Bryan e Amy até a Meia Noite

By Isa_Altarelli

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🏆 1° Lugar no concurso Halloween Vault 2021. Categoria: Contos de Ficção em Português. * * * * * Na noite... More

Bryan e Amy até a Meia Noite

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By Isa_Altarelli

You Know I'm Bad, I'm Bad-

Come On, You Know (Bad Bad-Really, Really Bad)

And The Whole World Has To answer Right Now

Just To Tell You Once Again, Who's Bad...

~Michael Jackson, Bad

Era impressionante que ainda estivessem tocando essa música, mesmo depois de tantos anos. A melodia ecoava pelos painéis de led ofuscante que brilhavam na Times Square, misturada com o burburinho das pessoas ali presentes. Esse ano as comemorações do Halloween estavam meio... meh. Caídas. Tinha um ou outro palhaço malvado, vários zumbis, um dinossauro inflável... Sei lá, as pessoas de hoje em dia tinham perdido o espírito, na minha opinião. Sem fantasias, sem susto... não era Halloween de verdade.

Coloquei as mãos nos bolsos da jaqueta, como o bad boy que eu era, e comecei minha peregrinação em meio aos corpos agitados. Era a única noite do ano em que eu podia sair assim... Despreocupado. Tinha feito muito esforço para deixar o cabelo lustroso, quase tanto quanto minhas botas de couro pretas. Eu era como... Judd Nelson em The Breakfast Club. Só que mais bonito, claro.

Criancinhas irritantes corríam por aí, pedindo doces, trombando em pessoas e tacando o caos na ocasião. Sorri comigo mesmo. Eu também poderia... mexer uns pausinhos nessa situação toda. Escaneei a multidão em busca da minha vítima. A velinha sentada no banco? Não, elas tinham o coração frágil. A menina sentada do lado dela? Sei lá, ela parecia estar esperando alguém. Ah, ah, sim. Aqueles moleques sentados nas escadarias sujas, ao redor do que parecia... Um tabuleiro Ouija?... É sério? Revirei meu olhos, mas continuei andando até lá.

Ah, eles eram tão fofos. Os pirralhos não deviam ter mais que treze anos; olhando pensativos para o quadro de madeira, ocre e preto. Todos com as mãos naquela coisa que parecia um coração. Essa parada não funcionava, realmente. Mas era divertido assistir.

- Ah, vocês não acreditam mesmo que isso aí vá funcionar, não é? Essa coisa de espírito não existe... - Um dos garotos falou. Estava com os braços cruzados no peito, olhando torto para os outros.

- Se você tem tanta certeza assim, Rich, coloca a mão aqui! - O amigo dele retorquiu, e o cara, Rich, lhe deu um olhar incerto, que não passou desapercebido.

- Tá bom. - Ele disse, com uma calma que eu sabia que ela falsa. E colocou a mão na peça móvel, junto com os outros.

Ah, isso iria ser tão divertido. Sorri, ajoelhando-me perto deles, para ouvir mais de perto a conversa.

- Ò espíritos da noite - O amigo de Rich começou, fechando os olhos. Segurei uma risada - Concedam-nos uma visita nesta data, em que nossos mundos se fundem e suas almas vagam ao nosso encontro...

Esperei um momento.

- Viu! Nada aconteceu, Tay... AAAAAAHHHHH!! - Os garotos saíram correndo, gritando a plenos pulmões, a começar pelo espertalhão, Rich.

Eu estava me dobrando de rir. Bem na hora que ele tinha terminado a frase, movi a pecinha para baixo, para onde dizia 'Adeus'. E os moleques levaram o maior susto da vida deles Ah, que noite maravilhosa. Sabe o que faria ficar ainda melhor? Uma...

