Histórias Para Gaivota Dormir

By MarceloQuinaz

112 5 3

Dez histórias de pessoas, interligadas ou não, unidas por um fato, a cidade em que vivem. More

0 - Oi
1 - O Piano
3 - Crime sem castigo
4 - Aquarela
5 - Correio Elegante do Século XXI
6 - N.J.L.
7 - Expectativa
8 - Promessas de ano novo
9 - Realidade
10 - Noite Feliz (ou nem tanto...)

2 - Lembrança é um prato que se come à tarde

16 1 0
By MarceloQuinaz

Eu mal podia acreditar que era realmente ela parada ali na minha frente. Seus cabelos cor de mel e lisos, seus olhos verdes penetrantes, sua boca rosada com maquiagem clara, que possuía o melhor sorriso que eu já tinha visto em toda minha vida. No exato momento em que a vi, foi como se tudo tivesse parado, o mundo estava mais claro e fresco. Qual era mesmo minha preocupação de segundos atrás? Não me lembrava mais. Ela demorou alguns segundos para me ver e quando o fez, também teve um choque de realidade, afinal, era a primeira vez em doze anos que eu voltava a essa cidade, a primeira vez em doze anos em que a via. Ela abriu aquele sorriso e disse:

"Abigail! Oi! Meu Deus, quanto tempo!", e começou a andar em minha direção. Assim que a abracei, foi como se eu tivesse voltado todos aqueles anos... Será que ela sentia a mesma sensação?

"Não é, Luísa? Nem me lembrava como aqui era bonito no verão", disse depois de nos afastarmos. Ela sorriu mais ainda.

"Então, quais os motivos que a trazem de volta para nossa humilde Gaivotas?"

"Quer tomar um café? Aí te explico com mais calma..."

Durante as sete quadras que andamos até o café, ela me contou sobre o que ela estava fazendo no centro naquele dia. Algo relacionado com comida para cachorro. Minha mente não conseguiu focar muito bem, tudo o que se passavam eram flashbacks de tempos passados, tempos mais simples. Minha história com Luísa.

Luísa e eu havíamos nos conhecido no fim do colegial, há muitos anos atrás. Foi uma das minhas primeiras paixões. Lembro como se tivesse sido semana passada quando eu entrei na loja de seus pais, as pessoas mais gentis que eu já havia conhecido. Nem consigo expressar em palavras tudo o que nosso primeiro verão juntas havia me causado. A primeira vez que eu estava amando de verdade. Infelizmente, meus pais, que eram o exato oposto dos de Luísa, tinham um destino diferente pensado para mim. Depois de várias discussões, eles haviam encontrado um garoto chamado Estévan para que eu passasse o resto de meus dias. Estévan era um verdadeiro amigo, um cavalheiro, se fosse para dar certo com alguém, eu gostaria muito que tivesse sido com ele. Mas no coração não se manda. E o meu estava perdidamente apaixonado por Luísa.

Durante anos, mantivemos nossa relação às escondidas, por minha causa. Sete anos, para ser mais exata. É claro que Luísa estava cansada de tudo isso, eu também estava, mas nosso amor era maior que tudo. Aos vinte e dois me casei com Estévan. Foi o dia mais feliz da vida dos meus pais. Um dos momentos em que mais me senti aprisionada e controlada, como uma marionete que estava amarrada em seu palco e não conseguia sair de lá. Se pensar um pouco mais, consigo ouvir o choro de Luísa naquela noite em que nos falamos ao telefone. "Mas nós precisamos ser fortes", eu dizia. "Um dia tudo isso vai passar", ela encorajava. Seguimos firmes e fortes, nós duas contra o mundo, até a descoberta. Eu estava grávida do meu primeiro filho, Joaquim, que hoje tinha doze anos. Junto com isso, a promoção de Estévan. Teríamos que nos mudar de estado. Era o momento da minha escolha. Eu não podia. Todos contavam comigo.

"Durante todo esse tempo, Abi, eu me sacrifiquei por você, eu me humilhei por você, eu me machuquei por você. Nosso amor era maior que todos os efeitos externos. E agora você me diz que precisa ir embora? Que todos estão contando com você? Você não é mais a jovem de dezessete anos que precisava agradar os pais! Você é uma mulher! Vai desistir de tudo, de nós, por esse cara?!", ela disse na noite em que a contei. Eu não tinha nada a dizer. Era verdade. "Em todos esses anos, tudo que eu fiz foi pensando em você, em nós. Enquanto tudo o que você fazia era pensar em você! Diga algo! Você não pode convencê-lo a não ir para esse outro estado? Recusar essa promoção?", sentia as lágrimas escorrerem incessantemente de meus olhos. Lu me conhecia muito bem. "Tem algo mais, não tem? Fala, Abi"

"Lu..."

