Histórias Para Gaivota Dormir

Per MarceloQuinaz

112 5 3

Dez histórias de pessoas, interligadas ou não, unidas por um fato, a cidade em que vivem. Més

0 - Oi
1 - O Piano
2 - Lembrança é um prato que se come à tarde
3 - Crime sem castigo
5 - Correio Elegante do Século XXI
6 - N.J.L.
7 - Expectativa
8 - Promessas de ano novo
9 - Realidade
10 - Noite Feliz (ou nem tanto...)

4 - Aquarela

5 1 0
Per MarceloQuinaz

— Como você está? — León perguntou, olhando-me do banco da frente. Exausta era pouco para como eu estava me sentindo. Além dos nove meses carregando minha filha no útero, eu ainda havia ficado doze horas no centro obstétrico, esperando tudo ficar pronto para a cirurgia, e depois, mais dois dias me recuperando e esperando tudo se resolver para sair de lá com ela. Entretanto, tudo o que disse é:

— Estou bem, só cansada — o que era meio verdade. Eu estava bem mais cansada do que bem, mas ainda assim estava bem.

Ao chegarmos em casa, dei de cara com Tina, minha querida sogra, certamente não a pessoa que eu gostaria de ver naquele momento. Mas, para meu grande alívio (?), ela estava lá para fazer companhia a León. Fui direto para o quarto, dormir. Queria muito cuidar de Emília, mas o cansaço falava mais alto...

Acordo ainda com o gosto de nostalgia na boca. Tinha sonhado com o nascimento de Emília. Não era a primeira vez, mas acho que essa tinha sido a mais marcante. Pois era a última vez que eu sonharia com ela e poderia ficar observando seu crescimento na cozinha, enquanto ela tomava seu café da manhã. Minha pequena estaria num avião em direção à Itália em poucas horas. E sem uma passagem de volta.

Observo meu marido dormindo ainda na cama da qual eu tinha acabado de levantar e decido fazer algo egoísta por um dia. Visto uma roupa qualquer e saio. Vou em direção à loja de doces mais próxima. Eu preciso de um chocolate quente hoje e, aquele é o melhor da cidade. Durante o caminho, tenho mais algumas sessões-lembrança sobre o nascimento de minha filha.

Era um sábado à noite, se não me engano, minha sogra estava arrumando a cozinha e eu, dando de mamar para Emília. Ela não havia saído de lá desde quando tínhamos chegado da maternidade, há três semanas, sempre querendo ajudar com tudo que podia (e até com o que não podia). Emília tinha terminado de mamar, então coloquei-a no berço e fui dar uma olhada no que Tina estava fazendo. A cozinha estava uma bagunça.

— Oi. O que houve?

— Estava preparando uma papinha para a Mimi — ela respondeu, com um sorriso afetado.

— Ah, certo. É que ela já mamou, agora mesmo — alertei, de forma educada.

— Não tem problema alguns nutrientes a mais!

— É que, bem... eu tenho um pouco de receio de dar a papinha agora. Acho meio cedo — tentei ser um pouco mais direta.

— Não tem nada disso, não — e então lançou seu sorriso que diz "cale-se agora".

— Eu não quero — insisti.

— Não tem problema, de verdade. Eu dei a papinha para o León desde o primeiro mês.

— Aposto que foi ótimo — desdenhei —, mas eu não quero.

— Mas você precisa dar — ela ficou séria, de repente.

— Escuta, Tina, eu aposto que você sabe muito mais de bebês do que eu e tudo mais, mas a Emília é minha filha e eu não quero dar a papinha para ela.

— Certo. Divirta-se com a sua filha — então ela saiu. E não voltou tão cedo.

Claro que León e eu brigamos por conta disso. Ele queria que sua mãe ficasse ali para me ajudar a cuidar de tudo, e eu queria que ela ficasse bem quieta em sua casa, sem dar pitaco na criação da minha filha. E como eu estava um pouco sentimental por conta de todos os remédios que estava tomando para a recuperação da cesárea, tudo parecia um caso mil vezes maior do que seria num "dia normal". Por fim, ele se cansou de dormir no sofá, brigado comigo, e decidiu chamar minha mãe para me ajudar com tudo.

Desço do carro ainda pensando sobre a época do nascimento de Emília. Tinham sido tempos complicados e até estressantes, de certa forma, mas eu faria tudo de novo... A doceria (pelo menos ela) continuava do mesmo jeitinho de sempre, a pequena porta de vidro com a cobertura de lona rosa por cima. Lá dentro, as pequenas mesas para três pessoas à esquerda e o balcão aconchegante e os atendentes que eu conhecia tão bem e que me tratavam de forma tão agradável. Lembro-me da primeira vez que viemos ao local com Emília, quando ela tinha uns cinco anos. A loja tinha acabado de abrir.

Com exceção das mesas, que aumentaram pelo menos dois pares de lá para cá, e o menu, que hoje contava com opções mais diversificadas de doces, salgados e bebidas, tudo estava do mesmo jeito que hoje. Lembro até da mesa que escolhemos pela primeira vez. Sempre que vínhamos juntos à loja, sentávamos nela.