- Ei, seu idiota! - Uma voz falou atrás de mim, e eu me virei, um reflexo no susto, para encarar a moça de antes. Aquela sentada no banco de pedra do lado da coroa* de coração frágil. Estava me encarando com olhos grandes, que perderam um pouco da luz assim que me virei. Quase como se estivesse esperando outra pessoa; mas continuou me encarando, indignada. Levantei as sobrancelhas - É. Você mesmo. - Ela confirmou.

(*N/A: pessoa velha)

Isso não podia estar acontecendo. Ela era...

- Você pode me ver? - Arrisquei uma pergunta.

A moça assentiu, e tornou a falar:

- Eu sei quem você é.

Ela era viva. Algo que eu deixei de ser há muito tempo.

- Ah, é? Quem? - Cruzei os braços, com um sorriso debochado de lado. Um dos meus melhores.

- Um fantasma.

Assobiei.

- Pensei que você soubesse meu nome ou algo assim. Mas muito obrigado por atestar o óbvio. Como se eu não soubesse que estou morto há 30 anos.

Ela permaneceu inabalada.

- O que você está fazendo aqui? - Ela quis saber. Nossa, que grossa. Geralmente as pessoas tinham mais respeito para com seres sobrenaturais. Respeito e medo, muito bem colocados. - Por que incomodar aquelas crianças?

- Eu estava entediado. Vim dar uma volta. - Tirei uma poeira imaginária da jaqueta - Sabe, a eternidade fica bucólica depois de um tempo...

- Bom, faça um favor a todo mundo e dê o fora daqui. - Ela disse, puxando mais o casaco contra o corpo e começando a andar. Ah, não, não. Senhorita intrometida não iria sair tão fácil dessa. Corri para acompanhar seus passos largos.

- Por quê? Não é Hallowen? Ou agora essa é uma celebração reservada somente para os vivos?

- Porque vocês, espíritos, tem a mania irritante de achar que as pessoas têm que se importar com vocês. Você morreu. Acabou. Vá para luz ou algo assim. Pare de ficar importunando pessoas inocentes, que não tem nada a ver com a situação.

- Você acha que é simples assim? Se fosse, eu já estaria lá, docinho. - Agora ela estava passando por uma multidão fantasiada, reunindo-se na direção oposta. Eu era incorpóreo, imaterial, podia passar através deles sem problema. Mas ela não; estava se debatendo contra os transeuntes, com certeza esmagando alguns pés no caminho. - Nunca ouviu falar de 'assuntos pendentes'?

(*N/A: do inglês, unfinished business).

- Ah, meu Deus. Lá vamos nós de novo. - Ela murmurou - E qual é o seu? - Falou mais alto - Achar o amor da sua vida? Vingar o namorado da sua mãe? Ah, já sei, comprar uma jaqueta nova, porque essa aí é brega demais.

Fingi que não ouvi essa última parte.

- Ir ao show do Michael Jackson.

Ela riu, com escárnio.

- Boa sorte. Ele morreu em 2009. - Ela parou, olhando para os dois lados da rua antes de seguir - Que tal você procurar no seu mundo e deixar o nosso em paz? Ele ainda deve estar por aí, fazendo aquelas dancinhas ridículas.

- Primeiro, não são ridículas. São icônicas. E, segundo, você acha que eu não tentei? Eu fui em todos, todos os shows desde 1988 até 2009. Você não sabe os perrengues que eu passei para chegar até eles.

- Ah, imagino... - Suas feições desdenhosas estavam focadas na rua lotada à frente. Onde é que todas aquelas pessoas estavam indo?

- É sério! Descobri a duras penas que aviões e fantasmas não combinam. Tentei cruzar a linha do pacífico uma vez, para chegar ao Japão, e acabei preso em um looping infinito... Ei!

Eu a peguei pelo braço. Ou melhor, tentei, já que eu não podia pegar em nada. Minha mão atravessava qualquer superfície, era muito irritante.

- Escuta, eu não vou te ajudar, tá legal? - Ela gritou, olhando em minha direção. Mas ninguém reparou. Com todas aquelas pessoas, estava impossível discernir quem estava falando sozinho e quem não estava. E isso aqui era Nova Iorque, afinal; tinha um maluco em cada esquina. - Tenho coisas mais importantes para fazer. Para de falar comigo.

