Over The Dusk

By control5h

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Décadas. Maldições. Linhagens. Amores proibidos. Luxúria. O ano inicial para elas foi 1986. Camila Cabello e... More

Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22

Capítulo 15

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By control5h

Olá, pessoal! Preparados?!

[Vamps] Olá habitantes do wattpad que tanto clamaram por nossa volta ao seu reino. Aqui estamos nós e já viemos trazendo o que tanto pediram: o querido capítulo 15 depois de uma eternidade, desde o tempo da pré-história que não atualizamos.

Agora que voltamos podem guardar suas foices, vocês serão muito bem recompensados porque este capítulo está repleto de altos e baixos, emocionalmente carregado, cheio de tretas e caos do jeitinho que nós duas bem sabemos que vocês gostam. E acalmem os ânimos, pois eu vos digo uma coisa: enquanto eu viver, essa fic não há de morrer!

[Wolf] Obrigada pelos elogios nos capítulos anteriores, pessoal! Ficamos felizes em ver que estão viciades em nossa história! Para este, peço que prestem a atenção nos detalhes! E, para não perder o costume: não esqueçam de dar favorito, comentar bastante e compartilhar o link da fanfic no twitter, whatsapp, discord, subreddit e afins para mais pessoas lerem Over The Dusk... porque agora o bagulho vai ficar loko!

Músicas do capítulo se encontram na playlist "Over The Dusk Oficial" no Spotify. 

Peguem um bom fone, apaguem as luzes do quarto, preparem a cola para o queixo caído e boa leitura!

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Paris (1979) – Champs-Élysées

*Music On* (The Wild One [Single Version] – Suzi Quatro)

Com as mãos segurando o volante de um Cadillac Conversível Série 62 vermelho na prestigiada avenida de Paris, Veronica com seu Ray-Ban preto cantarolava e pisava ainda mais no pedal do acelerador na medida em que passava pelo Arco de Triunfo e ia em direção da parte mais comercial da Cidade Luz, a qual dizia adeus para a década de 70 — incluindo às calças boca-de-sino, aos cortes de cabelo em formato de cuia e ao movimento Hippie com seu floral enjoativo — e mergulhava definitivamente no Rock'n Roll que ganhava forças com suas jaquetas de couro, jeans apertado e cabelo cortado por um bêbado sem profissão.

A caçadora despreocupada ultrapassava os carros e recebia buzinas de reclamação sem sequer se importar, pois, continuava a ganhar velocidade e a adentrar na região famosa pela ostentação de seus cinemas, joalherias, cafeterias e das grandes lojas de grife famosas.

Não era conhecida à toa por ser um dos lugares mais caros do mundo.

Apesar do tráfego poluente, dos moradores se tornando workaholics e dos turistas com suas câmeras fotográficas tirando fotos por todos os lados, o coração de Paris não permitia nenhuma sensação de estresse. O típico ar parisiense era gostoso, viciante e fazia a caçadora se sentir viva toda vez que visitava aquela cidade.

Os cabelos soltos balançando ao vento, devido ao teto totalmente aberto, refletiam de forma literal a música.

"I'M THE WILD ONE! YES, I'M THE WILD ONE!" – a mulher berrou a plenos pulmões, batucando os dedos no volante.

Ao finalmente parar o carro em frente ao semáforo vermelho, Veronica ocasionalmente girou o rosto para a direita e percebeu a presença de um Ford Corcel II azul parado ao lado. No volante uma maravilhosa loira de cabelos ondulados, maquiagem forte e um decote que deixava seus seios avantajados, sedutoramente sorriu em sua direção e Veronica a retribuiu com uma piscadela sugestiva ao abaixar o suficiente o Ray-Ban. Nos últimos anos ela pôde ser mais aberta sobre sua sexualidade graças aos movimentos sociais e aos burburinhos por entre as minorias que ganhavam coragem para enfrentar a sociedade regente. Pelo visto, a mulher no outro veículo claramente compartilhava do mesmo sentimento.

Porém, no momento em que a loira ia dizer algo o sinal verde abriu e Veronica apenas suspirou, em tristeza. Fez um sinal de até mais e, novamente, pisou no acelerador do Cadillac disparando em alta velocidade em direção às vielas de Paris. Poderia ter estacionado, a chamado para tomar um drink à noite, mas... necessitava de ser pontual em seu compromisso.

Precisava se reunir em uma catedral com alguns representantes da base hierárquica da Igreja que faziam parte d'A Ordem. Independentemente de suas obrigações sobrenaturais, não estava com humor para viajar até o Vaticano se lhe fosse ordenado. Queria permanecer na cidade para encher a cara com bebida barata, perfume feminino e rock de péssima qualidade.

Decidida de que um atraso de alguns minutos não faria uma espada ser enfiada pelo seu coração, Veronica se retirou do tráfego de veículos e se direcionou a um posto de gasolina movimentado para encher o tanque: porque não queria se preocupar com isso bêbada, à noite. A caçadora estacionou na marca diante da bomba, desligou o motor, retirou a chave da ignição e saiu do Cadillac que permanecia a berrar o rock na rádio. Ordenou a um garoto nerd assustado que enchesse aquela belezura até o limite enquanto ela ia até o mercadinho do estabelecimento comprar um refrigerante.

Passou pela porta de vidro empoeirada, com um sininho tocando acima de sua cabeça, e já foi em direção das geladeiras de Coca-Cola. Cantarolando, ela pegou a latinha vermelha gelada, alguns chicletes neon nas prateleiras ao lado e já procurava pelos energéticos quando sussurros entre dois homens no corredor adjacente lhe chamaram a atenção.

Veronica franziu o cenho e aguçou melhor sua audição desenvolvida. Deu passos cautelosos para o lado e conseguiu visualizar, ao fundo do mercadinho, as duas figuras masculinas de semblantes preocupados que fofocavam. Manteve-se assim por longos minutos, os estudando e escutando sobre como a violência nos bairros mais vandalizados havia aumentado consideravelmente nas últimas semanas; que homens, mulheres e crianças desapareceram subitamente; que as pessoas se encontravam apavoradas em andar sozinhas à noite porque animais estavam atacando os mais desavisados; e que as vítimas eram encontradas... completamente sem sangue e com os corpos frios e endurecidos.

Ao ouvir as últimas informações, Veronica fechou os olhos e soltou um longo suspiro de exaustão pelos lábios. Hesitou alguns segundos a fim de arquitetar um plano aceitável em sua cabeça e ergueu as pálpebras, deixando visíveis suas pupilas agora mais dilatadas pela adrenalina que começava a ser liberada por sua corrente sanguínea. Devolveu os chicletes na prateleira e deu passos pesados em direção ao caixa, jogando uma nota de alto valor diante do funcionário agora confuso pela fuga repentina.

Ela saiu pela porta barulhenta, virando a lata de Coca-Cola em um único gole. Precisava de energia para o que estava prestes a enfrentar quando o Sol morresse.

***

Roma (1979) – Stato della Città del Vaticano

Dois dias depois

Vaticano, uma cidade-estado localizada na Itália, próximo à capital Roma, intitula-se como residência do Papa e abriga lugares históricos da Igreja. O território onde hoje se encontra tal localidade foi doado por Pepino — rei dos francos — em 756 d.C à Igreja Católica, mas somente se formou uma cidade-estado por meio do Tratado de Latrão assinado no dia 11 de fevereiro de 1929, pelo então ditador italiano, Mussolini, e pelo Papa Pio XI.

Veronica lembrava disso, porque estava presente na época.

Chegando a pé e arrumando o chapéu na cabeça; cuja a aba cobria os seus olhos castanhos, a mulher cansada — e manchada pelos hematomas das pancadas e cortes causados por unhas e presas venenosas — atravessou as colunatas dóricas da Praça de São Pedro que enquadravam tanto a entrada trapezoidal para a Basílica de São Pedro quanto a grande área oval que a precedia, refletindo o estilo barroco próprio da época da Contra-Reforma. Já era tarde e não existiam discotecas, fliperamas e rock'n roll naquelas redondezas; os museus estavam fechados e a ruazinha, deserta. Fazia calor, mas Veronica carregava uma pesada e comprida capa preta sobre os ombros.

Sua vestimenta e olho esquerdo roxo chamavam a atenção, mas, sinceramente, não poderia se importar menos com isso... já estava encrencada ao ponto de que uma infração a mais não faria a menor diferença.

Parou diante do grande edifício e ficou apreciando o silêncio e a calmaria do lugar vazio àquela hora, como de costume. Adentrou pelas portas da Basílica de São Pedro com muito cuidado, deslizando com a ponta das botas pelo santuário e engolindo um choramingo pela dor refletida nas costelas que voltavam ao lugar lentamente.

Aquele era um lugar tão grande que não podia enxergar seu fim: o teto era elevado; as paredes ornamentadas com várias passagens e pilastras; o chão delicadamente trabalhado. Havia janelas finas e compridas, elevadas a cerca de cinco metros do chão, que deixavam uma claridade fria entrar na galeria sustentada por colunas de mármore.

Veronica passou perto do monumento de Constantino — onde ficava o túmulo de Pedro, um dos doze apóstolos de Jesus — como um fantasma, uma aparição. O único ruído que acompanhava seus movimentos era o da capa, roçando-lhe a pele coberta pela roupa preta de couro. E foi justamente esse tênue e quase inaudível som que chamou a atenção do monsenhor que passava ao lado dos bancos da igreja, carregando consigo uma grande e pesada bíblia nos braços. Ambos se encararam por breves segundos antes da caçadora se dirigir até um canto mais afastado e escondido onde ficava um grande estande de madeira próximo do altar.

Porém, antes que pudesse se aproximar mais, dois homens vestidos com roupas pretas saíram de dentro do confessionário, fechando a porta do mesmo. Ao se depararem com a morena, soltaram risos maldosos.

Mandou bem, Iglesias. – um deles falou em tom zombeteiro, passando por ela. – Ganhou até um olho roxo!

Ela realmente se encrencou de vez!

Soltando um bufo de raiva, Veronica decidiu ignorar aqueles dois patetas e retomar seu caminho. A morena de cabelos longos cobriu com a mão uma orelha, em demonstração de respeito pela santidade do confessionário, antes de adentrar no compartimento e fazer o sinal da cruz ao fechar a porta atrás de si.

Perdonami, padre... ho peccato. "Peço perdão, padre... eu pequei." – murmurou em voz baixa, em um excelente italiano, ajoelhada no banco para penitente.

Sì, lo so. È la tua specialità! "Sim, eu sei. Você é especialista nisso!" – uma voz soou em tom severo antes de uma tela ser bruscamente puxada para cima, causando um grande eco e revelando um homem de cabelos brancos e pele bem enrugada vestindo roupas vermelhas atrás de um látice. – Hai fracassato il rosone di Notre Dame! "Você estilhaçou a rosácea de Notre Dame!"

