Histórias Para Gaivota Dormir

Von MarceloQuinaz

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Dez histórias de pessoas, interligadas ou não, unidas por um fato, a cidade em que vivem. Mehr

0 - Oi
2 - Lembrança é um prato que se come à tarde
3 - Crime sem castigo
4 - Aquarela
5 - Correio Elegante do Século XXI
6 - N.J.L.
7 - Expectativa
8 - Promessas de ano novo
9 - Realidade
10 - Noite Feliz (ou nem tanto...)

1 - O Piano

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Von MarceloQuinaz

Chego na casa de Matheus por volta das nove da manhã. Ele havia me ligado às sete. Obviamente eu não estava acordada. É sábado! Ele não quis dizer o que era na mensagem, só que era importante. Cumprimento o porteiro e entro. Seu casarão gigante. Herança na sua família há muitos anos. Dou bom dia para dona Andreia e para o senhor Lionel e pergunto aonde o Matheus está. No porão. Que estranho. Ele nunca vai lá. Eu até tinha esquecido que a casa possuía um.

— Finalmente! Eu já estava morrendo de ansiedade — ele diz, assim que entro pela porta.

— Pode me explicar por que você estava acordado às sete da manhã num sábado? Tem alguma prova que eu não sei?

— Que mané prova, nós estamos no começo do bimestre ainda. Enfim, querida amiga Luana, apresento-lhe o magnífico Maurício! Nome criado por mim — um piano. Ele tinha me feito acordar às nove de um sábado por causa de um piano!

— Não acredito que era só isso. Meu Deus.

— Só isso?! Só isso?! Lu, isso é uma preciosidade! Olha a pintura, o som — ele toca uma tecla aleatória. Aparentemente, o que o piano tinha de bonito, tinha de desafinado — Precisa de uns leves ajustes, mas está muito bom!

— Sim, sim. Posso saber, então, por que você me chamou aqui? Porque eu não sei tocar piano e, que eu saiba, nem você.

— Ora, porque você é minha melhor amiga e eu quero que você me acompanhe nessa incrível jornada. Nós vamos arrumar o Maurício.

— Nós vamos?

— Claro!

— Hum, ok. Já tô aqui mesmo. Você sabe consertar um piano mais velho que você?

— Óbvio que não

— Matheus... Acho que o resultado de zero mais zero você já sabe.

— Nós vamos chamar alguém pra consertar. Eu consegui o número de um cara que cobra mais ou menos, mas minha mesada consegue cobrir.

— Ainda não entendi o porquê de eu estar aqui.

— Pra me acompanhar. Nós somos melhores amigos. E não é como se eu não soubesse que sua agenda de hoje seria ver TV.

Um moço estranho de terno chega umas duas horas depois — quase uma hora depois do combinado —, falando sobre sua avó e seus saudosos tempos no Vietnã. Aquilo tudo começa a me deixar muito apreensiva, então o convido para olhar o piano.

— Nossa, esse realmente é um modelo bem antigo.

— Pois é, né? — diz Matheus, com um sorriso no rosto.

O homem abre o piano e encosta sua mão em meu ombro. Afasto-me educadamente, para não dar um chilique na casa dos outros, mas eu estava realmente incomodada com tudo aquilo.

— E aí, já sabe o que é?

— Bem... não tenho uma ideia clara ainda, mas creio que sejam nas cordas.

Ele fica mais uns bons minutos mexendo nas cordas do piano, até que, ao testar uma tecla, ela estava mais afinada e com pouco menos de som de um robô de trinta anos atrás.

— O que acha? — o homem olhou para nós. Matheus se aproximou do objeto e tentou tocar "Dó Ré Mi Fá". Estava péssimo — Caramba, deve estar na caixa de ressonância o problema. Vou precisar de mais umas boas horas para arrumar. Naturalmente, o preço aumentará.

— Poxa, mas aí sai do nosso orçamento — digo. Matheus me olha surpreso — Escuta, a gente te paga pela mão de obra de hoje e aí você volta outro dia. Matheus, entrega o combinado pra ele.

— Mas... — lanço um olhar repreendedor para ele — Vou pegar o dinheiro lá em cima.

O moço fica parado esperando. Olho-o, desconfiada. Tinha algo de estranho com esse homem.

— Ei — digo — Você é luthier mesmo?

— O quê?

— Perguntei se você realmente sabe consertar um piano.

— Claro que sei. Você acha que eu estou aqui para quê?

Ele começa a se aproximar, na mesma medida em que vou me afastando.

— Se eu estou aqui para arrumar um troço velho desses e ainda posso ver meninas bonitas, por que não?

— O quê?

— Eu notei o jeito que você ficou me olhando, garota. E como armou tudo para que pudéssemos ficar sozinhos, sem aquele garoto irritante.

— Como?

— Não precisa ficar tímida. Eu não mordo — ele começa a passar a mão pelo meu cabelo e, tudo que consigo fazer, é ficar estática. Eu já tinha chegado na parede. Sinto um frio subir pela minha barriga. Tudo que consigo dizer é.

— Para. Eu só tenho doze anos. É sério.

— Relaxa, eu sou bonzinho — ele passa o braço ao meu redor e começa a me puxar da parede. Depois, segura minhas mãos. Um sorriso no rosto. Ele começa a se aproximar demais. Tento soltar minhas mãos. Não consigo. Começo a me balançar e tento gritar. Minha voz não sai. Ele me puxa para um abraço e começa a passar a mão por trás dos meus cabelos. Num surto de força e coragem, empurro-o.

