Ruby.
— E o que você sabe sobre filhos? Não tem nenhum e nunca terá, e ainda bem que não terá, nenhuma criança mereceria viver com alguém doente como você — Continuou, ignorando o corpo da minha amiga que começava a tremer do meu lado.
— Eu não sou doente, pare com esse pensamento ridículo, já se passaram anos e sua cabeça continua paralisada em décadas atrás? — Dei um passo a frente, percebendo que Regina se aproximou para ficar do outro lado de Ruby, a amparando. Estava cara a cara com Neal agora, respirando fundo e lutando para não perder o controle — Seu cérebro atrofiou em vez de evoluir?
O homem mais alto riu, fazendo o som que saiu da sua boca mexer os fios de cabelo solto do meu coque.
— Para quê esse estresse, Emma? Essa vagabunda que você chamou de "namorada" — Usou seus dedos como aspas no ar, ironizando — Não está fazendo o trabalho que um homem deveria fazer? E eu estou só falando a verdade.
— Você não entende porcaria nenhuma, e por deus, saia daqui antes de que eu perca a cabeça e te soque na frente da minha sobrinha — Sussurrei, deixando meu peito esbarrar com o seu, o empurrando com as mãos espalmadas para que o mesmo desse um passo para trás.
Quando Neal se viu provocado, sua mão se ergueu para desferir um tapa ou um soco, porém segurei seu pulso no exato segundo que seguranças irromperam pelas portas da sala, o afastando de mim com mãos duras em seu ombro.
— Por favor, o retirem — Escutei Regina falar atrás de mim, escutando um choro baixo que provavelmente vinha de Ruby.
Neal se debateu nas mãos do segurança, irritado com a atitude da arqueóloga, virando-se para encarar a morena com um sorriso sarcástico e raivoso permeando seu rosto.
— Você é outra vadia com quem a minha irmã está saindo? Que belo trio. Deveriam chamar um homem para participar — Sua voz ecoou na sala e naquele momento dei graças ao céus por aquela área estar vazia, mas não impedia meu corpo de tremer de ódio e nojo.
Regina aproximou-se do meu irmão, acenando com a cabeça para a criança que se aproximava, assustada por ver seu pai sendo segurado por dois grandes seguranças.
— Papai, o que está acontecendo? Quem são elas?
E aquilo foi a gota d'água dentro de um copo cheio, fazendo as lágrimas encherem meus olhos ao perceber que aquela menina iria crescer naquele meio e que não fazia ideia de quem eu era, mesmo que tivessemos o mesmo sangue.
Abaixei-me um pouco, limpando os olhos antes de falar com a menina que eu não fazia ideia do nome com calma, avisando que era apenas um engano e que estávamos conversando, que logo seu pai estaria com ela, entretanto escutei a ameaça de Regina alta e clara no meu ouvido.
— Devo dizer que homofobia é crime e que as ofensas que jogou contra nós duas em uma sala cheia de câmeras, com a ameaça de bater em uma mulher, cabem diversos processos? — A arqueóloga avisou, o som de seu salto ecoando no ambiente ao se aproximar no homem mais alto no mesmo momento que ofereci a mão para a criança loira, como eu.
As lágrimas agora escorriam pelo meu rosto contidas, porém ainda ali, ainda presentes, em uma dor que nunca ia embora. Era o meu primeiro contato físico com alguém da minha família em quase duas décadas, e era um total desastre.
Levei a menina até Neal, pedindo para que um segurança a acompanhasse porta a fora com meu irmão que se debatia até se ver livre, jogando-me um olhar ameaçador por cima do ombro antes de sumir das nossas vistas.
Olhei para Regina que acenou para a minha amiga, indicando com o olhar o que eu não havia visto. Aproximei-me de Ruby para a abraçar, sentindo o corpo magro me apertar com força no meio dos tremores que ela emitia, provavelmente revivendo aquela noite que de certa forma havia mudado tudo.
Fiz um carinho em seu cabelo, agradecendo Regina com um olhar por cima do ombro da psicóloga. Para nossa sorte conseguimos um tempo antes de seguirmos as três por outra saída até o escritório que a morena possuía uma rua de distância do Museu.
Ruby se acalmava aos poucos, mas em compensação minha angústia crescia dentro do peito, rugindo como algo que foi silenciado durante muito tempo.