Veronica fez uma careta de "Foi mal" e ladeou a cabeça enquanto se lembrava do incidente de duas noites atrás: assim que ouviu a conversa entre os fofoqueiros no posto de gasolina, ela foi averiguar a situação nos bairros mais vandalizados de Paris. Mas, o que era para ser apenas uma vistoria e análise para posterior interferência se tornou uma perseguição sem controle ao flagrar uma mulher com aparência humana de 30 e poucos anos sugando a carótida de um jovem quase morto, em um beco escuro. Seus instintos afloraram, o ódio reinou e quando percebeu já portava sua besta Quiver carregada de flechas de uma madeira especial. A briga entre ela e o ser sobrenatural teve início nas vielas parisienses e teve um fim catastrófico no último andar do edifício de Notre Dame, onde duelou violentamente com a vampira. A criatura, fraca e machucada pelas lascas de madeira enfiadas em seus músculos, tentou fugir pela única vidraçaria do lugar... mas tratava-se exatamente da qual Veronica bloqueava com o corpo também ferido. A vampira, no entanto, sequer pensou duas vezes e correu em sua direção para empurrar ambas daquela altura mortal, mas a caçadora conseguiu lançar manualmente uma flecha que acertou diretamente o coração gelado da sanguinária. Veronica saiu da frente e a vampira devidamente morta, ressecando-se, se chocou contra a grande janela... levando consigo os cacos coloridos enquanto caía exatamente no meio de uma rua lotada de civis leigos. Para complementar ainda mais o fiasco da missão, uma freira assistia toda a confusão ao fundo da aglomeração de mundanos; lançando à caçadora — meio escondida pela penumbra no topo da catedral — um olhar severo, indicando o quanto estava enrascada.

– Sem querer fazer fofoca, mas foi a senhora Harker quem quebrou o vitral. – Veronica se justificou, com uma solenidade debochada. – Aquela vampira era bem esperta!

– Um vitral do século 13... Tem mais de 800 anos! – o cardeal a encarou com uma raiva controlada, a testa franzida e o olho esquerdo piscando pelo tique nervoso. – Desejo-lhe uma semana no inferno!

– Isso seria um belo descanso. – a caçadora respondeu ríspida.

– Não me entenda mal. Seus resultados são inquestionáveis, mas seus métodos chamam muita atenção. Não gostamos das fotos de "Procura-se" nos jornais mundanos e nem sobre possíveis teorias da conspiração envolvendo seres sobrenaturais. Ninguém aqui está satisfeito!

– Acha que eu gosto de ser a mulher mais procurada da Europa?! – Veronica questionou, indignada. – Por que o senhor ou A Ordem não fazem alguma coisa pra ajudar?!

O homem puxou o látice, com um semblante exasperado.

Porque nós não existimos! – sussurrou com a voz rouca em urgência.

– Então... eu também não!

Veronica em supetão se levantou do banco já preparada para sair da cabine apertada quando o velho de cabelos brancos rapidamente apertou um botão que ficava perto do batente da janelinha e grades pesadas desceram, bloqueando a saída do confessionário.

– Quando descobrimos que os caçadores são os predadores naturais das criaturas da noite, A Ordem percebeu que precisaríamos unir forças contra esse mal. Ficou claro que vocês foram enviados para fazerem o trabalho de Deus. – o cardeal falou, fazendo um sinal de benção sobre Veronica.

A mulher cheia de hematomas e expressão fechada se virou dentro do cubículo o suficiente para encará-lo.

– Por que Ele mesmo não faz?! – ela perguntou entredentes.

– Não blasfeme! – ele arfou, apertando outro botão.

Veronica engoliu seco, girando-se completamente ao avistar uma outra porta de madeira abrir atrás de si. Trabalhada nos detalhes e acompanhando o estilo de arquitetura das outras, a passagem permitia uma visão de um longo corredor penumbroso graças às tochas acesas e presas às paredes constituídas de bloquetes de pedra fria.

– Ou o quê? Vai me mandar para a penitência? – a caçadora deu uma risadinha irônica, mas regada pela insegurança. – A Madre Judith ficará muito feliz em me ver de novo. Ela quase me esfolou viva da última vez.

– Sugiro que você honre a sua convocação!

Ao proferir, o homem ficou de pé e caminhou em direção às escadas. Ele usava uma batina vermelha sobreposta por uma sobrepeliz branca; tal como uma mozeta e um solidéu vermelhos em conjunto a uma grande corrente de cruz no peitoral e um barrete cardinalício.

Sem nós, o mundo estaria nas trevas...

"Essa não, vai começar", Veronica pensou, revirando os olhos quando a argumentação deu indícios. O cardeal sempre tinha essa mania chata de fazer discursos honrados sobre como A Ordem do Vaticano, aliada aos caçadores, fazia eternas e constantes benfeitorias para a humanidade.

Desistindo de sua fuga, ela se colocou a seguir o representante idoso, descendo os degraus circulares de pedra. O cheiro de livros antigos e incensos no ar se encontravam fortes; a iluminação amarelada e desigual era causada pelas tochas acesas nas paredes, gerando sombras deformadas e grotescas de ambos na medida em que viravam as esquinas e se mantinham a caminhar pelos corredores do subsolo da Basílica.

O cardeal virou para o lado direito, levando os dois para um extenso cômodo que, na verdade, era uma instituição secreta: no teto pendiam diversos candelabros com incontáveis quantidades de velas acesas; esqueletos de criaturas gigantes; máquinas de manivelas; e um forno onde trabalhadores suados soldavam algumas armas de prata e equipamentos de madeira. Rabinos, Monges, Frades, entre diversos outros representantes de sua religião, estavam lá realizando experimentos com seus tubos de ensaio; criando escudos; fazendo anotações e cálculos em livros; e analisando fotogramas em preto e branco exibidas em projetores.

... Governos e impérios vêm e vão, mas nós defendemos a humanidade desde tempos imemoráveis. Somos a última defesa contra o mal, um mal que a humanidade nem imagina existir.

– Falou "mal" e "humanidade" duas vezes, isso é um pleonasmo, sabia? – Veronica zombou ao mesmo tempo em que passava pelos homens feios e fazia caretas de nojo.

– Tenha foco, Iglesias! – o velho falou, severo. – Trabalhamos no escuro, sem sermos reconhecidos ou apreciados!

– Mas vocês são muito bem pagos... – Veronica respondeu com um sorrisinho de lado. – Queria eu receber metade do que vocês ganham. Posso ter uns três carros na garagem atualmente? Posso! Mas queria o dobro.

– O seu dever é matar demônios e não pecar por cobiça! Deve, sim, livrar as pessoas desses seres demoníacos que caminham sobre esta Terra amaldiçoada, aterrorizada por estas criaturas horripilantes que espalham o medo e a morte!

A caçadora e o cardeal de cabelos brancos permaneciam a andar pelo grande galpão lotado, desviando dos trabalhadores religiosos que não cessavam seus afazeres nem mediante ao calor elevado do local fechado.

– Para vocês, esses monstros são seres malignos que precisam ser exterminados. – Veronica ladeou a cabeça, arrumando o chapéu no alto dos cabelos longos. – Mas... sou eu quem fico depois que eles morrem! Sou eu quem faz o trabalho sujo! Vejo quando morrem e alguns voltam a ser o que eram um dia em sua forma normal! Isso só mostra que, no fundo, bem no fundo, eles ainda são humanos!

– Para você, minha filha, isso tudo é um teste de fé. Atenda ao seu chamado! – o representante religioso levantou o braço assim que se aproximaram de uma seção do galpão com várias estantes lotadas de livros. – Agora precisamos que vá para os Estados Unidos, à parte sul da Flórida.

Ao parar a caminhada, ele estalou os dedos da mão direita chamando a atenção de um segundo homem que estava ali por perto. O cardeal apontou para uma estante cheia de papéis e o rapaz franzino coberto de fuligem, usando uma vestimenta de frade, rapidamente entendeu e correu para lá.

– Vão me transferir de novo?! – Veronica questionou, incrédula.

– Óbvio que sim! Fique por lá, até que sua imagem seja limpa. – o mais velho falou com rispidez. – Vai estar trabalhando e longe de confusão!

– Ah, não! Nem pensar! Eu não quero ir para os Estados Unidos, não gosto daquele país. Me mande para a Transilvânia, ou para qualquer outro lugar fora do mapa!

– Você se esqueceu de que não pode pôr os pés na Romênia?! Especialmente no Leste?! Você foi expulsa da Valáquia!

– Detalhes, padre, detalhes! – Veronica bufou e cruzou os braços abaixo da longa capa que usava. – Aquilo foi um incidente infeliz que nunca mais se repetiu.

O frade magrelo caminhou até o cardeal entregando-lhe uma enorme pasta cheia de papéis. Com um semblante de irritação no rosto barbeado, o mais velho agarrou o objeto, o ergueu e mostrou os 40 níveis de folhas amarelas preenchidas em seu interior.

– O que é tudo isso?! – a caçadora semicerrou os olhos, fingindo desconhecimento.

– Sua ficha... contendo todos os arquivos de desastres e incidentes provocados por você nesses últimos 65 anos em que vem trabalhando para nós!

– Ah, padre, por favor. Você está exagerando só para me desestabilizar. – Veronica deu uma risadinha e ergueu uma sobrancelha desafiadora.

O cardeal revirou os olhos e abriu a pasta, limpando a garganta para indicar o início dos argumentos.

"Destruição de propriedade particular; danos a patrimônios públicos; acusações de atentado à vida do ex-czar da Rússia Nicolau II."– os olhos escuros do homem alternavam entre os papéis e a caçadora agora meio sem graça pela culpa. – "Perturbação da paz; perda em massa de gado; inúmeras invasões de domicílio; incontáveis tráfegos e acidentes de trânsito... civis mundanos que foram feitos de reféns..."

– Epa! – Veronica sibilou, erguendo o indicador em sua defesa. – Não desmentindo, mas tem algumas coisas aí que foram os demônios que fizeram!

– Até o incidente com a esposa do magnata na década de 20? – o cardeal ladeou a cabeça e colocou os papéis debaixo do braço direito enquanto trocava o peso dos pés para encarar a mulher à sua frente.

Os argumentos de Veronica morreram e ela, levemente tímida, abaixou o dedo indicador enquanto ofertava um sorrisinho displicente.

– Como eu ia saber que aquela mulher maravilhosa era casada com aquele velho decrépito?!

O representante religioso balançou a cabeça negativamente e soltou um suspiro cansado, depositando a pasta sobre uma mesa próxima. Retirou o solidéu vermelho da cabeça e passou a mão enrugada pelos pequenos fios brancos restantes da calvície.

– Eu conversei com o Conselho... E acredite, não foi fácil, mas eu consegui convencê-los. Eles ignoraram a sua "opção sexual" e deslizes nos serviços anteriores. Mas, se quiser se redimir por todos os seus erros, sugiro que aceite de bom grado esta missão.

Veronica, desistindo de ir contra algo que nunca poderia vencer, soltou uma lufada de ar ao mesmo tempo em que encolheu os ombros.

– Por que a Flórida? O que tem lá pra mim?

– Centenas de refugiados cubanos estão indo para North Miami. O estado está um completo caos. Com sorte, você passará despercebida pelos guardas da imigração.

– Certo, eu entro lá, me infiltro no país, mas e depois? – a caçadora semicerrou os olhos, atenta à ausência de informações que parecia proposital.

– Será uma missão diferente. Não terá de matar demônios, pelo menos esperamos que não. Você ficará responsável por ser a guardiã de uma jovem! As instruções completas lhe serão passadas posteriormente a sua ida, mas, basicamente, você não pode deixar que nada aconteça com ela até que complete 24 anos! Sabe muito bem que a idade de transformação para lobisomens é aos 23 anos!