- Mas foi você quem falou comigo primeiro. Estou só retornando o favor.

Ela ficou muda. Os olhos me olhavam com uma intensidade que não estava lá antes.

- Não importa. - Virou as costas e saiu andando.

Que menina difícil...

- Onde é que você está indo, einh? - Eu corri para alcançar seus passos ágeis. - Todo mundo está indo para lá - Eu apontei para onde o fluxo se movia.

- Chinatown. Preciso chegar lá antes da meia-noite.

- Por que?

- Não é da sua conta. Para de me seguir. - Ela estava andando... na direção do metrô. Interessante. Fazia muito tempo que eu não ia ao subterrâneo da cidade.

- Olha, que coincidência. Parece que você e eu estamos indo na mesma direção! - Eu sorri, meu melhor sorriso inocente.

Ela fez um gesto não muito educado na minha direção e continuou andando. Que meiga. Apesar de o cara que o recebeu ao invés de mim (afinal, eu era invisível), não ter concordado com a minha opinião.

O metrô estava lotado. Gente desembarcando dos trens, correndo entre as estações e subindo as escadas para submergir à rua. Ela estava atenta, olhando para as placas, procurando por alguma coisa...

Era o trem. Estava parado na plataforma, sorte, bem a tempo de nós estrarmos e sentarmos. Não podia sentir cheiro nenhum, mas me lembrava de como os trens eram nos anos 80, quando ainda estava vivo. E não tinha saudade nenhuma.

- E aí, qual seu nome? - Perguntei, enquanto estávamos confortavelmente sentados no banco de metal. Não tinha quase ninguém além de nós. Só um cara cochilando e uma moça com fones de ouvido. - O meu é Bryan. Bryan Odeal.

- Se eu falar meu nome você vai calar a boca?

- Talvez...

- Amy. - Ela respondeu. Olhando agora, na claridade das luzes fluorescentes do trem, percebi que ela era uma espécie nova de Molly Ringwald em Sixteen Candles. Cabelo curtinho e tudo. O sobretudo grosso caindo até a metade das panturrilhas. Mais uma cética que não gostava de fantasia, pelo visto. - Amy Shmitz.

- Bom, Amy, infelizmente para você, agora que eu descobri a primeira pessoa que consegue falar comigo em trinta anos, não me deu a menor vontade de te deixar em paz. - Sorri, mostrando os dentes, enquanto ela revirava os olhos.

- Eu e minha boca grande... - ela falou, mais para si mesma, mas eu ouvi suas queixas inúteis de que deveria ter ficado calada.

- Deveria pensar nas consequências antes de ser enxerida. Então... - Eu encostei o cotovelo no assento, sentando de lado, para olhar para ela. - Acontece sempre? Você sabe... Esse negócio de ver gente morta? Não que esteja reclamando, mas é um pouco... bem, um pouco incomum.

Ela exalou pesadamente antes de falar:

- Não, só nos dias de Halloween, e só até 11:59 para ser exata. É o dia em que os espíritos vagam pela Terra, afinal.

Ah, mortais. Pretensiosos e cegos, achando que sabem tudo sobre os mistérios da eternidade.

- Como se eles não fizessem isso nos outros 365 dias do ano - Eu ri - Mas, sim. Hoje é o dia em que as linhas entre vida e morte se borram e nós podemos... Nos divertir por aí. - Eu expliquei. - Deve ser por isso que você pode me ver.

- Não diga. - Ela estava tirando o esmalte azul das unhas com a outra mão - Por que você nunca pensou em procurar o Michael Jackson entre os fantasmas, ao invés dos vivos?

- Bom, eu morri em 1988. Demorou mais vinte anos para ele passar para o outro lado. E, depois disso, nunca mais o vi.

- Por que não?