— Sai daqui! — grito — Sai! Sai!! SAAAAAAAAAAAAI!!!

Ele, que tinha escorregado e caído no chão, levanta-se assustado e começa a me pedir silêncio.

— Sai! Sai! Sai daqui, AGORA! — começo a jogar qualquer objeto que vejo em minha frente em sua direção. Só aí ele vai embora.

Sento no chão, com a cabeça entre as pernas, sem fôlego. Ainda não conseguia acreditar que tudo aquilo tinha acontecido. Eu queria gritar, chorar, correr e não queria nada disso ao mesmo tempo. Tudo que eu tinha força para fazer era ficar ali sentada, respirando forte e desejando estar em casa. Ouço Matheus descendo um tempo depois. Recomponho-me e arrumo as coisas que tinha jogado no chão. Quando ele chega no porão, só pergunta:

— Ué, para onde o moço foi?

— Ele tinha um... compromisso, não lembro. Fazer o quê? Pelo menos você fica com seu dinheiro.

— Poxa. Mas isso até que foi bom. Porque eu achei outra pessoa. Uma mulher que conserta pianos. Parece que é um nome renomado.

— Certo, vou subir para tomar um pouco de água.

— Tudo bem.

Quando volto ao porão, a mulher já estava lá. Parecia bem mais experiente no assunto que aquele cara nojento. Em dez minutos ela já tinha o "diagnóstico" do Maurício. Era a caixa de ressonância mesmo. Ia ficar muito caro. A mesada do Matheus não cobria. Subimos para falar com seus pais, ele iria pedir um adiantamento da mesada.

— Não — seu pai diz — Aquele piano já não funciona desde a época que eu era criança. Não vamos dar dinheiro para você jogar fora. E mais, você nem sabe tocar.

— Mas, pai, eu quero consertar ele justamente para isso!

— Seu pai já disse que não, Matheus. Deixe de ser desobediente. Não vai ajudar em nada num momento como esse.

— Eu odeio vocês! — Matheus sai correndo para seu quarto no segundo andar. Vou para lá também, depois de dispensar a moça do piano. Enquanto subo as escadas, ouço o pai do Matheus dizer "Isso é culpa sua, sabia?"

Encontro Matheus sentado em sua mesinha de estudos, brincando com uns cavalinhos de madeira.

— Tá tudo bem? — pergunto — Eu mandei a moça embora, ok?

— Tá — ele diz. Chego ao seu lado e pergunto novamente:

— Tudo bem, mesmo?

— Já falei que sim, Luana, que saco!

— Não precisa ser agressivo comigo. Eu só estou preocupada com você.

— Se está tão preocupada assim, se importa de me deixar sozinho?

— O quê?

— Luana, você, desde o primeiro minuto, não acreditou na minha aventura do piano, expulsou um cara que estava disposto a fazer tudo e agora está aqui fingindo amizade? Vai se danar!

— Escuta aqui, seu garoto mimado, eu não perdi o meu sábado inteiro pra você ficar surtando por causa de um piano, chegando ao ponto de ser assediada por um luthier asqueroso para ser tratada desse jeito! Você não é o único com problemas aqui, mas se não está a fim de compartilhar os seus comigo, pode deixar que eu vou embora, mas não volto também — viro em direção a porta, decidida. Eu não era obrigada a ficar aguentando desaforo. Poxa, por mais desanimada que eu estivesse com a ideia, eu tinha ficado o dia todo com ele em função do piano.

— Lu, espera! — ele diz — Desculpa, de verdade. Eu não quis ser grosseiro com você. Sério. Perdão.

— Tudo bem, Matheus — viro de volta para ele — Pode me dizer o que te deixou tão irritado ao ponto de você gritar comigo?

— É complicado — ele se deita na cama. Deito ao seu lado — Meus pais estão se divorciando. E eles estão brigando por causa disso. E por causa da minha guarda. E também tem a questão do meu irmão, mais nova irmã, que contou para nós semana passada que tinha se descoberto como uma mulher. Isso tudo está sendo um monte de informação em muito pouco tempo e, sei lá, acho que eu só queria focar em algo mais. E eu até gosto de piano.

— Eu nunca vi você falando de piano uma vez sequer — rio.

— É, você tem razão. Eu não faço a menor ideia do que é uma caixa de ressonância — ele ri também — O que é um Luthier? — ele pergunta depois de um tempo.

— Quem conserta piano.

— Ah, tá. Espera. O quê? — ele se levanta — Aquele cara, ele...? — confirmo — Desgraçado.

— Pois é.

— O que ele te fez? Você quer conversar?

— Hum, não. Acho que não. Não me sinto confortável.

— Ok. Desculpa.

— Não foi sua culpa.

— Me sinto mal do mesmo jeito.

— O que está rolando com seus pais? Você quer conversar?

— Eles disseram que não são mais compatíveis. Que se conheceram no ensino médio, que se amaram muito mas que, hoje em dia, não se sentem mais assim.

— Sinto muito.

— Mas você não tem nada a ver.

— ...

— Entendi.

Ficamos assim, deitados, um do lado do outro, pensando. Quando já é fim da tarde, preciso ir embora. Ele me acompanha até o portão. Chegando lá, nos abraçamos e eu digo:

— Você sabe que pode confiar em mim, né? Pra tudo.

— Sei.

Sigo na direção do portão.

— Lu — ele me chama. Viro-me — Te amo.

— Eu também te amo, Mat — sorrio.

Despeço-me do porteiro e volto para casa.

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