– Mas é uma mulher! – Veronica balançou a cabeça, explicitando sua confusão. – Mulheres não podem ser lobisomens puros, apenas os primogênitos homens.

– Não questione sua missão, não faça perguntas que não lhe cabem! Apenas obedeça! – o cardeal falou em um tom firme, com sua expressão indicando a seriedade da situação. – Você está aqui para lidar com os demônios e não questionar sobre as decisões d'A Ordem. Acha que consegue fazer isso?!

Veronica mordeu a região interna da bochecha para engolir um xingamento. Não gostava daquela submissão, muito menos de trabalhar às cegas. Mas, era simples: A Ordem mandava e caçadores cumpriam. Sempre fora assim e sempre seria.

Contrariada, ela fez um afirmativo com a cabeça.

– Vou confiar em você. – o cardeal deu um sorriso levemente ameaçador. – Faça o que for necessário para se aproximar dela e protegê-la! Se isso serve de incentivo, sua carreira depende do sucesso desta missão. Caso contrário, você irá para a lista restrita.

***

Miami (1986) - Quarta-feira, 19 de Setembro

Casa dos Jauregui's

14hs e 45 minutos

O dia em Miami que costumava ter um início em alegria, movimentação e boas expectativas ... naquela manhã... continha um ar regado pelo medo, choque e descrença por parte dos moradores que não acreditavam nos noticiários. Jornalistas, radialistas e quaisquer profissionais das áreas de comunicação cobriam a tragédia da noite passada, a qual ocorrera na instituição privada da cidade. O principal assunto discutido no país era apenas um: o lobo que invadira e matara alunos do campus da Universidade de Miami, dita agora pela população como amaldiçoada.

Ambientalistas e Biólogos, e até mesmo alguns funcionários do Zoo Miami, eram entrevistados: os profissionais tentavam encontrar uma explicação plausível para responder o porquê do animal, pertencente à região Oeste, estar ali. A primordial suspeita, e a justificativa mais aceitável, seria hipóteses sobre o tráfico de animais silvestres.

Mas a maior dúvida de todas era: como um simples lobo, supostamente sozinho, fora capaz de fazer tantas vítimas?

Era exatamente essa pergunta que Lauren conseguia escutar, com sua super audição, advinda dos lábios de uma repórter que noticiava o acontecimento no jornal da tarde que passava na televisão da casa de sua vizinha. Tratava-se de uma senhora compreensível, que muita das vezes nunca chamara a polícia pelas extravagâncias causadas pelas inúmeras festas que ela e seu irmão realizavam — ou pelas brigas.

Lauren se encontrava de pé diante do grande espelho de seu banheiro, que tinha uma janela que dava diretamente para a casa da senhora. Os cabelos soltos da jovem ainda pingavam gotas geladas do banho que tomara, em uma inocente tentativa de se limpar do sangue e vísceras secas, bem como melhorar o mal-estar que apoderava de seu corpo padecido.

Encarando seu próprio reflexo e segurando as lágrimas que acumulavam em seus olhos verdes-lima, ela inspirava profundamente para não sucubir a mais uma ânsia de vômito, as quais eram um esforço do seu sistema digestivo em jogar para fora toda a grande quantidade de matéria orgânica ingerida na noite passada. Não aguentava mais vomitar, não aguentava mais ir ao toalete, e muito menos não suportava mais olhar para si mesma.

Sentia nojo do aparente monstro que se transformara. Flashbacks rápidos e desesperadores voltavam à sua memória, todos em tons e espectros vermelhos, que transmitiam uma espécie de filme em pedaços. Não lembrava de tudo, mal sabia como havia saído de casa para a festa, mas o gosto do sangue alheio, os gritos de dor de suas vítimas e a sensação das garras e pelos negros permaneciam grudados como uma interminável extensão de seu corpo.

Continha várias perguntas, mas o medo das respostas era uma espécie de ácido que a corroía por dentro.

Ao perceber que não iria vomitar mais, Lauren inclinou-se no lavatório e jogou mais uma quantidade significativa de água gelada no rosto. Sua pele estava quente, sentia muito calor semelhantemente à combustão do dia anterior. Ela fechou a torneira, secou o rosto e mãos em uma toalha e com passos lentos saiu do banheiro, sendo abraçada pela escuridão do corredor do segundo andar da sua própria casa. Sequer conseguia organizar seus pensamentos rubros, as memórias violentas e emoções descontroladas, mas precisava encarar a realidade que lhe esperava no primeiro piso da residência.

Já de roupas trocadas — blusa branca e um short de moletom cinza — e cabelos ainda molhados, Lauren alcançou as escadas e lá de cima pôde avistar as seis pessoas que a esperavam na sala de estar para terem uma... conversa. De pé no tapete vinho e roupas também trocadas, eles continham combinações de braços cruzados, ombros contraídos e semblantes sérios e apreensivos.

Ao escutarem os sons de passos descendo os degraus, Michael, Camila, Dinah, Normani, Allyson e Veronica giraram os rostos e encararam a figura da jovem de íris verdes-lima cinzentos que, lentamente, se aproximava deles. O patriarca possuía pena e lamentação em sua expressão; a latina amedrontada mal conseguia erguer o olhar por trás dos óculos de grau; a loira alta mantinha-se protetora e guardava a namorada negra atrás de si, a qual continha uma expressão de ódio e nojo explícitos; a loira baixa suspirava pesadamente em exaustão por ter mentido para sua mãe sobre estar "espairecendo as ideias" no Miami Seaquarium junto ao casal de amigas que também mentiram para seus pais; e Veronica permanecia cabisbaixa mediante ao peso da culpa nos ombros.

Falhara em sua missão.

A Jauregui parou aos pés da escada e, assim como os outros, não soube o que dizer imediatamente. A respiração aos poucos acelerava ao notar os olhares julgadores; sua cabeça latejava; a boca continuava com a sensação de ter sido usada como ninho por um escorpião.

– O que eu sou?! – a voz rouca sibilou pelos lábios bonitos de Lauren, que controlava o choro angustiante e apertado na garganta. – E alguém, por favor, pode me explicar o que aconteceu ontem à noite?

O sofrimento presente em sua fala foi tão explícito que impactou o âmago de todos, sem exceções. O medo e insegurança poderiam estar presentes naquela sala de estar, com janelas meio fechadas — evitando curiosos —, mas as lembranças dos bons tempos que viveram e dos sentimentos genuínos que compartilhavam faziam a preocupação reinar.

– Estamos nos fazendo as mesmas perguntas, acredite. – Dinah criou coragem para se pronunciar. – Mas posso te adiantar que... foi uma tragédia.

Franzindo o cenho para não se entregar aos prantos, Lauren torceu os lábios trêmulos e direcionou os olhos lacrimejados para uma Camila ao lado de Allyson, que parecia protegê-la como uma pequena guarda-costas. No instante em que as íris castanhas se conectaram às verdes uma espécie de energia melancólica imergiu em ambas, levando a um triste grunhido por parte da latina cansada por tudo que vinha acontecendo com o relacionamento das duas. Os milhares beijos que trocaram, os vários íntimos momentos que juraram amor eterno e que planejaram uma vida juntas... todos eles pensavam toneladas naquela ausência de som que indicava o grito de suas almas.

Queriam se ajudar, queriam fugir daquilo e recomeçar o romance que teve um fim abrupto tão recente.

– Seu pai e Veronica disseram que vão nos explicar tudo, mas queriam todos reunidos. – Camila conseguiu murmurar assim que desviou o olhar para um ponto inespecífico da sala, para assim ter coragem de continuar. – Estávamos te esperando acordar e... tomar um banho.

– Nossos pais estavam muito assustados com o que aconteceu e... só agora deixaram que saíssemos de casa. – Allyson completou, engolindo seco. – Foi necessário mentir, porque as energias da cidade estão... negativas. Todos estão agitados.

– Por minha causa, aposto. Caso contrário não teria acordado com sangue alheio impregnado no meu corpo, igual gelatina. – Lauren disse em um tom irônico e melancólico e então girou o rosto para as duas figuras no canto da sala. – Pai... que merda está acontecendo? E Veronica... por que diabos você apareceu nas minhas memórias vermelhas me lançando a porra de uma flecha?!

Michael, de barba por fazer e olheiras, deu um passo à frente de modo a tomar liderança no começo daquela conversa extremamente necessária, mas foi interrompido antes mesmo que qualquer palavra saísse por sua boca.

Ainda mais alterada do que já estivera alguma vez antes, Normani saiu por detrás da proteção de Dinah e subitamente agarrou um vaso que estava na mesinha de centro. Bastou um piscar de olhos e o objeto pesado estava sendo lançado violentamente em direção de uma Lauren surpreendida, que simplesmente se encolheu indefesa e à espera do vidro atingi-la em cheio.

Mas, em uma reação tão rápida quanto, Allyson ergueu a palma direita agilmente e gerou uma pressão de energia que foi lançada de sua mão até o vaso no ar, o desviando para o lado e o fazendo passar a centímetros de Lauren... e se quebrando em centenas de pedaços contra a parede atrás da mesma.

– ESTÁ LOUCA?! – Lauren berrou, de olhos arregalados.

– MAS QUE PORRA?! – Dinah exclamou assustada, se colocando à frente da namorada enfurecida.

– Porra, nem eu previ isso! Bom reflexo, Ally! – Veronica sussurrou em um cômico espanto, dando passos à frente para se tornar um obstáculo no meio da sala de estar.

– EI, PAREM AGORA COM ISSO! – Michael advertiu, colocando as mãos na cabeça, exasperado.

O sangue pulsava com força nos ouvidos de Normani; seu coração parecia a ponto de estourar as costelas; seus dedos apertavam em nós por desejar estar apertando o pescoço pálido à sua frente. Mas, nada se comparava a cacofonia em seu estômago com todo o asco se agitando e deixando seus joelhos flexionados e estáveis para um avançar. O cheiro da estudante de Medicina adentrava em seus pulmões e a presença desagradável preenchiam cada centímetro de seus poros.

– Quero essa... mulher o mais longe possível de mim! – Normani arquejava, encarando-a com uma expressão de mais pura aversão. A palavra "mulher" soou mais como "coisa".

Houve um momento de silêncio constrangedor, uma paz que precedia a explosão de uma bomba. Parecia que ambas, separadas por uma sala de estar, estavam se esforçando para conter a respiração.

– Qual é o problema dela comigo?! – Lauren questionou, dando um passo para trás.

Dinah entrou outra vez na frente da namorada, mantendo-a às suas costas.

– Lendo nas entrelinhas, eu diria que ela odeia você. – a loira alta deu um breve sorriso sarcástico.

– Mas que merda fiz contra ela?! – Lauren abriu os braços pela ausência de razões. – Por que ela me odeia assi...

Porque você é uma lobisomem!

A afirmação estridente saiu dos lábios carnudos de Camila, que permaneceu encolhida durante todo aquele espaço de tempo e caos. Sua mente fervilhava a trezentos por hora devido à ansiedade e tristeza.