- Porque nem todo mundo que morre fica preso no limbo, gata. Tem bastante gente que pega uma passagem expressa lá para cima - Falei, apontando - Ou lá para baixo, vai saber.

- E para onde acha que você vai? Porque, baseado no que eu vi mais cedo, eu tenho uma boa ideia...

- Neste momento, para onde quer que você esteja indo. O resto fica para depois.

Fez-se um momento de silêncio, até que ela perguntou:

- E por que o show do Michael Jackson?

Não gostava muito de lembrar da minha vida. Nem da minha morte. E essa conversa estava trazendo várias memórias reprimidas à tona.

- Bom, na noite em que morri, estava esperando uma pessoa para irmos juntos ao show da Bad Tour, no Madison Square Garden.

- O que aconteceu?

- Assalto à mão armada. Dois tiros no peito. - Eu coloquei a mão sobre o local, ainda sentindo a ferida.

- Ah... - Ela teve a decência de se compadecer. - Desculpa.

Dei de ombros.

- Relaxa. Já superei.

Ela olhou para mim com cara de 'Aham... sei', mas não disse nada. O trem estava diminuindo a velocidade para parar. Ela levantou-se, indo em direção às portas e vidro e eu fiz o mesmo. Estava mais escuro aqui do que onde estávamos, na 5th Avenue, e fiquei preocupado com o fato de Amy ser uma moça andando sozinha à noite, nessa cidade movimentada.

- Você não acha melhor ligar para alguém? Algum amigo ou coisa assim? Sabe, essa cidade é bastante perigosa à noite. Estou aqui para provar.

Ela pareceu... divertida. Que ultraje. O que será que tinha dentro daquela cabeça?

- Que trauma, einh? - Ela caçoou.

Pensando bem, nada. Devia ser oca.

- Claro que eu tenho trauma. Eu fui assassinado! - Ora essa!

Ela pareceu sentir meu desconforto, porque emendou:

- Calma. Não precisa. Eu vou ficar bem. Faço esse mesmo caminho todo ano, e nunca me aconteceu nada. - Completou baixinho com: - E não tem ninguém para ligar, afinal...

Ela estava andando depressa pela ruas. Olhei em um relógio analógico dentro de um dos cafés acesos da rua: 22:09. Só mais duas horas até que eu voltasse à minha existência solitária novamente.

- E o que você tem feito com todo esse seu tempo livre? - Ela perguntou. Senhorita intrometida parecia ter tirado a tampa do vidro de perguntas agora.

- Bom, depois que não teve mais show nenhum para ir, eu... sei lá. Fiquei vagando por aí. De vez em quando eu voltava para casa, para ver como as coisas estavam, mas era como se minha morte não fizesse diferença. Ninguém prestava atenção em mim quando estava vivo... Fora uns poucos dias depois do funeral, ninguém prestava atenção depois de morto também... É... difícil. Eu não tenho nenhum lugar meu para ficar. E todas as pessoas que eu conhecia se foram. Se mudaram, envelheceram, esqueceram. - Conversar sobre as amarguras da minha alma estava me deprimindo. Tentei lembrar de uma coisa feliz: - Teve uma vez que eu morei um tempo com meu amigo Fred, do time de xadrez do colégio. Ele tinha sofrido um problema no coração, muito jovem. Mas depois até ele conseguiu... seguir em frente, vamos dizer.

- Você jogava xadrez? - Ela sorriu, um pouco. É, eu era valentão mas também era esperto. Estalei a língua.

- Vica-campeão estadual, xuxú. Eu era o Mozart do xadrez.

- Duvido. - Agora ela estava rindo.

- Pode olhar. Esse corpinho engana - Falei, abrindo um pouco minha jaqueta - Mas todas as minhas medalhas ainda estão nas prateleiras do Aaron High*. Eu conferi.