A arqueóloga caminhava em silêncio, parecendo uma rocha inabalável, porém seus olhos transmitiam empatia a cada vez que nos olhava, sussurrando sem palavra nenhuma que "estava tudo bem"
Por sorte o escritório da minha amiga de infância estava vazio, segundo ela não havia paciente algum pois havia se dado folga para rever algumas coisas após as palestras que andou fazendo em outros países, se tornando um grande nome da psicologia não só dentro do Reino Unido, mas também Estados Unidos e Canadá.
O orgulho que eu sentia era compatível ao sentimento de impotência que me habitava ao ver a morena esguia se jogar no divã que possuía em sua sala, apoiando uma mão em sua testa antes de apontar para que Regina e eu sentássemos no sofá, como se fôssemos sua psicóloga.
— Não é irônico? — Questionou, o som saindo abafado pelo braço por cima do rosto — Uma psicóloga bem sucedida que tem o emocional tão forte quanto o de uma criança?
Sua risada era irônica, mas morreu na garganta ao ouvir Regina falar.
— Eu discordo. — A arqueóloga deu de ombros ao nos ver a encarar — Você pode ser incrível em aplicar um bom trabalho em outros, mas ainda sim ter dificuldades em trazer para si. Você conhece e está envolvido emocionalmente consigo e acho que isso já é um ponto para tornar um caos.
Acenei em concordância, respirando fundo enquanto me recostava no sofá, sentindo o cansaço perpassar meu corpo com um tremor.
Brinquei com uma linha que saia aos poucos do meu sobretudo, tentando me distrair.
— Concordo com Regina, Ruby, não se martirize por Neal ser um estúpido.
— Como eu faria isso se tudo que aconteceu foi minha culpa? — A psicóloga questionou com uma risada, deixando-me surpresa com o fato de que a mesma se sentia culpada por algo que cabia a si.
— Não é, você sabe bem o que aconteceu foi uma situação infeliz...
— Infeliz é eufemismo, levando em conta que nossa vida mudou da porra de uma noite para outra, Emma!
Levantei-me para sentar no espaço que Ruby estava deitada, e com isso Regina acenou avisando que estaria na recepção, saindo com um acenar.
Passei quase uma hora conversando com a mulher mais nova que eu um ano, tentando a fazer lembrar que todas as decisões que tomamos foi em conjunto, tanto ela quanto eu não éramos influenciáveis, fazendo apenas o que nos cabia e tínhamos vontade.
Nos despedimos com um abraço, onde eu pedi para que Ruby me ligasse no dia seguinte, a obrigando a ir me ver para um jantar ou almoço para que eu pudesse me certificar que tudo estava bem, mesmo que seu rosto estivesse lotado de pesar e tristeza, diferente de mim que mantinha uma fachada dura e calma que se desmanchou no primeiro momento que saí de sua sala.
As lágrimas caiam em uma corrente, como uma torneira que havia estourado, sem limite algum para a explosão de água, molhando todo meu rosto com gotas gordas, bagunçando um pouco o delineado que havia feito mais cedo.
Eu odiava aquele lugar. Odiava aquela situação com todo meu ser, deixando meu peito se comprimir até a agonia ser a única coisa que eu podia sentir.
Um soluço escapou da minha boca quando Regina cruzou o corredor que eu estava, com o telefone apoiado em sua orelha, mas desligou assim que viu meu estado, seus passos apressados até chegarem a mim.
As mãos cheia de anéis gélidos tão diferentes do seu toque caloroso seguraram meus ombros, deslizando pelo meu rosto em um carinho, não tentando limpar as lágrimas.
— O que você quer? Diga e tentaremos fazer — A morena sussurrou, sua voz lotada de dor por empatia ou talvez carinho a mim, não tentando fazer com que eu parasse de chorar, unicamente deixando minhas lágrimas molharem sua mão.
— Por favor... — A voz que cruzava meus lábios tremia, igual minhas mãos apertando meu peito em algo que aparentava ser o início de uma crise de ansiedade — Por favor, vamos sair daqui, Ruby não pode me ver assim...
— Claro, cariño, iremos. — A mão que estava em meu ombro desceu para a minha, tocando meus dedos com calma e me guiando para baixo no prédio e posteriormente para rua, acenando para um táxi qualquer.
Entramos no carro com a morena nunca me soltando, seu carinho no dorso da mão me lembrando que eu precisava ficar presente e não presa nas memórias distantes.