— Bom dia — disse a moça, que eu descobriria depois que se chamava Leia. Ela era a dona da doceria. Também seria a primeira chefe de Emília — Já decidiram o que vão querer?

— Bom dia — sorri — Acho que vou querer um chocolate quente e um pão de queijo.

— Ótima escolha! E o senhor?

— Um chá gelado e um sanduíche natural, obrigado — meu marido respondeu, sorrindo.

— E essa mocinha linda? — Então se virou para Emília.

— Vocês têm pizza? — Leia riu.

— Não, pequena. Não temos.

— Ah, poxa. É que eu provei ontem e é uma delícia! Você já comeu?

— Já, já... — ela riu mais um pouquinho — Ela é bem extrovertida, né? Qual seu nome?

— Emília — minha filha respondeu.

— Prazer, Emília, eu me chamo Leia.

— Quantos anos você tem? Todo mundo me pergunta isso, mas eu nunca posso perguntar para ninguém.

— Eu tenho trinta e dois, e você?

— Tenho cinco.

— Caramba, você deve me achar uma velha! — Leia exclamou.

— Só um pouquinho — Emília riu.

— Olha, Emília, vamos fazer um combinado? Eu te trago algo especial e se você gostar, te conto o que é, pode ser?

— Pode! — As duas esticaram os dedos mindinhos e fizeram um juramento.

— Certo, vou preparar os pedidos de vocês e o especial-Emília — e então ela saiu. Foi afeto à primeira vista. Toda vez que saíamos para comer, Emília queria vir aqui. Depois ela trabalhou aqui. Creio que ainda estaria, se não fosse por aquilo.

— Oi, Marian — Leia me chama, distraindo-me de meus pensamentos — Está tudo bem?

— Hã? Ah, oi querida, tudo bem com você?

— Comigo tudo ótimo, você que parece estar um pouco caidinha.

— Só estou um pouco nostálgica. Emília vai embora hoje à noite, acredita?

— Caramba... — percebo que ela também está com algumas lembranças na cabeça — Vou sentir muita falta dela. Mande todas as minhas felicitações para ela...

— Claro, pode deixar. Ela só não veio aqui hoje pois eu decidi vir sozinha para pensar um pouco.

— E o que se passa nessa cabeça preocupada de mãe? — Ela se senta na cadeira à minha frente.

— Estava lembrando do tempo que ela trabalhou aqui, faz o que, dois anos?

— Acho que sim, ela tinha dezesseis, não é? — Confirmo.

— Era uma ótima funcionária, pena que teve que sair por conta dos estudos...

— O quê? — Pergunto.

— Foi o que ela me disse, que estava saindo por conta dos estudos terem ficado apertados e ela não conseguir mais conciliar.

— Não acredito que ela disse isso. O León me paga — digo, indignada.

— O quê? — Agora é sua vez de perguntar.

— Nada, não. Pode me trazer um...

— Chocolate quente, já sei — ela me dá uma piscadela e anota meu pedido numa caderneta.

— Obrigada.

Ainda incrédula, lembro do real motivo de Emília ter se demitido do emprego como caixa da loja. Aconteceu em um dia aleatório. Eu tinha acabado de chegar do trabalho. Era dia de folga do León. Assim que ouvi os gritos vindos da sala, eu já sabia o que estava acontecendo...

Uns meses antes, Emília tinha me contado que tinha conhecido uma garota enquanto trabalhava lá, e que as duas estavam se conhecendo melhor. Desde o princípio eu sabia que aquilo não ia dar certo, seu pai era uma pessoa muito fechada para aceitar qualquer coisa do tipo. Eu não me importava. Ela estava experimentando e descobrindo coisas. Mas, para León, isso era uma gigante quebra dos bons costumes. Depois de um mês, mais ou menos, elas haviam começado um romance e, do nosso lado da família, eu era a única que sabia. Tinham sido longos seis meses, sempre se escondendo, falando em códigos e esperando o pior sempre que León entrava na conversa.

Entrei rapidamente em casa, a tempo de ouvir meu marido dizer:

— Você está achando que eu estou criando minha filha para ela virar uma puta?

— Como é que é? — Não me contive — Você não vai chamar a minha filha de puta!

— Você sabe o que ela anda fazendo por aí? Se encontrando com uma outra garota, as duas pela cidade, como duas depravadas! — Ele gritava, gesticulando na direção da Emília.

— Sei muito bem o que ela anda fazendo. E não é nada demais, se quer saber. As duas se gostam e não tem nenhum problema nisso.

— Cala a boca, Marian! Aqui nessa casa você não vai defender esse tipo de coisa, não! E em relação a você — ele se virou para Emília, que estava com lágrimas escorrendo pelo rosto todo —, você vai sair daquela porcaria de emprego e vai terminar essa coisa que você chama de namoro. E isso é uma ordem! Estou sendo claro?

— S-sim — ela gemeu.