(*N/A: Aaron High School: Escola de ensino médio)

Agora estávamos chegando perto de grandes grades pretas de metal. As portas vazadas levavam a uma imensidão inabitada à frente. Árvores escurecidas pelo luar, nenhuma alma viva por perto... Eu conhecia esse lugar.

- Amy... Por que nós estamos no cemitério?

Ela já estava com a mão na maçaneta de metal.

- Porque eu tenho que ver uma pessoa. - Entramos.

As lápides faziam sombra em sua pele clara, conforme passávamos pelos corredores lotados. Tantas pessoas... ainda me assustava ver quantas pessoas mortas existiam no mundo. Tantas vidas que cessaram de uma forma ou de outra, cedo ou tarde demais. Cada uma com suas peculiaridades e seus trejeitos; cada um com seus amores, suas dores e suas perdas. Todos agora esquecidos pela maré irrefreável do tempo. Incluindo eu.

Amy parou em frente a uma lápide em especial. Tirou um buquê de flores do bolso do casaco e se abaixou, para colocá-lo na terra úmida, onde grama crescia em tufos.

- Seu idiota... - Ela falou, a voz falhando e tremendo, devido às lágrimas que escorriam pela bochecha macia... caindo do queixo nas mãos, nas roupas, na terra debaixo de nossos pés. - Nem para se despedir. Você falou que estaria aqui para qualquer coisa que eu precisasse!... Do que adianta ver todos esses espíritos ensimesmados, se eu não consigo ver você? - Seus soluços estavam preenchendo o escuro da noite. Acompanhados, talvez, pelo canto dos grilos e o barulho do farfalhar das árvores.

- Quem você quer ver? - Eu me abaixei ao lado dela, os cotovelos nos joelhos, enquanto olhava para a inscrição na lápide.

Enzo Schmitz. 1997-2019.
Saudades eternas da família.

- Meu irmão. - Os joelhos cederam e ela enfiou as canelas na terra molhada, não se importando em sujar a pele ou as roupas.

- Posso perguntar o que aconteceu? - Eu falei, do jeito mais suave que conseguia.

- Acidente. - Ela cuspiu a palavra - Nós estávamos voltando para casa à noite, depois de alguns dias fora da cidade. Ficamos órfãos muito cedo, mas assim que o Enzo fez dezoito, arrumou um emprego e fez questão de se tornar meu responsável legal, assim a gente não precisaria mais viver naquele orfanato imundo...

Ela parecia perdida na história, nas lágrimas, na dor. Nem se deu conta de que tinha maquiagem borrada na ponta do nariz. Eu quis limpar, mas não pude.

- Eu estava ao volante, uma adolescente de dezesseis anos, feliz por ter acabado de tirar carteira... E eu não... Não vi o caminhão. Ele furou o sinal vermelho e bateu em cheio no lado direito do carro, onde o Enzo estava.

Eu esperei até que ela se acalmasse, até que pudesse reestabelecer a fala, depois de enfiar a cabeça nas mãos e gritar em meio ao choro. Ainda estava respirando com dificuldade quando completou:

- Eu matei meu irmão. Mereço ir parar no inferno por isso.

Eu sentei no chão do lado dela.

- Então somos dois. A diferença é que eu estou um pouco mais perto chegar lá que você.

Ela abriu um espaço entre os dedos para olhar para mim.

- Por que?

- Na noite do assalto, eu estava... Esperando uma pessoa. Eu só amei uma pessoa na minha vida inteira e ela se chamava Molly Arnolds. Minha vizinha e colega de laboratório na quarta série. Mas ela nunca olhava para mim, e eu nunca tinha coragem de me confessar.

Eu me lembrava claramente da Molly. Todos os dias eu observava seu cabelo cor de mel enquanto ela sentava do meu lado na bancada, retorcido em duas tranças e alguns fios soltos...