Lauren, porém, sentiu seus órgãos revirarem ao ouvir aquilo e por ver a mulher que amava naquele estado. O receio, o medo, o pânico e as lembranças dos segundos de dor excruciante da sua transformação retornaram à memória como um bloco de concreto sobre sua cabeça.

– O que?! – ela havia entendido, mas não processado a informação.

O seu nítido choque conduziu o silêncio a reinar na sala penumbrosa outra vez, oferecendo alguns segundos para que Michael inspirasse fundo e desse um passo à frente.

– Por favor, sentem-se! E tente não se matar enquanto explicamos tudo, okay? – o patriarca pediu.

Dinah abraçou os ombros de Normani, que a contragosto caminhou até a extremidade do sofá da sala de estar. Elas se sentaram no estofado fofo, diante da pequena mesa de centro, e logo foram seguidas por uma Camila que também era amparada por Allyson. Veronica e Lauren, no entanto, permaneceram onde estavam.

– Antes de tudo, gostaria de dizer que eu deveria ter feito mais para evitar que tudo isso acontecesse! – Michael suspirou e firmou a voz na medida que pigarreava. – Eu não sei exatamente por onde começar, porque supus que isso nunca fosse um dia necessário! Mas... – ele passou a mão pela barba mal feita. – Filha, minha família vem de uma linhagem de lobisomens.

Lauren, que estava praticamente estática desde a afirmação de sua ex-namorada, manteve-se de pé com a mesma expressão aterrorizada. Queria respostas e deveria aguentar os socos que levaria.

– A maldição dos lobisomens vem de séculos atrás e sempre é passada para o primogênito homem da família. Sou o primogênito, como bem sabe. Mas, para ela ser ativada, o indivíduo precisa morrer com 23 anos! E nada me aconteceu nessa idade, tal como seu avô e o pai dele, então pudemos ter vidas normais sem precisar nos transformar em toda Lua Cheia. – Michael disse, engolindo seco. – Mas isso não impediu que o gene amaldiçoado continue sendo passado.

– Espera... – Camila passou uma mão pelo rosto cansado e alternou o olhar enraivecido entre o ex-sogro e a caçadora. – Por que vocês dois não fizeram merda nenhuma para impedir?!

– Deviam ter nos contado! – Allyson franziu o cenho.

– Olhe... – Michael olhou primeiro para a filha congelada, mais pálida que de costume, e depois migrou a atenção para o sofá lotado por suas amigas. – Acredite em mim, foi exatamente pelo fato de Lauren ser uma mulher que julguei que isso não seria possível! Isso nunca aconteceu antes na história sobrenatural! Não existem Lobisomens Puros do sexo feminino, porque essa raça só vem da linhagem! E eu quis, ao máximo, dar uma vida normal aos meus filhos depois que eles nasceram de uma forma tão sofrida e triste, okay?! – o homem de rosto arredondado mordeu o interior da boca quando a voz vacilou pelo choro súbito. – Eu perdi o amor da minha vida no dia que deveria ser o mais feliz de todos! E além de ter que lidar com o luto, eu precisava pensar na porcaria da maldição que minha família trazia! Mas... felizmente ou não... – Michael deu uma risadinha irônica. – Minha Lauren nasceu primeiro que Christopher, então ele não seria o primogênito e não teria de viver sua vida com medo. Então, para mim, o problema estava findado aí!

– Até eu chegar. – Veronica então interferiu, erguendo a cabeça para que todos os seis pudessem a encará-la. – A Igreja me enviou para proteger Lauren até os 24 anos e isso significava que algo, sim, estava errado. Assim que cheguei em 79, eu expliquei os motivos de estar aqui e comuniquei ao Michael, mantendo isso entre nós ao longo dos anos. Mas... tudo estava bem até o Dylan aparecer na história. Mike e eu não sabíamos que Lauren havia morrido no atentado e eu só descobri isso durante o tempo que fiquei sumida até terça-feira, porque precisei quase literalmente caçar a paramédica que socorreu Lauren na ambulância. Ela me confessou que o coração de Lauren começou a bater do nada no caminho até o hospital.

– Foi por isso que vocês não queriam desligar as máquinas dela. – Camila sussurrou mais para si do que para o restante das pessoas. – Se o coração dela parasse de bater, ela estaria completamente morta e a maldição iria se ativar.

– Por isso preferiam mantê-la no coma. – Normani também concluiu. – Vocês não queriam ativar a maldição!

– Então ela acordou sozinha de uma situação irreversível. – Michael continuou. – Eu e Veronica desconfiamos, mas preferimos acreditar haver sido um milagre. Pesquisamos em muitos livros antigos, não achamos nada e mantivemos o segredo apenas entre nós dois, porque... minha filha não havia morrido! Minha filha estava milagrosamente acordada e, mesmo se ela carregasse o gene, o que era impossível, ele não teria sido ativado!

Mas claramente carrego o gene e ele está ativo. – a voz rouca baixa alertou a todos.

Lauren ergueu o rosto, deixando evidente a vermelhidão dos olhos claros marejados pela vergonha e culpa. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo consigo, que era agora um monstro e que toda sua vida havia sido arruinada por ser eternamente suja. Tal como a vida de suas vítimas... que estavam apenas começando.

– Não sabemos o porquê de você carregá-lo, eu sinto muito! – Michael fungou e corajosamente deu um passo para se aproximar de sua filha, mas a mesma subitamente se distanciou para o lado.

A mulher não era capaz de qualquer contato interpessoal, muito menos lidar com as próprias emoções descontroladas. Ela só queria compreender o porquê de tudo, urgentemente.

– Como isso é possível?! De onde vem nossa linhagem?

O patriarca se preparou para responder, mas Veronica o impediu ao erguer um dedo e pedir a palavra.

– Suponho que tenho mais conhecimento para responder essa. – a caçadora falou e colocou as mãos no jeans que usava, trocando rápidos olhares com a melhor amiga que agora a encarava com nada mais que decepção. – Tudo teve início no século X. Essa história possui várias versões, com significativas mudanças... logo não sabemos qual é a verdadeira. Mas a versão mais disseminada é a que em mil anos depois de Cristo, mais precisamente no final da Alta Idade Média, existiu um casal impossibilitado de ficar juntos devido aos costumes da época. Duas irmãs: Eda, a mais velha, e Sence, a mais nova. E um garoto: Dmitrei. Morando no mesmo feudo, Sence e Dmitrei se apaixonaram profundamente, mas o amor proibido não teve futuro porque Eda foi cedida pelos pais a se casar com o rapaz. Como ela era a mais velha, não havia escapatória. No entanto, Sence e Dmitrei começaram a se encontrar escondidos, a se amar na mata, e em um desses encontros no meio da noite... o rapaz foi atacado por um lobo feroz. Ele morreu nos braços da garota. Mas a família dela era da linhagem de Druidas... – Veronica sorriu fracamente para Allyson, que não conseguiu conter o semblante de surpresa. – Sence continha os poderes, Eda não. Mas os poderes da mais nova eram fracos, muito puros e insuficientes para trazer algo morto de volta à vida. Ela então pediu ajuda para uma Bruxa Impura, a qual era cruel e aproveitadora e prontamente aceitou ao ver uma oportunidade de disseminar terror e demônios pela Terra. Essa Bruxa queria um contato direto com o Diabo, queria satisfazê-lo. E para isso seria necessário um sacrifício temporário e Sence sequestrou Eda e a levou até a cabana da Druida. A velha efetuou um feitiço que durou exatos sete minutos para reviver Dmitrei e Eda, que teve o coração parado para dar vida ao rapaz. O que eles não sabiam era que, durante esse feitiço, um canal foi aberto e demônios adentraram no corpo das duas vítimas quando morreram momentaneamente. – Veronica pigarreou e olhou rapidamente para Lauren. – Demônios são seres amorfos que se fundem às almas humanas, tornando-se um só, e as condenam ao Inferno. Mas no meio do caminho até o Julgamento Final, existem falsas imortalidades que levam essas misturas de humano e demônio, classificada como seres sobrenaturais, a vagar pela Terra espalhando mais dor, medo e tragédia. Uma maldição foi jogada sobre Dmitrei e Eda, a qual explicitava que ele não podia se alimentar de carne animal e ela não podia beber sangue humano até a última badalada de uma sexta-feira 13... exatamente no dia do casamento deles...

– Deixe-me adivinhar... os dois não cumpriram. – Allyson semicerrou os olhos.

– Não conseguiram, porque já estavam condenados. Ele se alimentou de um cavalo, ela bebeu o sangue da própria irmã atingida durante uma invasão muçulmana que ocorreu no vilarejo. Eles se tornaram o primeiro lobisomem e a primeira vampira.

– Então sou descendente do Dmitrei? – Lauren franziu o cenho para controlar as náuseas que haviam retornado ainda mais fortes.

– Sim. – Veronica balançou a cabeça positivamente. – Lobisomens obviamente conseguem reproduzir e perpetuar a espécie. Vampiros não. Logo, existem duas formas de se tornar lobisomem: primeira, ser da linhagem pura e morrer aos 23 anos. E curiosidade... é aos 23 anos porque ironicamente se trata da soma da idade em que Dmitrei morreu e os sete minutos do feitiço. – ela deu uma risadinha triste. – Ou, segunda maneira: ser mordido por um lobisomem em uma Lua de Sangue. Os mais antigos a chamavam assim não pela coloração avermelhada causada pela penumbra da luz solar, como muitos acreditam... mas sim devido à matança que ocorria sempre nessa época. Todo ano, acontecem de dois a sete eclipses visíveis da Terra, entre os solares e os lunares.

– Então só existem lobisomens puros homens... porque são primogênitos, é isso?! – Allyson estava boquiaberta devido ao preenchimento de lacunas de informações nunca contadas por sua mãe.

– Sim, até a Lauren nascer. – Dinah a respondeu.

– E morrer. – Normani, no entanto, retrucou sarcástica. – E me arrastar com ela.

– O que você quer dizer com isso?! – Lauren arfou, mal conseguindo se pronunciar devido ao mal-estar.

– Eu também tenho um gene: de caçadora de lobisomens. E, segundo a Veronica, ele se ativou porque você se transformou perto de mim. – Normani disse entredentes, fechando os punhos mediante ao ódio que começava borbulhar em suas veias mesmo com Dinah tentando abraçá-la pelos ombros. – Isso tudo é culpa sua! Minha vida foi arruinada por sua causa!

– Você acha que quero isso?! – a mulher de íris verde-lima cinzentas grunhiu em desgosto, quase entregando-se às lágrimas outra vez. – Você acha que fiz de propósito?! Você acha que eu queria voltar como um monstro?! Me diga, Veronica, quando eu finalmente morrerei para tudo isso acabar?!

– Lauren... pare. – Camila choramingou, sentindo o coração dar um solavanco só com a ideia de ver a ex-namorada morrendo outra vez. A latina tentava organizar os trilhões de pensamentos que deixavam sua mente em caos. – Por favor! Vocês duas, parem!

– Por favor, escutem a Camila! – Michael, já exausto, tentou intervir.

– Me diga, Vero! Quando vou morrer?! – Lauren abriu os braços, desesperada. – Se lobisomens conseguem procriar, eles consequentemente conseguem morrer, não é?

– Hãm...

A hesitação da caçadora fez com que as cinco mulheres a olhassem em confusão.