Disse meu endereço da melhor forma que podia, sendo quase levadas para o outro lado da cidade, um pouco mais distante da capital que eu podia.
O carro parou em frente a grande casa branca com detalhes de madeira tempos depois, trazendo o ar um pouco mais frio e litorâneo de Harrow.
Respirei fundo ao me sentir mais seguro, pagando e saindo do Táxi com Regina atrás de mim, analisando a casa como eu.
— É uma bela casa. — Comentou, apoiando seus dedos no bolso do sobretudo e encolhendo os ombros pelo frio.
— E distante. É perfeita. — Ri amarga, andando até a porta da frente e silenciosamente a convidando para entrar, a deixando passar.
Fui abrindo as janelas como quem procurava por oxigênio, temendo me sentir presa outra vez em algo ruim, respirando lentamente eu caçava o controle do meu emocional com uma necessidade extrema.
Deixei a morena descobrindo a casa, pouco me importando já que a mesma nunca encontraria nem uma foto minha engraçada de adolescência, pois tudo meu havia ficado em outro lugar, perdido no tempo... Ou talvez queimado.
Tentei preparar um chá de camomila, mas as mãos trêmulas acabaram me dando uma bela queimadura e por isso me apressei ao levar duas xícaras para sala, onde Regina já se encontrava sentada, observando a vista que eu tinha de cima de outras casas e mais abaixo o mar que se encontrava escuro pelo anoitecer e o céu cinzento.
— Seu chá, srta. — Tentei brincar, arrancando um sorriso conhecedor da morena que se virou para me encarar, mas ao tomar o copo da minha mão acabou vendo a vermelhidão.
— Você se queimou? Isso vai ficar feio se não passar algo logo.
Dei de ombros, não ligando muito ao sentar do seu lado e tomando um pouco do chá.
— Estou falando sério, Swan, você não tem uma única pomada para isso? — Seus olhos se estreitaram acima do chá, não acreditando que eu pudesse ser tão relapsa.
— No banheiro, primeira gaveta do móvel perto da pia.
A morena se levantou, deixando seu chá na mesa de madeira que estava na nossa frente, parando no meio do caminho, confusa em que direção tomar.
— O banheiro fica no corredor a sua frente, porta na primeira esquerda — Avisei, tomando o líquido morno com um gosto que eu odiava, porém que acalmava minha mente.
Suspirei ao ver que não aguentaria mais tomar o chá, o deixando na mesa e deitando no sofá, encarando o teto branco.
Arranquei as botas dos meus pés, colocando os mesmos em cima do tecido verde escuro e suave, porém minha atenção foi tomada para a morena que voltou, segurando uma pomada na sua mão. Fiz um gesto para me erguer, entretanto Regina me segurou, apoiando meu pescoço antes de se sentar no local que estava minha cabeça, a apoiando em seu colo.
— O que está fazendo?
— Sendo humana, relaxe, Swan. Não vou quebrar seu pescoço. — Riu, fazendo-me a encarar de baixo, notando o quão bela era mesmo naquela posição.
A arqueóloga abriu a pomada, passando em meus dedos da mão direita com cuidado, ignorando minhas recusas e exclamações com sucesso.
— Não precisava fazer isso, eu conseguia fazer sozinha... — Resmunguei, apoiando a área machucada em cima da barriga.
A latina me encarou com força, como se me desafiasse a reclamar outra vez de sua atitude.
— Nem tudo você precisa fazer sozinha, Emma. — Comentou, falando mais nas entrelinhas do que a simples frase. Seus dedos deslizavam pelo meu cabelo em um carinho contínuo, relaxando-me.
— Não lembro a última vez que fiz algo por mim com a ajuda de outro alguém. — Confessei, batendo a mão na barriga levemente em nervosismo.
— Você pode falar comigo se quiser, não apenas sobre história ou sobre a Cleópatra. Já ultrapassamos a intimidade física, então sinto que podemos ultrapassar outras.
— Não sou uma pessoa com muitos amigos.
— Eu percebi — A morena riu baixinho, não parando seus movimentos constantes — Nunca a via conversando com ninguém no telefone, como é normal ver a Fiona e Archie fazendo.
— Bom... — Ri amargamente, deixando as palavras no ar.
— Posso ser sua amiga também, Emma, não apenas alguém para matar vontades.
— Não a vejo assim. A admiro demais para imaginar você como apenas isso. — Suspirei, virando-me no seu colo para sentar, a encarando de perto com nossas pernas nos tocando.