- Até que, quando estávamos no último ano do colégio, eu finalmente criei coragem para convidá-la para o baile. E ela disse sim, para a minha surpresa. Foi o dia mais feliz da minha vida. Começamos a sair no dia seguinte. - Eu me interrompi, escolhendo as palavras - Mas... de alguma forma não era tudo aquilo que pensei. Ela estava sempre fora, sempre ocupada demais para mim, e eu me pegava olhando para outras meninas. Nós brigávamos por coisas bobas... E tinha essa outra garota, Kelsey, que ficava dando o maior mole...

Eu não me orgulhava dessa parte da história.

- Um dia eu briguei feio com a Molly. Ela iria para fora da cidade por alguns dias e não queria que eu fosse junto. Eu... sei lá, queria não me sentir rejeitado. Acho que foi por isso que eu fui encontrar a Kelsey naquela noite. E a convidei para ir ao show comigo no dia seguinte. Mas nós nunca chegamos a nos encontrar.

Apesar de tudo, Molly foi a pessoa que mais visitou meu túmulo nos anos seguintes. Para ver o namorado que tinha morrido tragicamente; o infiel nunca descoberto. Olhei para a terra molhada.

Tive uma eternidade para pensar, e ainda não tinha chegado à resposta para a pergunta:

- Você acha que eu sou uma pessoa ruim? - Eu perguntei - Tipo, uma resposta honesta: Será que o elevador do meu pós vida vai descer, ao invés de subir?

Ela tinha ficado quieta, olhando para mim enquanto eu contava a história. Mas agora estava com a metade de um sorriso no rosto.

- O elevador do seu pós vida? Sério?

Eu ri. Em meio à minha própria melancolia.

- Não sei se eu sou uma boa pessoa ou não. Cometi erros, fiz muitas escolhas ruins. Parece até que essas são as mais fáceis de fazer... - Olhei para cima, as estrelas como pequenos vagalumes na imensidão escura. - Apesar de que, no calor do momento da decisão, não há bom ou ruim, essas coisas só se enxerga depois.

- É difícil dizer. - Ela fungou. - Desculpa ter te chamado de idiota mais cedo.

Isso me pegou de surpresa.

- Não precisa se desculpar. Eu sei que eu sou um.

- Não, é que o seu perfil de costas é muito parecido com o do meu irmão. Pensei que finalmente o tivesse visto, e toda essa raiva suprimida me voltou á cabeça.

Ela olhou para a inscrição na lápide.

- Eu venho aqui todo ano desde o acidente, pensando que vou poder vê-lo mais uma vez. Falar todas as coisas que não disse. Pedir... - Seu rosto quebrou em um milhão de lágrimas brilhantes - Pedir desculpas. Mas ele nunca está aqui. Nunca vem me visitar. Você falou que nem todas as pessoas viram fantasmas, e é uma coisa boa que ele possa estar... em paz. Mas, honestamente? Ele partiu tão jovem; não é possível que tenha resolvido todas as pendências aqui na Terra...

Ela olhou para mim com aqueles olhos sofridos, o rosto descompassado marcado pela dor e pela perda, com certeza irreparáveis.

- Por que será que eu nunca o vi?

Talvez porque...

- Porque espírito nenhum gosta de visitar o próprio túmulo, inteligência. O meu é na próxima esquina. E nem por isso eu quero ir lá.

O rosto dela enrubesceu.

- Você está vendo algum outro espectro aqui além de mim? Hoje é halloween e não tem ninguém. Isso quer dizer alguma coisa. - Eu apontei para o local vazio ao nosso redor - Nós queremos ir para um local especial, um local onde nossas boas memórias nos façam companhia. Porque é isso que resta para nós, de nós, no final: as memórias. Agora, pense. Onde o seu irmão gostava de ficar?

Ela deu suspiro trêmulo, ponderando por um momento.

- Central Park. Ele adorava o lago e as árvores. Especialmente sentar nos bancos do The Mall e ficar comentando das pessoas que passavam - Ela sorriu com a memória.

- Então o que você está esperando? - Eu falei, levantando-me em um pulo. Ela reergueu-se com a dificuldade de alguém com pernas fracas.