– Você envelhece de uma forma diferente dos humanos. – Veronica respondeu, coçando o alto da cabeça. – Seu metabolismo é mais rápido, porém isso de alguma forma não interfere no tempo de vida das suas células, na verdade, apenas o melhora. O que seria um ano de vida seu equivale a... dez anos humanos.

Os queixos do antigo grupo de cinco amigas metaforicamente e quase literalmente caíram.

– É terrível, mas podemos ajudá-la e... – Michael disse, mas foi interrompido mais uma vez.

– Você está dizendo que ela só fará aniversário a cada dez anos humanos?! – Dinah estava totalmente abismada. – Ela tem 23 anos e uma pessoa normal tem expectativa de vida de sei lá... 70 anos atualmente? Você está dizendo que ela pode viver em média mais uns 500 anos?

Lauren expirou audivelmente o ar preso em seus pulmões e cobriu o rosto assombrado com as mãos, pensando desmaiar com tanta coisa acontecendo em simultâneo. Semelhantemente, Camila continha a cabeça abaixada e respirava fundo para não hiperventilar... e para ser capaz de aceitar que em nenhum cenário futuro conseguiria viver normalmente com Lauren. E Allyson, quase sentindo a dor saindo pelos poros da amiga, tentava confortá-la com carinhos singelos nos ombros cobertos pela manta branca.

– Dinah... hãm... – Veronica nem sequer possuía coragem de sustentar o olhar triste no casal que tanto gostava. – Isso não acontece apenas com a Lauren. Normani também tem a mesma forma de envelhecimento.

A frase dita fez com que Lauren e Camila erguessem os rostos assustados, acompanhadas por uma Allyson tão boquiaberta quanto.

O ar sumiu das vias áreas de Dinah, que travou o maxilar pela tamanha força com que mordeu o interior da sua boca ao ser impactada pelo significado catastrófico daquela afirmação.

Michael apenas suspirou pesadamente, se sentindo mal por assistir Normani controlar o semblante de pânico e morder os lábios trêmulos para que o choro intenso não viesse à superfície. Da mesma forma que a Jauregui, ela também estava condenada a ver as pessoas que amava morrer e a passar décadas e mais décadas sozinha, com seus futuros profissionais e pessoais destruídos.

– O q-que?! – a loira alta gaguejou, congelada no sofá. Lutava para não hiperventilar.

– Os caçadores foram criados por um coven de Bruxas Puras, o oposto das Bruxas Impuras. – Veronica tentava imediatamente explicar para evitar que a loira passasse mal devido à respiração que cada vez mais se tornava irregular. – Fomos, literalmente, feitos através de um feitiço, décadas depois da criação de nossos respectivos alvos: vampiros e lobisomens. Existe toda uma história por trás desse feitiço, de como foi feito e por quem... mas isso não entra em discussão agora. O que precisam saber é que fomos feitos para caçar essas espécies demoníacas e impedir que elas continuassem a espalhar caos, então, para isso, precisaríamos viver a mesma quantidade de tempo. Ou, pelo menos, uma parcela desse tempo, visto que vampiros não envelhecem de forma alguma. Então, por alguma razão desconhecida, os caçadores de ambas as espécies também envelhecem na mesma matemática que os lobisomens.

Oh meu Deus... – Dinah arfou na medida que expirava o ar dos pulmões e controlava o próprio pranto. – Oh meu Deus...

– Por isso você tem 88 anos... mas tem fisionomia de 23! – Camila constatou, segurando o próprio choro ao assistir a melhor amiga sendo abraçada fortemente pela namorada também desesperada. – Você nasceu em 1898, se transformou em 1914 e desde então viveu quase oito décadas e meia para envelhecer apenas pouco mais que sete anos humanos!

– Sim, Camila... obrigada por jogar minha idade na minha cara. – a caçadora disse em um triste humor mordaz.

As seis pessoas estavam petrificadas, em níveis diferentes, com preocupações distintas, mas todas atordoadas demais para pensar em como se comportar daqui para frente. Suas vidas nunca mais seriam as mesmas, nem implorando muito por isso.

– Quando Normani vê um lobisomem, tem um desejo incontrolável de matá-lo. É instintivo, o subconsciente está pedindo por isso. É como se fosse uma resposta condicionada: vê o lobisomem, mata o lobisomem. Foi por isso que ela jogou um vaso na cabeça de Lauren ao vê-la, minutos atrás. E, confie em mim, isso não ficará melhor. Na verdade, ficará cada vez pior nos primeiros anos... – Veronica direcionou a fala à negra, que ainda abraçava Dinah de lado e agora a encarava com medo. – Normani, novos caçadores podem não ter plena consciência de seus atos primitivos, apenas com o passar das décadas. Esse tempo todo você foi sentindo uma crescente raiva porque ela já era uma lobisomem.

Amedrontada, Lauren deu um passo para trás de modo a aumentar a distância do sofá onde sua suposta predadora estava. Sua inquietação apenas demonstrava uma parcela do furacão que a arrasava por dentro, trazendo à tona uma mistura de amargura e medo pela própria vida, a qual era abertamente discutida agora.

– Esperem aí! – Camila a interrompeu, completamente desesperada ao ver sua ex-namorada acanhada e desprotegida. – É a Lauren! Você não a machucaria, certo?!

– Infelizmente Veronica está certa. – Normani grunhiu, atraindo a atenção toda para si. – Não consigo parar de pensar em matar lobisomens! Sonhei a noite toda com isso! Algo está bagunçando a minha mente. Todas as minhas memórias estão virando pesadelos bizarros... Quero acreditar nisso, Mila, e eu sei que não quero machucar ninguém, mas algo em mim está dizendo para enfiar uma bala no coração da Lauren agora mesmo!

As palavras saíram dos lábios da negra sem ela ao menos raciocinar a gravidade das mesmas. Normani cobriu a boca com as mãos, rapidamente, e com as pupilas dilatadas percebeu que todos ali agora a encaravam embasbacados.

– Mani?! – Lauren arregalou os olhos em descrença, mantendo-se segura atrás de uma poltrona. – Sou eu, uma das suas melhores amigas!

– E você é uma lobisomem! – a negra instantaneamente rebateu, fechando os punhos outra vez. – Você é um demônio!

– Sim, aparentemente sou. Mas também sou sua amiga! Por anos! Nunca faria nada para machucá-la! Eu não quero machucar ninguém!

– Gostaria que você parasse de agir como se ainda fosse minha amiga! – Normani subitamente ficou de pé, quase rosnando, e fez com que todos ali imitassem o seu movimento pela apreensão que pairou. – Naturalmente nem eu e nem Allyson somos suas amigas! Veja só o que você fez! Você é um monstro e merece morrer!

– Ninguém morrerá aqui! Parem com isso! – Michael disse em um tom mais alto, almejando controlar a situação antes que fosse tarde demais. – Vamos resolver essa situação da maneira mais sábia possível!

– Caçadores foram enfeitiçados para matar as criaturas da noite de modo a manter o equilíbrio. – Veronica explicou objetivando acalmar todos. – Mas Normani necessita de treinamento antes de exercer sua função! Você precisa vir comigo e se afastar um pouco! O seu cérebro está programado para odiar lobisomens, para se tornar caçadora. Você está convivendo com uma lobisomem e isso não será saudável para você aprender a controlar seus instintos, os quais podem ser revertidos.

– O que?! Como assim ir?! Ir para onde?! O que você vai fazer?! – Dinah questionou confusa e com espanto pela ideia de perder sua namorada antes do previsto.

– Darwinismo, Hansen. Ela precisa aprender a se proteger, porque agora lobisomens experientes também podem farejá-la! Não posso revelar muita coisa a respeito do local aonde vamos, mas existe uma sociedade secreta chamada A Ordem e ela está encarregada exclusivamente de... questões sobrenaturais.

Veronica deu alguns passos para o lado e se inclinou o suficiente para pegar um objeto reluzente em uma mesinha com um abajur laranja, objeto este que estava longe da atenção de todos durante aquela discussão. Seu brilho logo o denunciou: era o mesmo punhal de prata que portava na noite anterior, que trouxera apenas... por via das dúvidas.

– Eu usualmente apenas trabalho com madeira... um tipo especial, já que sou caçadora de vampiros. – Veronica torceu os lábios enquanto analisava a arma em suas mãos, agora sendo acometida por receio e culpa. – Tenho um segundo punhal, de aço puro. Mas este aqui, elaborado por ferreiros que trabalham n'A Ordem, é de Prata Pura. Eles me deram isso ontem porque... eu tinha que matar a Lauren. Eu sumi após quarta-feira porque precisei ir de encontro a eles em outro país e, como havia falhado na minha missão, eu deveria eliminá-la...

– Espera... o que?! – Camila quase saltou adiante, em uma reação defensiva. – Você o que?!

Você deve me matar?! – Lauren gaguejou, descrente.

Tanto a jovem, quanto as outras mulheres, e até Michael, agora se encontravam ainda mais espantados com a revelação.

– Sim, mas eu não consegui... e nem conseguirei. – Veronica ergueu o rosto, deixando explícito os seus olhos marejados e arrependidos. – Você se tornou a minha melhor amiga, idiota!

Desorientada e sentindo a cabeça girar, Lauren demorou certo tempo para conseguir localizar seu cérebro e fazer com que ele cooperasse com o momento. Questionava-se se conseguiria aguentar mais segredos sendo anunciados.

– Então tudo isso foi uma mentira... – ela recomeçou em um tom baixo, mas embebido de dor. – Esse tempo todo você vem mentindo para mim e me espionando! Droga, Veronica, você me enganou por uma missão idiota!

– Lauren, não! Eu... Não foi... – a mulher de sidecut esfregou o rosto com força, tentando acalmar a onda de pensamentos tortuosos que a atingiam de uma só vez. Lentamente levantou os olhos do chão e fitou a dona de íris verdes-lima. – Nunca quis que as coisas acabassem assim! Eu nunca esperei realmente me apegar a você, mas agora eu me importo demais e simplesmente não consigo seguir as ordens dos meus superiores! Você tem ideia do que isso significa?!

– Pare com o teatro, tá bom?! – a Jauregui cuspiu em escárnio, com uma inconfundível frieza e mágoa na voz. – Só me diz uma coisa: algo daquilo foi real?! Quer dizer, aqueles momentos em que a gente ria igual idiotas enquanto enchíamos a cara com cerveja barata e comíamos hambúrgueres gordurosos com batata frita nos fliperamas... – riu sem humor. – Isso foi tudo uma encenação?! Na verdade, não sei o porquê de esperar uma resposta: claro que foi, afinal, você mentiu sobre absolutamente tudo!

– Você está errada! Você não sabe a história toda!

– Não quero saber a história, Vero. Não ouvirei mais nenhuma desculpa ou mentira! Você veio aqui em uma missão para me proteger e falhou! Fingiu ser minha amiga e se aproximou de mim para nada! E, agora que sou um monstro, está encarregada de me matar! Essa é a única história que importa... Aliás, será que seu nome é Veronica mesmo ou até nisso você mentiu?! Eu não conheço você, porra!