— Então quer contar o que aconteceu? Dizem que sou uma ótima ouvinte, porém apenas fale se sentir confortável, não quero que ache que é obrigada só porquê vi todo o ocorrido de hoje.
Ajeitei-me no sofá para a encarar com mais cuidado, percorrendo meus olhos em toda sua figura, refletindo o que eu tinha a perder e a resposta era "nada", não havia nada.
— Você quer saber sobre hoje, Ruby ou meu irmão?
— Para ser sincera eu tenho uma pequena impressão de que todos eles são a mesma história, entrelaçadas.
Encostei meu corpo no sofá com mais cuidado, deixando as costas no estofado e os joelhos rente ao meu peito, encolhida o máximo que podia ao começar a contar.
* Play Ta Reine - Angèle (version orchestrale) *
Eu tinha dezessete anos quando estava me formando no último ano escolar, vivendo uma boa aventura atrás da outra, sem realmente sair dos trilhos, quase nunca dando problema algum para meus pais ou meu meio-irmão mais velho, que era fruto do casamento anterior de David Nolan com Mary Margareth que morreu no parto. Ingrid Nolan era minha mãe, seus olhos claros e cabelos loiros sempre entregando nosso parentesco.
Olhei-me no espelho do banheiro da escola particular, observando meu vestido vermelho longo destacando minha cor enquanto a música explodia no som do lado de fora, animando todos os adolescentes que sentiam o primeiro ar de liberdade fora da dita adolescência.
Sorri quando vi atrás de mim Ruby entrando pela porta, a trancando ao caminhar até a mim com pressa, seu vestido branco tremeluzindo atrás de si ao correr para me beijar em algo que beirava o excitante e o temor de sermos pegas.
Ruby e eu éramos amigas desde a infância, crescendo juntas graças aos nossos pais que eram políticos e que sempre jantavam uma na casa do outro, nos fazendo criar uma ótima amizade com o passar do tempo, até os últimos meses.
A morena engraçada havia assumido sua vontade de descobrir o mundo, entender sua sexualidade, já que não se via com homem algum e morrendo de medo de tentar algo com outra garota que poderia espalhar aos quatro ventos o que haviam feito e por isso me dispus a ajudar, assumindo que as vezes eu me perdia na ideia de peles suaves e lábios macios, sabendo que a heterossexualidade não era algo que me cabia, mesmo que meu interesse por homens existisse.
Na noite anterior eu havia dado a ideia de que poderíamos contar o nosso relacionamento que já ultrapassava mais de cinco mesmo para nossos pais, pensando que por serem homens políticos e revolucionários seria bem aceito, que nossos medos eram apenas medos, paranoias sem fundamentos.
Após o baile dei um beijo atrás de uma limosine em Ruby, prometendo que ligaria quando contasse e a fazendo prometer que faria o mesmo.
Naquela noite decidi ir a pé até a grande casa cinza em que vivia, dançando nas ruas como se houvesse ganhado na loteria, recheada pelo sabor da paixão que preenchia meu peito como se não houvesse amanhã, apenas sentimentos.
Cheguei em casa com um sorriso de orelha a orelha, ouvindo os questionamentos de Ingrid sobre se eu estava apaixonada.
— Olhe, David! — Minha mãe apontou para o meu sorriso — Isso só pode ser amor.
Meu pai ao ver que a loira estava correta se aproximou para me segurar pelos ombros, depositando um beijo carinhoso em minha testa.
— É verdade? — Sorriu para o meu aceno afirmativo — Então traga aqui essa pessoa para que eu possa conhecer, afinal você está deixando de ser nossa garotinha.
— Vocês já conhecem! — Exclamei, feliz e contente, afastando-me enquanto ficava de pé em frente ao grande sofá que Ingrid estava sentada.
— Conhecemos? E quem seria? — Papai perguntou, provavelmente passando nomes em sua cabeça.
— Ruby. — A voz masculina respondeu por mim, fazendo-me notar que Neal estava no andar de baixo — Não posso acreditar que você quer contar essa nojeira para os nossos pais, Swan!
Olhei confusa para o mais velho, o vendo falar mais sério do que nunca, desgosto presente em sua expressão. Como se me repudiasse e eu não fosse mais sua irmã mais nova de uma hora para a outra.
— Como sabe?