E começou a andar na direção errada.

- A saída é para lá - Eu apontei.

- Eu sei. - Eu a segui, andando por aquele corredor familiar, até ela parar em frente a uma lápide conhecida.

Bryan Odeal. 1970-1988.
Um bom rapaz.

Eu queria matar a alma penada que inscreveu isso na minha lápide, mas infelizmente nunca descobri o culpado.

Amy tirou a última florsinha do bolso e colocou perto da inscrição. Depois levantou-se, sorrindo.

- Obrigado. - Eu retribuí o sorriso.

- Obrigada você.

Mas esse não era o tempo de flores e abraços. Nós tínhamos menos de duas horas para a meia noite, e meia Manhattan para andar. Eu e Amy voamos pelas ruas, fazendo o caminho reverso ao que tínhamos percorrido antes.

Chegando no metrô, até que estava vazio, mas o trem demorou uma eternidade para parar na estação. Amy estava tentando recuperar o fôlego perdido no assento ao meu lado.

- Com licença, o senhor sabe que horas são? - Ela perguntou a um cara engravatado sentado à nossa frente. Ele olhou para o relógio no pulso e disse:

- 22:59.

Droga.

- A gente vai chagar à tempo - Eu tentei tranquilizá-la.

Mas não surtiu efeito nenhum, porque:

- Junto com seus poderes de fantasma também vem a habilidade de prever o futuro? - Ela estava me olhando com o canto do olho, um sorrisinho bobo brincando nos lábios.

- Por que você é sempre tão mal educada, einh?

Ela murchou um pouco.

- Não é culpa minha se você não entende minhas piadas.

- Não é culpa minha se elas são péssimas. - Eu disse, mas nós acabamos rindo juntos. Algumas cabeças viraram para olhar a moça rindo sozinha, mas ela nem parecia perceber. Que menina besta, meu Deus. Mas tinha um bom coração.

- Vamos, já estamos chegando - Ela se levantou, pronta para mais uma fuga ligeira através da multidão.

E que multidão. Ao que parecia, toda aquela gente tinha migrado da Times Square para cá. Desde o momento em que passamos a estátua do Velho Shakespeare, a calçada larga do The Mall estava lotada de gente. Debaixo das árvores, que se entrelaçavam como dedos das mãos, as pessoas andavam, dançavam, corriam, em um sentido único à frente.

- E aí? Está vendo alguma coisa? - Eu perguntei, conforme andávamos em meio à multidão. Na meia-luz, as lanternas do parque faziam o possível para afastar a escuridão. A cabeça dela virava para um lado e para outro, mas seus olhos atentos não achavam o que queriam. Até que chegamos ao centro da comoção.

Em cima do palco da Naumburg Bandshell, havia gente, cabos e caixas de som. Estavam se preparando para iniciar a transmissão de algo nos telões, algo que toda essa gente tinha vindo para cá assistir.

Amy estava inconsolável. Tínhamos andado pela extensão da passarela toda, e nem sinal do foragido Enzo. As lágrimas voltaram a escorrer dos olhos, uma a uma sumindo pela gola no pescoço.

- Eu pensei... é que...

- Você ainda tem mais algum tempo, Amy. Vamos continuar a procurar.

Mas ela estava balançando a cabeça, negando com toda a veemência que podia.

- Tinha que ser aqui, tinha...

Foi nesse momento em que as luzes se acenderam e uma projeção muito antiga começou a passar no telão. Era o filminho de Thriller, dele mesmo, Michael Jackson, que eu não via desde 1986.

- Será que todas essas pessoas vieram aqui para isso? - Ela quis saber, desdenhosa.

Eu achei aquilo tudo muito legal. Estava sorrindo, apesar de tudo.