O silêncio da caçadora foi suficiente para fazer com que uma Lauren desesperada começasse a andar em direções aleatórias no seu canto da sala, oferecendo tempo suficiente para que as demais pessoas trocassem olhares preocupados entre si. Tratava-se de um daqueles momentos em que o caos está tão grande que não há como contornar ou retornar a um ponto de paz. Dinah, Normani, Camila e Allyson não sabiam o que dizer e, muito menos, como processar o turbilhão de sentimentos conflitantes. O amargor que mais se sobressaía era a sensação de estupidez, por serem inocentes por tanto tempo e pensar que continham vidas "perfeitas" e ridiculamente humanas enquanto que, na verdade, eram controladas por uma espécie de ventriloquia sobrenatural.

Descobrir, tanto tempo depois, que o chão abaixo de seus pés era uma fina areia movediça gerou uma sensação dolorida no estômago. Saber que existiam forças além das naturais e que agora, mais que nunca, e irreversivelmente, se encontravam imersas nesse mundo era no mínimo enlouquecedor.

* Music On * (Wanted Dead Or Alive - Bon Jovi)

Poderia piorar?

Sim, poderia.

E isso aconteceu no instante em que o silêncio constrangedor foi cortado pelo som estridente da campainha sendo tocada. Normani, de pé ao lado das demais, se contraiu por ainda não estar acostumada com a audição meramente mais desenvolvida que a de um humano. Lauren, por outro lado, nem sequer ligou com o incômodo no tímpano, pois outro fator a chamava a atenção atrás da madeira da porta frontal de sua própria casa.

Aquele aroma inconfundível... doce... magnífico... que sentira no estacionamento da Universidade há quatro dias.

Michael fechou os olhos por saber de quem se tratava àquela hora e tomou alguns segundos antes de cruzar a sala de estar e levar a mão na maçaneta da porta, a abrindo. Na medida em que a madeira se movia, a figura da mulher com as mãos no bolso da jaqueta de couro, jeans escuros e botas de cano alto era exposta e sua energia quente e poderosa se espalhava como uma droga perigosa pela casa. Os cabelos rebeldes e Ray-Ban no rosto continuavam iguais, tal qual o sorrisinho de lado impregnado em seus lábios bonitos. Ela parou perto da soleira da porta e se inclinou de modo que seu rosto ficou sob a luz da rua, manifestando não ser uma mulher comum. Allyson rapidamente fora capaz de perceber sua aura selvagem e presença prepotente, que as reduzia a nada.

Todas as suas concepções a respeito do que sabia pareciam subitamente não ter nenhuma importância.

– Você. – Lauren disse ainda parada no extremo do cômodo, engolindo seco para controlar suas entranhas agitadas.

A visitante estava prestes a respondê-la com o mesmo humor galanteador de antes, mas, antes que pudesse falar algo, ela retirou o Ray-Ban ao passo que seu sorriso diminuiu mediante seus instintos agora alertando perigo. Direcionou suas íris âmbar-cinzentas em um olhar frio por cima do ombro, na direção onde uma Normani que começava a perceber o que ela era em razão de seu aroma específico. Então, quase que instantaneamente, a negra deu passos à frente do sofá rosnando em ódio e buscando por quaisquer objetos cortantes para utilizar como arma, obrigando Dinah e Veronica a serem extremamente rápidas para segurá-la pelos ombros e a impedir de ir até à porta agora também protegida por um Michael exausto.

– Meu deus, o que foi?! – Camila se assustou com a amiga. – O que está acontecendo?!

– ELA É A PORRA DE UM LOBISOMEM TAMBÉM! – Normani gritou lutando para se livrar do bloqueio de Dinah, Veronica. – QUE MERDA É ESSA?! VOCÊS ESTÃO EM TODOS OS LUGARES?!

– Boa tarde para você também, caçadora pirralha. – a mulher de roupas escuras zombou na medida em que passava por um Michael que lhe concedeu espaço antes de fechar a porta novamente. – Nem sabe engatinhar e já sai atacando a primeira presa que vê... lembra muito a minha espécie.

– Normani, se acalme, pelo amor de Deus! – Allyson implorou ao ver a dificuldade que Dinah e Veronica continham para manter a negra que se debatia.

– Meu nome é Lucia Vives, mas me chamem de Lucy. – a estranha anunciou, propositalmente se distanciando da caçadora – Estou aqui para ajudar por mais que eu esperasse uma recepção melhor, sabe Mike. Até porque foi você que me chamou aqui.

Lucy retornou as mãos para o interior do bolso da jaqueta, guardando os óculos de sol. Agora mais distante, próxima da TV do cômodo, ela lançava olhares curiosos às demais mulheres: as analisando dos pés às cabeças, prestando a atenção em suas fisionomias.

– E sim, antes que pergunte, seu pai me conhece... – rapidamente falou ao direcionar seu olhar predatório sobre Lauren, que continuava paralisada atrás da poltrona. – Após nosso pequeno encontro no estacionamento fui à empresa da sua família e deixei um bilhete com o meu nome e um número de telefone.

– Com um bilhete "Você saberá quando precisar ligar". – Michael completou em um suspiro, passando a mão pelos cabelos. – Liguei várias vezes antes, mas ninguém nunca atendeu. Mas, hoje de manhã, ironicamente, você quis aceitar a ligação.

– Eu sabia o que havia ocorrido. Além que eu também estava meio ocupada ontem à noite. – Lucy deu de ombros ao se escorar na parede sob os olhares julgadores que estava recebendo dos desconhecidos ali presentes. – Faz parte do conjunto de várias regras da comunidade de lobisomens: não podemos interferir na primeira transformação, ela deve ser natural. Infelizmente algumas pessoas se ferraram no processo pelo que vi nos noticiários. – ela umidificou os lábios e ergueu as mãos em rendição irônica. – Ah, eu estava lá fora desde o início e ouvi a linda conversa que tiveram. Lavaram muita roupa suja hoje, hein?! Não quis interromper, estava muito bonitinho vocês explicando toda a história por trás das espécies "demoníacas", como aquela ali apontou! Só esqueceu de mencionar que a minha é extremamente forte, veloz, charmosa, possui os cinco sentidos incrivelmente apurados e tem alguns probleminhas com o controle da raiva.

Erguendo uma sobrancelha, Lucy indicou Veronica com um dedo, a qual havia finalmente acalmado Normani ao ponto de a negra não querer mais assassinar ninguém momentaneamente. Com uma caótica energia, os olhares das duas mulheres então se cruzaram pela primeira vez: um enraivecido vindo da caçadora e um prepotente vindo da lobisomem.

– Você e Lauren já se conhecem?! – Camila arfou em visível confusão. – Alguém pode me explicar que droga está acontecendo e de onde você surgiu já participando da conversa?!

Eram tantas coisas a assimilar que sua mente estava prestes a entrar em colapso; as pernas fracas demais, o coração batia no céu de sua boca e ela sentia que a qualquer momento seria puxada daquele pesadelo. Tudo ainda era muito surreal.

– Ooh, você deve ser a namorada. – Lucy ladeou a cabeça. – Ou seria ex-namorada?! – se corrigiu ao alternar o olhar atento entre Camila com profundas olheiras e uma Lauren cabisbaixa. – Bem, não é da minha conta, não é mesmo?! – ela fez uma careta zombeteira. – Sim, eu fui ao estacionamento daquela Universidade azarenta de vocês na segunda-feira e avisei Lauren para ficar em casa na quinta-feira... mas, sabes muito bem que ela não quis escutar uma desconhecida em cima de uma moto. – Lucy deu de ombros de novo, parecendo tranquila com isso. – Mas de novo estou aqui em paz e com boas intenções! Não precisamos ser amigos, okay?! Apenas ajudarei Lauren a pedido do meu amigo Jauregui, pois é uma honra me aliar a família de linhagem pura. Oh, e caso ainda não tenha ficado claro através do surto da caçadora de fraldas... eu sou uma lobisomem também.

– Parece levemente conveniente que tenha aparecido logo agora. – Veronica disse entre dentes, caminhando até o centro da sala de estar e encarando Michael ao lado da desconhecida. – Por que você não me falou nada sobre isso, Mike?!

– Eu não tenho que te comunicar sobre cada decisão que faço acerca da segurança da minha filha. Claramente você não soube fazer seu trabalho e agora estamos nessa situação! – o homem de rosto arredondado deixou explícito o seu ressentimento. – Contatei Lucia porque ela possui um lugar para ajudar Lauren a se controlar agora que... não há outra escapatória.

– Agora que serei por séculos uma lobisomem e que terei de quebrar todos os meus ossos pelo menos uma vez por mês?! – a voz irritada de Lauren se fez presente e atraiu a atenção de todos para ela. – É isso, pai?! Você tomou mais uma decisão por mim?!

– Não fique com ódio dele por isso! – ainda contra a parede, Lucy semicerrou os olhos com íris âmbar-cinzentas. – Já ativou a maldição, Lauren. Sua nova vida está só começando, é importante aprender o que significa ser lobisomem. E é o certo a ser feito agora e quanto mais cedo você controlar a sua natureza... melhor.

– A natureza dela?! – Allyson perguntou. – O que isso quer dizer?

– Não posso dizer muito, porque temos uma impostora entre nós. – Lucy provocou uma Normani enraivecida e ainda presa pelos braços de uma Dinah protetora. – Mas tenho um lugar onde ensino alguns truques aos lobisomens recém-transformados. Sou mais velha e mais experiente, acredite. Não é fácil controlar a mudança de humor, os hormônios, os desejos e a semitransformação.

– Você é pura como eu?! – Lauren perguntou, levemente tímida.

– Quem me dera. – Lucy sorriu amistosamente. – Sou da linhagem mista, fui mordida por um lobisomem em uma Lua de Sangue... como foi muito bem explicado. – e, outra vez, trocou rápidos olhares com uma Veronica que ainda a analisava dos pés à cabeça. – Mas, independente, seguimos as mesmas regras da alcateia e respeitamos a hierarquia.

– Alcateia?! Hierarquia?! – Camila conseguiu sussurrar entre a bola de choro formada em sua garganta.

– Oh, claro, essa parte da história não foi contada. – Lucy falou contente e se desencostou da parede, mantendo as mãos no bolso da jaqueta. – Somos divididos em Alfa, Beta e Ômegas, assim como os lobos comuns. Vivemos em sociedade e somos classificados de acordo com nossas forças, habilidades e feromônios. Eu sou uma Beta, a segunda no comando. E nossa querida Lauren aqui... – ela falou, apontando para a jovem de íris verdes-lima. – É uma dos raros Alfas puros existentes! E a única mulher!

O queixo de Lauren desceu mediante a boca entreaberta pela surpresa e imediatamente sentiu os olhares de todos sobre si. Ela observou o pai, Vero, Camila, Dinah, Normani e Allyson a julgando silenciosamente.

– Sou uma alfa?! – Lauren gaguejou, engolindo o choque com dificuldade. – O que isso significa?!

– Irei te explicar tudo com calma, mas para isso precisa vir comigo imediatamente. – Lucy disse em simultâneo a ação de retirar do bolso as chaves da sua moto, provavelmente estacionada lá fora. – Não temos muito tempo de viagem antes que a noite caía e você se transforme de novo.

Os olhos de Dinah, Normani, Allyson e Camila se arregalaram da mesma forma que a expressão aterrorizada surgiu no rosto pálido de Lauren.