Foi um grande baque do qual ela demorou a se recuperar. Várias noites mal dormidas, regadas de choro e pensamentos odiosos destinados a León. Mas eu não podia culpá-la. Ele realmente tinha sido um cuzão, perdoe-me a linguagem. Ainda acho que isso foi um dos motivos para que ela decidisse fazer faculdade na Itália. O motivo pelo qual ela estaria me deixando em algumas horas.

Volto para casa um pouco mais sóbria, após minha dose de chocolate, levando comigo um chá gelado, um sanduíche natural e um especial-Emília — um enroladinho de presunto e queijo, um suco de uva e um bombom de chocolate branco, seu favorito. Deixo as encomendas na cozinha e subo para o quarto dela, para verificar se já estava acordada. Encontro-a sentada na cama chorando, com o fone no ouvido e com uma mala noventa e nove por cento pronta aberta no chão.

— O que houve, filha? — Pergunto, já me desesperando.

— Ah, oi mãe — ela se recompõe rapidamente — Não foi nada, eu só estava aqui arrumando as coisas.

— Emília, você está chorando, o que houve? — Digo, ainda mais preocupada.

— É só que eu estava ouvindo uma música da minha infância e fiquei um pouco emotiva.

— Oh, meu Deus, vem aqui — abraço-a — Vai ficar tudo bem, tá?

— Eu sei. Só lembrei que você sempre colocava ela para tocar quando eu era pequena e, por Deus, eu nunca tinha reparado que essa música era tão triste! — Rio um pouco.

— Qual é? — Pergunto. Ela pega o celular e me mostra. Era "Aquarela", do Toquinho. Lembro de todas as vezes que coloquei o DVD dele quando ela era pequena e sorrio, me sentindo emotiva novamente — Mas por que você chorou tanto com ela? Você já ouviu-a outras vezes depois de pequena.

— É só que, eu lembrei de quando eu tinha uns quatro anos e ficava assistindo o DVD... Tudo era tão mais simples, sabe? E quando ele começou a cantar sobre o futuro chegar sem piedade e tudo mais, sei lá, parece que foi uma ficha caindo para mim. Sobre tudo — ela estava chorando novamente. Eu também estava. Nos abraçamos novamente, então eu a chamei para tomar café e disse que Leia tinha lhe desejado felicidades.

Passamos o resto do dia todo recordando o passado e procurando coisas que ela pudesse ter esquecido de guardar nas malas — o DVD do Toquinho tinha sido uma delas. Eu havia rido, chorado e me enfurecido com León de novo, como se fosse a primeira vez. Enquanto estávamos arrumando umas fotos nos nossos quartos, decidindo qual levar e qual não, revendo nosso antigo álbum de fotos, o primeiro quarto de Emília, com pinturas de filmes animados, feitos à mão por León, fotos dela com seu carrinho vermelho, brincando de ser entregadora de pizza, seu primeiro dia de aula, nossos piqueniques no parque... Era como se estivesse vendo os últimos dezoito anos inteiros passando de novo em minha mente. E, de certa forma, toda essa "visita ao passado" fez bem para nós. É como se, sem isso, não tivéssemos o sentimento de fechamento de ciclo que estávamos sentindo agora. Eu falava para todos os meus amigos, desde o momento em que minha filha tinha passado para a bolsa no exterior, que eu ficaria quebrada, como se uma parte de mim estivesse sendo levada embora, mas, olhando agora, eu me sinto bem inteira. E acho que ela também. Não é mais algo que eu teria que suportar por obrigação, mas porque eu realmente entenderia e conseguiria, não suportar, mas viver com. Afinal, no fim do dia, a vida de Emília era dela. Eu mesma não tinha continuado na casa dos meus pais quando tinha sua idade. Não me entenda mal, eu estava triste, mais do que eu conseguia expressar, mas, no fundo, eu sabia que tudo ficaria bem. Tudo estava bem.

Quando seu voo é anunciado no aeroporto, à meia-noite, viro para ela e digo:

— E aí, como está seu italiano? — Pergunto, sentindo um frio na barriga, como se eu mesma estivesse prestes a embarcar naquele avião.

— Molto bene, grazie! — Ela faz graça.

— Olha só! — Sinto as lágrimas caírem.

— Oh mãe, vai ficar tudo bem.

— Eu sei, filha. É só emoção. Mas pode ter certeza que eu vou ficar ótima, tá? Tudo vai dar tudo certo. Não liga para a sua mãe chorona aqui. Boa viagem, ok? Não esqueça de mandar mensagem para nós quando chegar, você sai por aí e esquece da gente — ela ri e faz que sim com a cabeça — Qualquer coisa, sabe que você pode contar comigo. Eu te amo infinitamente, minha filha.

— Certo — ela dá um sorriso amarelo, despede-se de seu pai e sai em direção à sala de embarque, mandando beijos para nós.

Ao vê-la embarcando para seu futuro, eu soube que eu sobreviveria. Só de saber que ela estava seguindo seus sonhos, que minha filha estava virando adulta. A saudade se torna orgulho, ele é o sentimento predominante agora. Sorrio e me viro em direção à saída.

Continua llegint