- Vem, vamos sentar ali - Apontei para um banquinho perto o suficiente para vermos o show, mas vazio o bastante para evitar uma conversa aos gritos. - Eu sei que você vai odiar ouvir isso, mas um ano passa rápido. Se você quiser, eu te ajudo a procurar seu irmão de novo. Podemos ir em todos os locais onde ele iria querer estar, todos os anos a partir de hoje. Tempo nós temos de sobra... se você topar.

Ela baixou o olhar para os sapatos.

- Um favor em troca de outro.

Levantei uma sobrancelha.

- Já pensou que talvez o seu assunto pendente não seja o show do Michael Jackson? - Ela perguntou. E encarei isso como uma espécie de oferta da ajuda que ela tinha me negado antes. O problema era que eu não sabia mais se queria.

- Se não for isso, não tenho ideia do que seja. - E não tinha mesmo - Tanto que desisti de procurar, então não se preocupe com isso. - Olhei para frente. Para o barulho do show que começava nos telões, a multidão semi-fantasiada que tentava fazer o 'moonwalk' e falhava.

- Vem - Eu levantei, andando mais para perto deles e puxando Amy comigo.

Ela era uma dançarina horrível, o que tornava tudo mais engraçado. Eu gargalhei quando ela me olhava com cara feia; depois de seus pés confusos darem um nó e ela quase cair para frente.

- A gente vai dar um jeito... Nem que tenhamos que procurar pelo resto da eternidade. - Eu falei, e ela sorriu, assentindo. Não conseguia parar de olhar naqueles olhos castanhos que me viam, me olhavam como se eu fosse mais vivo agora do que jamais estive. E eu soube. Eles estavam refletindo a luz colorida das telas, piscando devagar quando...

Desviei-os meio centímetro. Para o cara de jaqueta de couro virado de costas. Igualzinho a mim. Amy seguiu meu olhar, virando-se lentamente. Enfiou as mãos trêmulas nos bolsos, andando lentamente até o rapaz e dizendo:

- ...Enzo? É você?

Ele se virou e sorriu. Ela tentou abraçá-lo, mas tudo o que encontrou foi ar. Sua voz trêmula estava falando rápido. Dizendo o quanto estava arrependida, o quanto sentia sua falta, o quanto era grata por ter um irmão como ele, bondoso, sincero; enquanto ela não passava de uma irmã ingrata e má...

As feições do rapaz não se alteraram, permaneceram pacíficas, abertas e ternas. Ele era a manifestação incorpórea da calma e da paciência. Quando ela finalmente se calou, disse:

- "O mundo não se divide em pessoas boas e más. Todos temos luz e trevas dentro de nós. O que importa é o lado com o qual escolhemos agir". - Ele citou, causando a queda de mais uma leva de lágrimas - Portanto, ursinha Amy, escolha bem.

E, com um último sorriso, sua imaterialidade se tornou cada vez mais impalpável, até que tudo o que restaram dele foram essas palavras. Amy ajoelhou no chão, naquela posição conhecida com as mãos no rosto. Ajoelhei em frente a ela, um pedido silencioso de que ela olhasse para mim. Ela o fez.

- Obrigada - Ela grunhiu. - Vai ser difícil seguir em frente sem ele aqui. Muito mesmo. Mas ao menos eu pude me desculpar e me despedir. - Ela fungou, limpando os olhos com as costas da mão - Agora eu tenho, tipo, uma dívida eterna com você, Bryan. Que saco.

Não era uma pergunta, mas eu já sabia a resposta:

- Sabe, você estava certa. O meu assunto pendente não era especificamente o show do Michael Jackson; mas encontrar a pessoa pela qual fiquei tanto tempo esperando. Você, ursinha Amy. - Eu sorri, exagerando as últimas palavras. Será que ela realmente achou que eu ia deixar essa passar? Acho que não, porque gargalhou, em meio às lágrimas. - Considere sua dívida paga.

Eu me levantei. E comecei a me afastar.

- A gente se vê por aí - Ela assentiu, ainda sorrindo, entristecida.

Foram minhas últimas palavras antes de ir.

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