– Espera... o que?! – Allyson piscou rapidamente. – Ela vai se transformar hoje de novo?! Por quê?! Pelo que sabemos ela só se transforma na noite do pico da Lua Cheia!

– Isso é verdade. – Lucy a respondeu com gentileza. – Mas Mike me disse que a primeira metamorfose foi interrompida ontem. Provavelmente ela deve estar se sentindo um caco hoje e é por isso. O corpo dela, assim que a lua atingir o centro do céu hoje, irá se transformar outra vez para terminar o ciclo. E acredito que vocês não vão querer estar perto outra vez, certo?!

– Lógico que não! – Dinah imediatamente balançou a cabeça negativamente. – Já bastou tudo que vivemos ontem!

– Por isso é melhor que venha comigo e se transforme em um lugar segur...

– Eu não quero ir! – Lauren retrucou com firmeza, interrompendo a fala da lobisomem Beta.

Todos se espantaram com a resposta da jovem, exceto Camila. Durante aqueles segundos de explicação, as duas se encararam em silêncio através da distância que as separava naquela sala de estar. Tanto íris verdes-lima quanto as castanho-chocolate, conectadas, se encontravam abaladas e marejadas por lágrimas que indicavam a exaustão emocional e física. Nunca precisaram de palavras para dizer as coisas mais importantes durante o intenso relacionamento que compartilharam: porque aprenderam que se conheciam melhor na pureza da calmaria. Sabiam ler uma à outra melhor que ninguém e, acima de tudo, sabiam se comunicar por meio da dor e do sofrimento que eram explícitos em seus semblantes. Era óbvio: seriam separadas para sempre a não ser que lutassem por isso.

No entanto, a conexão foi interrompida por seu pai exaltado.

– Lauren, isso é o melhor para você! – Michael proferiu, já perdendo a paciência.

– Não venha me dizer logo agora o que é melhor para mim! – Lauren, que vinha segurando a bomba de ódio dentro de si, a liberou subitamente e seu tom de voz alto revigorou. – Se estou com a minha vida condenada é por sua culpa! Deveria ter me contado sobre essa maldição antes! Já pensou que eu, mais que ninguém, poderia ter cuidado melhor da minha própria vida?! Hein, vocês dois não pensaram nisso?! – ela alternou o olhar entre o homem e a ex-melhor amiga. – Agora quero que ambos vão para o Inferno! Vão se foder! E me deixem tomar o resto de escolha que ainda tenho nessa vida miserável! Eu não vou para porcaria de treinamento nenhum e ninguém vai me obrigar a isso! Eu quero ficar aqui! Eu quero ficar perto das poucas pessoas com quem me importo agora!

– Olha... eu entendo que você esteja com raiva da gente, mas você não vai conseguir! – Veronica engoliu as lágrimas da tristeza de ver sua melhor amiga dizer aquelas coisas.

– Ah, Vero, vai à merda! – Lauren rosnou entre os dentes, apertando o estofado da poltrona à sua frente com tanta força que seus dedos quase o perfuraram. – Não sei como tem a coragem de dirigir a palavra a mim, sua desgraçada!

Lucy franziu o cenho em empatia ao observar a caçadora mais experiente abaixar a cabeça em vergonha e então deu um passo à frente, de forma a atrair a atenção para si e enviar algum tipo de conforto para Lauren.

– Hey, ela tem razão! – disse, indicando Veronica com a cabeça. – É praticamente impossível para um recém-transformado conseguir passar por isso sozinho! Você não é uma Ômega, os quais conseguem controlar com mais facilidade seus instintos! Você é uma Alfa, uma fêmea com muitos hormônios! Você é mais forte que todos nós, mais descontrolada, mais sanguinária! Se de alguma forma você escapar hoje, não serão adolescentes bêbados as suas vítimas... e sim vários bairros ou metade dessa cidade!

Hesitando após ouvir aquelas constatações, Lauren umidificou os lábios secos com a língua enquanto pensava por entre a confusão mental.

– Eu consigo! – a jovem continuava a balançar a cabeça negativamente, se negando a ficar sozinha e abandonar a quem amava. Ela estava com tanto medo que apenas queria afeto, queria ser consolada e amada ao ponto de esquecer aquilo tudo. – Eu consigo, eu sou forte! Eu não vou a lugar nenhum hoje, não importa o quanto doer! Aprenderei a controlar!

– Isso leva meses, filha! – Michael disse abrindo os braços, angustiado. – Não faça isso consigo mesma! Escute a Lucia! Ela é a única que pode te ajudar agora!

– Não importa! Eu vou fazer isso aqui! Não vou para lugar nenhum, caralho! Tá difícil de entender?! - Lauren gritou, assustando a todos. – Arrumarei centenas de correntes de aço, se for necessário! Mas não vou embora! Eu não vou!

Lucy passou uma mão pelo rosto, suspirando em desgosto. Não podia simplesmente amordaçá-la e arrastá-la para seu acampamento: respeitaria suas escolhas antes de tudo. Mas não deixavam de ser escolhas extremamente estúpidas.

Dinah, Normani e Allyson analisavam Camila, que se mantinha calada durante todo aquele tempo encarando a carpete do cômodo. A latina não tinha forças para lutar contra a decisão estúpida de sua ex, por mais que entendesse suas singelas razões de querer permanecer por perto. Sua cabeça latejava, seu estômago revirava. Ela cobriu o rosto com as mãos, respirando fundo e desejando que todos ali calassem a boca. Queria que tudo parasse, que voltasse ao normal com todas no Texas. Queria, principalmente, a antiga vida lhe preenchendo com sentimentos bons ao invés daquela dor maldita lhe comprimindo o peito.

A lobisomem Beta trocou rápidos olhares com Michael e Veronica, que pareciam compartilhar do mesmo sentimento de ausência de controle. Com um longo suspiro, Lucia colocou as mãos na cintura.

– Tudo bem, respeitaremos sua decisão! – a loba mais experiente falou, dando de ombros. – Mas ficarei aqui e irei ajudá-la a passar por essa noite que será extremamente longa! Precisamos de correntes grossas, pinos de metal, acônito para diluir, balas de prata... – listou com a ponta dos dedos e então ela hesitou no último "item", lançando-a um olhar desafiador. – Ah... e rezar para que seu porão consiga abafar os seus berros devido à dor excruciante que vai sentir!

***

Quarto de Lauren

20 horas e 32 minutos

Terminando de passar uma regata cinza pelos ombros, Lauren conseguia ouvir nitidamente a porta principal de sua casa ser fechada indicando a chegada de alguém na residência. Mesmo se encontrando no banheiro do segundo andar, e a longos metros de distância, a mulher era capaz de escutar as conversas entre Dinah, Normani e Allyson na cozinha e os cochichos de Veronica e Michael na sala de estar. Podia diferenciar os sons dos passos e julgar que quem havia entrado na casa fora Lucy Vives, provavelmente trazendo consigo alguns pinos de metal extras e correntes reforçadas para a longa madrugada que teriam. Não havia se acostumado com essa sua incrível audição, mas isso, tristemente, parecia o menor de seus problemas. Sua cabeça latejava com a tempestade de informações que recebera em uma única tarde e nem a noite que já englobava uma Miami agitada não havia sido o suficiente para digerir o seu fatídico futuro.

Após o quinto banho naquele dia, Lauren ainda apertava os cabelos escuros na toalha branca, adentrando em seu quarto e já vestida pelo conjunto de shorts e camiseta, quando encontrou uma certa latina de costas encarando as três fotografias nostálgicas em cima de sua cabeceira. O cheiro veio às suas narinas como sua droga preferida, obrigando-a tomar alguns segundos para analisar aquela fisionomia que amava intensamente a ponto do pobre coração sacolejar.

* Music On * (Everybody Hurts – R.E.M)

Ao sentir uma presença familiar atrás de si, Camila soltou lentamente o ar pelos lábios trêmulos na medida em que se acostumava com a consistência gelatinosa de suas pernas. Desde que a conhecera, aquela mulher a fizera sair da zona de conforto tantas vezes que se tornara uma pessoa mais forte graças ao seu amor infinito, que a resgatou diversas vezes da autodestruição. E por saber que ela a esperava, como sempre esperou, a latina foi forçada a se virar e se deparar com a ex-namorada que permanecia paralisada na porta.

Encarando-se diretamente, ambas não souberam como reagir porque a ausência de palavras dizia mais que um discurso inteiro. Elas ainda se almejavam e não havia dúvidas.

Camila sentiu a garganta apertar e as palavras de repente lhe fugiram; o coração perdeu o compasso errando duas ou três batidas. Algo em seu interior começou a se agitar, mas soube no mesmo instante que não era euforia, e sim, medo. Medo de perder Lauren de novo, medo de todos aqueles sentimentos a assolarem de um jeito tão devastador que a obrigassem a fugir deles outra vez, esconder-se e abandoná-los... assim como fizera durante anos quando descobriu que era perdidamente apaixonada por sua melhor amiga de infância.

Como se soubesse exatamente o que estava passando naquela linda mente caótica, Lauren fez um negativo desesperado com a cabeça indicando que a latina não se deixasse levar pelas inseguranças. Seu estômago revirou devido ao receio de ser rejeitada novamente, levando sua visão a oscilar por alguns momentos e a imagem de seus discos de vinil espalhados se tornar insuportável. Não queria deixar sua namorada sozinha e partir em uma viagem incerta com uma desconhecida, pois sabia muito bem o quão terrível era a dor de ser excluída da vida de alguém. Camila era intelectual, muito inteligente, com convicções próprias e ideias concretas, mas continha uma fragilidade psicológica singular quase patológica e extremamente perigosa.

– Eu sempre amei essa fotografia... – a voz de Camila se fez presente e, um movimento breve, ela apontou para a foto onde ambas ainda crianças estavam ao lado de uma lanchonete com seus familiares. – Me faz lembrar de como éramos felizes e não sabíamos.

– Sei que tudo virou de cabeça para baixo recentemente, mas não fale como se até um mês atrás não estivéssemos planejando viver juntas o resto de nossas vidas. – a resposta de Lauren veio um tom meramente mais rude devido à mágoa que lhe atingiu.

– Mas até isso mudou também, não vê?! – Camila ajeitou os óculos de grau no rosto para controlar as lágrimas que vinham como uma enchente. – Esqueceu que agora você viverá 500 anos?! Mesmo se a gente... se nós... hãm... não seria mais pelo resto de "nossas" vidas. Sou humana, finita.

– Não! Pare, por favor! Não precisamos pensar nisso agora! – a jovem de íris verde-lima abandonou a toalha sobre a cama e se aproximou da latina angustiada, parando diante dela e ousadamente pousando suas mãos nas bochechas molhadas pelas lágrimas que venciam a batalha. – Não precisamos pensar a longo prazo assim! Enquanto eu tomava banho, pensei bastante e concluí que precisamos viver um dia de cada vez até sabermos exatamente o que fazer! Eu não quero ir embora! Eu não quero te deixar!

– Eu também não quero que vá. Mas... é o certo, não é?! – Camila disse desolada, colocando as mãos sobre as costas das palmas quentes em seu rosto. – Não quero que vá e isso é extremamente egoísta, mas, ao mesmo tempo, sei que será algo bom para voc...