"Abigail, fala logo o que é!"

"Eu... eu estou grávida..."

Ela se sentou na mesa do café e chamou o garçom. Fiquei a observando por alguns segundos, até que ela disse:

"Nossa, você não mudou quase nada! Te reconheci na hora"

"Você também continua com a mesma cara", ri.

"Mas, me conta as novidades. Como tem sido sua vida nesses... o que, mais de dez anos longe, né?"

"Doze anos. Então, eu tive mais um filho, não sei se você se lembra do primeiro, Joaquim, o nome. O meu mais novo se chama Victor, tem nove anos e vai entrar na quinta série ano que vem. Minha mãe faleceu há uns três anos e meu pai, ano passado"

"Meus pêsames", disse, apesar de não parecer muito abalada. "E você continua casada?"

"Me separei no ano passado também", disse.

"Caramba... E tá na cidade só a passeio ou voltou de vez?"

"Vim passar o verão. Trazer os meninos para conhecerem um amigo meu"

"Ah, sim"

"Mas quem sabe, não é? Depois das mudanças do ano passado... a cidade nem é tão horrível quanto eu lembrava", ela riu. "E você, como tem passado?"

"Assumi a loja dos meus pais há alguns anos, minha vida não é nem de longe tão interessante quanto a sua experiência na cidade grande", ela soltou um risinho.

"Que nada, isso de cidade grande é a maior balela. Mas, tantos anos lá, acabei me acostumando. A menos que algo me faça querer voltar para cá", sugeri, disfarçadamente. A verdade é que, passado todo esse tempo, eu não tinha me esquecido nem um pouquinho sequer da Luísa. O sentimento era o mesmo do de anos atrás. Nem um pouco mais, nem um pouco menos. E eu queria gritar isso para todo mundo ouvir. Mas eu precisava descobrir algo primeiro: "E você, tem alguém te esperando em casa?", ela levanta a mão. Uma aliança. É como se o mundo voltasse aos eixos que estavam antes de eu encontrá-la. Os pássaros tinham parado de cantar, o tempo tinha voltado a correr, à toda velocidade, o ar tinha ficado frio e seco demais. E meu coração, antes tão quente e cheio de esperança, tinha sido esvaziado numa velocidade recorde.

"Eu e a Alexandra nos juntamos há alguns bons aninhos. Conheci ela num carnaval. Depois disso, foi só alegria. Você vai amar conhecer ela"

"Com certeza, vamos marcar!", disse.

Depois de conversar mais algumas amenidades e terminar o café, combinamos, bem daquele jeito falso, que iríamos nos ver mais vezes. Nós nem sequer trocamos nossos telefones. Não que eu quisesse. Ela tinha seguido com sua vida, eu era o peso do sapato. Ninguém precisa de alguém assim na vida. Andei o caminho de volta para a casa do meu amigo extremamente pensativa e nostálgica ainda. Por mais doloroso que fosse, eu precisava desse encontro, e prefiro imaginar que Luísa também. Tinha sido tão divertido revisitar o passado dessa forma. Senti-me com dezessete anos novamente. Nos encontrando em cafés, rindo e conversando amenidades. A Luísa era uma ótima amiga, além de tudo...

À noite, antes de dormir, recebi uma mensagem nas minhas redes sociais. Era dela. Abri já esperando o pior, alguma saída com a esposa dela ou algo assim:

"Oi, Abi"

"Lu aqui"

"Devo confessar que esse encontro me pareceu um pouco estranho, haha"

"Parecia que era uma adolescente de novo"

"Só queria te dizer que, apesar de todo esse tempo ter se passado,

e muita coisa já ter acontecido, eu guardo todos os nossos momentos

como se eles tivessem acabado de acontecer. Você foi muito especial

na minha vida, muito mesmo. Acho que nunca conseguirei te esquecer.

Queria também pedir desculpas por aquela noite. Eu não quis dizer nada

daquilo. Também saiba que a perdoo por qualquer coisa. Sei que parece

algo feito mais por educação do que qualquer outra coisa mas, se quiser,

minha amizade está realmente à disposição. E, como amiga, tenho que te

dizer: saia, se divirta, conheça gente nova. Você não me contou nada sobre

novos amores, amigos ou qualquer coisa do tipo. Aproveite que você finalmente

se livrou daquela família infernal (desculpe) e daquele seu ex-marido banana,

e aproveite sua vida. Te amo para sempre, Lu"


Sorri ao terminar de ler e pensei comigo mesma: "Pode deixar, eu vou..."

Continue Reading