— A vi outro dia no quintal, deixando que aquela puta passasse pelo nosso portão e a beijasse como se fosse um homem! — Riu com nojo, afastando-se da escada.
— Emma, isso é verdade? — Minha mãe perguntou, levantando-se com cautela, porém sendo parada pela mão dura do meu pai que a segurou no lugar.
— O que Neal falou é verdade ou não? — David questionou, quase rosnando, me assustando com o som raivoso presente na voz.
— Sim... — Sussurrei, sentindo meu coração avisar que não havia mais volta, que algo estava errado, que eu estava errada e que eu havia feito o maior erro possível.
Os olhos de todos presentes era um o espelho do outro, um misto de repugnante julgamentos, nojo e decepção. Como se eu fosse impura, como se eu fosse uma doença transmissível, mas isso não impediu o tapa duro que David desferiu contra o meu rosto, fazendo-me virar a face para o outro lado pelo impacto, sentindo a queimação se espalhar pela minha pele junto das minhas lágrimas.
— Eu quero que repita e pense bem. É verdade o que Neal falou? — David perguntou novamente, me vendo acenar com a cabeça até desferir outro tapa mais forte que o anterior — É verdade, Emma? Diga-me e olhe nos meus olhos.
— Não... Não é verdade... — Menti, a voz soando trêmula no meio das lágrimas, sendo estrangulada pelos soluços que soltava involuntariamente.
— Eu não consigo nem olhar mais para sua cara, menina. Apenas... Esqueça tudo que disse hoje e nunca mais me envergonhe. Isso, isso que você acha que é, é um fardo que não quero na minha família.
Aquelas foram as últimas palavras que David me disse antes de subir as escadas, deixando-me tremendo dos pés a cabeça apoiada na parede, assistida por Neal que ignorou e seguiu seu pai mas não antes de cuspir perto dos meus pés.
Olhei Ingrid que possuía a mão em sua boca, me encarando estupefata ao se aproximar.
— Mamãe...
Sua mão erguida me parou, enquanto fechava os olhos.
— Não me chame assim, isso... — Apontou para mim — Isso não é a minha filha. Eu nunca colocaria um pária no mundo. Se essa é sua escolha, então também será sua escolha perder nosso nome. Não quero contato. Por isso se lembre da resposta do seu pai... De David — Se corrigiu antes de dar as costas, seguindo o caminho que todos tomaram, mesmo que eu estivesse deslizando pelo chão em tremores que me tomavam como avalanche, uma atrás do outro, aumentando sua intensidade até ser posta em um choque que me paralisava.
Não haviam pensamentos na minha cabeça ou muito menos a ideia de tempo, apenas sentimentos percorrendo cada extensão minha. Poderia ter se passado dez minutos ou duas horas, eu não sabia, até ser interrompida por uma batida trêmula na janela da cozinha que escutei graças ao silêncio profundo. Era o nosso toque secreto...
Balancei a cabeça ao sair do topor, correndo para a porta traseira da pequena mansão, deparando-me com a pior visão que poderia ter.
Ruby segurava uma mochila da escola com seu vestido manchado de sangue que pingava do seu supercilio e lábios, machucados por algo que parecia ter sido uma péssima briga.
Aquela noite soava como o maior pesadelo que eu poderia estar tendo e que eu torcia para acordar e tudo não ter passado de um devaneio durante o sono.
Mas era real. Era doloroso. Estava tudo fodido e perdido.
— Não posso, Emma, eu não posso continuar com isso — Ruby sussurrou, quase se engasgando em seu próprio sangue.
— O que aconteceu?
— Eles me bateram, meus próprios pais me bateram... — Soluçou, tentando limpar os lábios manchados, tremendo pela dor que aquilo causava.
Tranquei a porta atrás de mim, afastando-me com a morena para uma copa de árvores que ninguém conseguiria me ver, distante da casa.
Ruby se jogou em meus braços em um adeus, tremendo tanto quanto eu, seu sangue se perdendo no vermelho do meu vestido.
— Preciso ir... — Sussurrou, tocando minha bochecha dolorida até eu perceber que havia um corte ali, fino e ardido — Minha vó concordou em ficar comigo.
— Não ficaremos mais juntas? — Deixei uma lágrima escorrer pela bochecha, dolorida em cada sentido da palavra.
— Primeiro precisamos ficar vivas, Emma...
E com um beijo recheado pelo gosto de sangue, Ruby se foi noite a dentro.