– Não! – Lauren balançou a cabeça negativamente. – Como futuras médicas, sabemos que o psicológico afeta muito e... eu não quero ficar longe de você! Você me deixa mais forte e eu sei que conseguirei passar por tudo isso se a tiver comigo! Podemos fazer isso funcionar, Camz! Sinto muito por tudo que a fiz e pelos sentimentos ruins que lhe causei... não era eu mesma e agora sabemos o porquê! Posso pedir para que Lucy me ensine a melhorar, mas daqui! Aqui em Miami, no nosso lar!

Camila choramingou ao sentir o peito comprimir através da tempestade emocional que a inundava por dentro. O amor que compartilhavam era tão forte e transcendente que ela ponderava se um dia diminuiria, independente das consequências. Sabia que estavam sendo inconsequentes, egoístas e quase tóxicas — desconsiderando todos os conselhos e ordens alheias —, mas a dor de uma possível separação era tamanha que desejavam apenas se livrar da sensação. E escolher a esperança, mesmo que estúpida, parecia uma boa escapatória.

– Você é o meu lar, meu bem, não percebeu isso ainda?! – a latina suspirou ao encarar aquelas imensidões verdes com brilhos de cinza. – Eu também não quero que me deixe... não estou preparada e nunca estarei!

– Somos Camila e Lauren, esqueceu?! – a maior murmurou sorrindo tristemente para não se entregar ao próprio pranto. – Podemos lutar contra qualquer coisa, juntas! Vamos achar uma solução, eu prometo! Não precisamos voltar a namorar agora... até porque não temos emocional e mentalidade para isso, mas... por favor, eu te imploro... não me deixe! Não fuja! Independente do status, eu apenas a quero na minha vida!

– Laur... – a menor suspirou pesado, extremamente cansada. – Precisamos pensar nas meninas também! Normani... ela... quer acabar com você! Os antecessores de Allyson criaram seres para te caçar! Você não estará segura aqui, você...

– Só me prometa, Camila! – Lauren clamou em desespero, com os olhos marejados. – Prometa que não vai me abandonar! Confie em mim e derrube esse muro de inseguranças! Eu ainda sou sua garota, a sua mulher que te segurava em qualquer queda! Por favor! Não solte minha mão logo agora, me ajude!

O coração da latina apertou mais uma vez e ela se sentiu fraca, desejosa dos braços que a faziam se sentir protegida. Não hesitou e se jogou contra Lauren, afundando o rosto na curva do pescoço de modo a sentir o calor excessivo emanando da pele pálida enquanto a maior a abraçava com moderada força para não machucá-la. Ignorando a sensação de egoísmo, elas fecharam os olhos e apreciaram o momento de reencontro dos corações.

– Eu posso confiar em você, Lauren?! – Camila falou sem se afastar, apenas guardando aquele cheiro amadeirado na memória. – Posso confiar que dará o seu melhor, que cuidará de si e de todos nós?! Eu posso confiar em você a ponto de lhe realizar essa promessa?! Não quero derrubar meus muros para depois ficar desprotegida.

– Sim, Camz, você pode confiar em mim. – Lauren respondeu apertando-a ainda mais contra si, sentindo uma falsa alegria momentânea que parecia a luz de um farol em um mar turbulento. – Vamos ficar bem! Vai dar tudo certo!

E então, mesmo sentindo seu interior a avisando a não fazer aquilo, Camila soltou uma lufada de ar pelos lábios trêmulos no momento em que novamente decidiu confiar seu chão a outra pessoa.

– Então eu prometo. Vamos gradualmente fazendo tudo dar certo!

***

23 horas e 34 minutos

Impossível de controlar, o tempo passou e consequentemente a noite se arrastou até o instante que todos os oito esperavam de maneira apreensiva. O plano era simples e fácil de executar, então os dois grupos se encontravam em seus determinados locais da casa.

Lauren já continha correntes presas ao redor de seus pulsos, tornozelos e cintura outra vez, todas extremamente bem encadeadas à pinos de aço presos ao chão e às paredes para suportar a força sobrenatural de seu animal interno. O semblante da jovem era infeliz na medida em que recebia ajuda de Lucia e Veronica, ambas agachadas e trabalhando em silêncio como uma eficiente dupla encarregada de revisar pela terceira vez a resistência dos metais.

Lembre-se de tudo que te expliquei agora a pouco. – a voz de Lucia a trouxe de volta à tona. – Respire fundo! Lutar contra é pior! Você precisa aceitar esse seu lado para começar a controlá-lo futuramente. Está pronta?!

O mal-estar e a combustão que lhe queimava a pele de modo a acumular gotículas de suor por seu corpo.

– Não, mas não tenho mais outra escolha. – Lauren respondeu entre os grunhidos de dor gerados pelos espasmos cruéis em suas vísceras que pareciam se remexer. – Ainda vai delongar muito?!

Uma Veronica magoada e séria, que não dirigiu mais a palavra à jovem, ergueu o punho que continha agora um relógio no pulso.

A qualquer momento.

E assim como proferiu, aconteceu no ápice da lua no céu. Não demorou mais que minutos para que os espasmos se intensificassem e para que suas articulações ganhassem vida outra vez, queimando e pulsando na formação de edemas. Veronica e Lucia, com expressões de pena, deram alguns passos para trás a fim de se distanciar e criar uma zona segura entre elas e a mulher que começava a se debater desesperadamente e a puxar as correntes de aço. A instruíam a respirar com calma e a tentar pensar positivo em meio ao sofrimento, mas os berros de dor de Lauren eram altos e agonizantes demais.

O choro alto e os sons dos ossos se quebrando abafava qualquer conselho dado.

Sentados no sofá da sala de estar e compartilhando os mesmos semblantes de aflição, Michael, Camila e Allyson se encontravam em silêncio em meio às penumbras causadas pelos únicos três abajures acesos no cômodo grande. O patriarca fechava os olhos com força para suportar os gritos da filha no andar inferior; a latina chorava de soluçar e escondia o rosto desolado no pescoço de Allyson, que possuía ao seu lado uma garrafinha com acônito diluído preparado para proteção individual e coletiva.

De pé, Dinah mantinha os olhos fixados na namorada agitada à sua esquerda, ambas próximas da parede ao lado do sofá. Preocupação e medo eram excepcionais sensações que sentia, não aceitando que sua namorada envelheceria mais devagar e que agora seu propósito de vida era outro diferente de amá-la.

Em contrapartida, uma Normani agoniada e ofegante andava pela sala de estar de punhos cerrados e mordendo os lábios. Ela tentava, sem sucesso, controlar o asco que a dominava conforme literalmente sentia a energia da metamorfose. Seus instintos estavam mais aflorados do que nunca, seus sentidos — agora muito mais aguçados — se encontravam em completo caos e desequilíbrio devido à presença das duas lobisomens no mesmo ambiente, deixando-a atordoada pelo desejo assassino que a preenchia. Não admitiria em voz alta, por respeito à sua namorada, mas uma parte profunda de seu âmago sentia prazer e satisfação ao testemunhar, através de sua audição apurada, toda dor e agonia que Lauren estava sentindo. Era como se... aquela maldição fizesse certa justiça ao condenar e submeter os demônios à dor excruciante.

Pelas saídas de ar que haviam na casa era possível ouvir baixinho os gritos da pobre mulher, fazendo com que Camila, Dinah, Allyson e Michael se encolhessem. O patriarca Jauregui, por outro lado, era o mais incomodado: sua cabeça latejava pelas pouquíssimas horas de sono na última semana; a culpa e o ressentimento pelo destino de sua primogênita o castigavam mais do que nunca.

* Music On * (Every Breath You Take – Chase Holfelder)

Eu não aguento mais isso! – Michael falou, levantando-se de supetão do sofá. – E-eu preciso ir ao banheiro para... me acalmar um pouco. – disse, sem olhar as outras quatro mulheres.

O homem desorientado se encaminhou para as escadas com um pesar acompanhado de um desespero palpável. Ao chegar no banheiro, fechou a porta atrás de si com um estrondo e foi até a pia, abrindo a torneira e fazendo uma concha com ambas as mãos para acumular uma quantidade significativa de água. Jogou um pouco do líquido no rosto enquanto encarava seu reflexo cansado no espelho.

Sentia-se um lixo, um fracassado como pai e como homem. Não conseguiu proteger a esposa que tanto amava e muito menos a sua filha. E o seu filho estava lá fora, largado no mundo, se distanciando cada vez mais da família.

Uma lágrima escorreu por sua bochecha já molhada e Michael abriu a boca prestes a desferir uma tonelada de ofensas contra si mesmo quando, de repente, ao fundo do espelho, enxergou uma sombra escura às suas costas. Arregalando os olhos pelo susto, o homem rapidamente se virou e encontrou apenas o vaso sanitário do cômodo com a tampa aberta, vazio.

Ele suspirou em alívio, ponderando que agora havia enlouquecido de vez. No entanto, ao girar o corpo para frente novamente, seu semblante se tornou apavorado ao encontrar no espelho uma figura demoníaca e maligna o encarando com órbitas cinzas raivosas. O reflexo de uma senhora vestida por um longo manto negro o fez paralisar, não sendo capaz de gritar por ajuda. O corpo esquelético era atrofiado e retorcido; os ombros formavam uma corcunda e o rosto era enrugado e manchado de sangue seco com pus.

A velha abriu um sorriso de dentes podres e estendeu a mão em um súbito movimento — membro este que emitia um brilho cinzento, de aparência viscosa e coberta de feridas purulentas; como uma coisa morta que se decompusera na água — e a atravessou no portal criado no espelho, agarrando rudemente o punho gordinho do homem diante de si.

Bellach mae eich corff yn eiddo i mi ar fy mhen fy hun. Bydd fy enaid yn eich cofleidio nawr. – sibilou o cântico antigo em um sussurro ofídico. – Gwirodydd, rhowch nerth imi lywodraethu'r corff cyffredin hwn!

Um frio fantasmagórico envolveu o corpo de Michael, travando seus músculos e o mantendo imóvel. Sua caixa torácica não mexeu, suas pálpebras arregaladas não trabalharam por longos instantes até que sua expressão de terror congelada lentamente relaxou quando, em repentino, suas órbitas se tornaram brancas por completo e sua visão foi bloqueada por uma névoa que mergulhou sua consciência em uma escuridão sem fim.

Mesmo com sua alma longe, seu corpo permaneceu ali... diante do espírito maléfico da velha de aparência esquelética e decrépita, que, gradualmente se dissipava do espelho e adentrava nos poros do homem mundano. O corpo sofreu um intenso espasmo com a realocação da entidade em seu interior e as articulações estralaram, fazendo a cabeça de Michael girar um movimento anormal para a esquerda.

Quando finalmente se apossou da nova estrutura física, a bruxa do espelho ergueu as pálpebras do homem e revelou órbitas livres do aspecto branco, normais. Ela sorriu através dos lábios do mesmo e encarou as mãos quentes, já imaginando tudo que desejava realizar com elas.

E o primeiro item na lista era: vingança.

############

[Wolf] E AÍ?! Esperavam por essa volta?! Estão chocades?! O que acharam?

Deixem seus comentários, ideias e teorias! Além de claro, uns mimos para as autoras famintas.

Até a próxima atualização, Duskers.

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