Minha sombra em suas mãos

By Heartagrama

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Jiang Xi está morrendo. Ou é isso que Xue Meng pensa quando, durante a reunião anual das seitas, ele encontra... More

Lágrimas do dragão
Só uma palavra me devora...
Pétalas de bem-me-quer(arranque pedaços de mim)
Alma Profana
Enquanto o amor não vem
Coração Perdido na Neve
Pegue as lágrimas que ninguém chorou por você
Eu nunca plantei flores, mas se o fizesse, eu as chamaria pelo teu nome

Anátema

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By Heartagrama

Há um homem tocando um violino, 

cujas cordas são os nervos do próprio braço...

O corvo - James O'Barr

*****

Gu YueYe era uma seita antiga, que se erguia imponente, flutuando em uma ilha em alto mar. Era possível ouvir o gorjear de aves marítimas à procura de peixes ou simplesmente sobrevoando, cortando o céu em busca de alguma terra de ninguém. Muitas poderiam parar na vegetação que cobria parte das rochas que era parte do relevo da ilha.

Claro que todos sabiam que na verdade, aquela vegetação encantada e carregada de poder de cura, e que fazia qualquer indivíduo moribundo sentir-se pleno apenas com a mudança de ar, crescia às costas da grande tartaruga lendária que fez um acordo com o fundador de Gu YueYe. Portanto, se o sangue chama sangue, a vida chama vida, e por isso aves e borboletas ficavam mais do que felizes em permanecer ali mais do que um período de repouso. A ilha não era apenas um grande refúgio de concentrada energia de cultivação, era a própria criatura mítica, tão viva quanto as pessoas que por ali caminhavam dia após dia.

Eles estavam vivos. Mas a que preço? Em quais circunstâncias? A dor era só um espinho na carne ou era uma tortura pelos erros cometidos e nunca consertados?

Jiang Xi não tinha tempo e nem queria fazer uma reflexão pouco eficaz sobre frivolidades humanas. Ele não tinha tempo para pensar. E não deveria estar pensando. Não naquele local. Naquela câmara em particular. Com aquela pessoa, de todas as outras.

O preço de uma maldição e uma dívida de sangue. Esses eram os laços que os uniam.

Os olhos não eram os mesmos. Nem poderiam. Olhos que não estavam mais no plano material e que possivelmente ainda o assombrariam por algum tempo. Talvez para sempre.

Mas naquele momento, ambos pares de olhos, um mais conhecido do que o outro, eram na verdade apenas parte de lembranças amargas como um tratamento para o fígado.

Lembranças mornas e quase ingênuas que se perderam no caminho.

Eles se moveriam conforme as instruções do pergaminho. Técnicas ancestrais passadas a tanto tempo e cultivadas com supremacia pelos sábios.

Jiang Xi nunca balançou. Nem uma única vez. Nem antes. E nem agora. Na verdade, esse era o segredo do sucesso da técnica. Aproveite os benefícios da medicina, mas seja prudente.

O amor é para os tolos. E o romance era apenas uma armadilha para os insensatos.

Se a distância que separa um herói de um tolo é da espessura de um fio de cabelo, a distância que separa amor e ódio é menor ainda. E a que separa cultivo duplo de sentimentos torturantes talvez seja uma fração de todo o restante.

Veneno e antídoto. Muitas vezes produto e subproduto um do outro. Do veneno se extrai o antídoto. O antídoto também pode ter efeitos colaterais, e tornar-se um veneno.

As beberagens mais eficientes eram amargas. O cultivo duplo parece suave... prazeroso a quem se liga neste tipo de circunstância. Mas também poderia ser tempestade e caos. Tão amargo... tão... tão terrivelmente amargo...

Amargos como a lembrança que Jiang Xi carregava. Olhos grandes, sem que precisasse de um delineado exagerado para esse efeito. Gentis e suaves. Um rosto que parecia constantemente corado. Uma mão que subiu, talvez para encontrar uma mecha caída e tirá-la de seu rosto.

Eu me viro e olho para a sala vazia: Por um momento eu quase acho que te vejo lá...

Eram apenas fragmentos de um poema antigo mas que pareciam tão apropriados para o momento...

As palavras ficaram presas na língua. Não havia nem mesmo uma faísca pálida.

Você não consegue me ver? Me sentir? Eu tenho lutado para chegar até você. Por que você não pode me amar?

Antes que ele pudesse ter palavras duras, no entanto, o olhar fugia, intimidado, dez mil arrependimentos em uma expressão silenciosa e sombria.

Não é o meu coração que é frio. Esse sentimento é que é um ninho vazio. Eu não posso fingir te amar. Isso vai fazer você sofrer.

E mesmo sem perceber, completamente despercebido, Jiang Xi podia sentir o sentimento no olhar se despedaçar, mas nunca se acabar.

"Você não pode sentir sua indiferença perfurando meu coração?"

As palavras ditas apenas com os olhos eram inconfundíveis. A técnica exigia concentração, então Jiang Xi apenas cerrou os olhos, jogando aquele diálogo mudo no fundo de sua consciência, sem saber que parte dele tinha entrado por alguma fresta não aparente, mas existente em seu coração.

Ele não perceberia até que fosse tarde obviamente, mas naquele momento ele apenas se impediu de procurar algo que não sentia, para não correr o risco de encontrar.

Quando me sento, meu coração está inquieto.

O que devo fazer para lhe contar todos os meus pensamentos?

(...)

Quando penso em todas as coisas que você fez por mim,

Como me envergonho de ter feito tão pouco por você!

(CH'IN CHIA)

As roupas estavam parcialmente no lugar. Ninguém ali estava com ideias absurdas. Mas o aroma floral misturado a ervas e terra úmida ainda tinha o poder de deixá-lo inquieto e desconfortável.

"Não faremos isso se o líder Jiang não estiver confortável." Respondeu a pessoa à sua frente.

Não havia sorriso nem escárnio na boca bem desenhada. E os olhos estavam fechados, mantendo a escuridão que era sua constante companheira, independente disso.

Não havia esforço no gesto, apenas resignação silenciosa. Uma linha branca horizontal, quase imperceptível na altura dos olhos, deformava levemente a pele delicada, trazendo mais lembranças complicadas.

"Quem está perguntando sobre ser desconfortável? Os anos sob o sol queimaram suas células cerebrais? Um tratamento ainda é um tratamento, por mais desagradável que seja." Jiang Xi respondeu com uma pontada de desprezo.

Ele sabia que talvez fosse o seu melhor recurso, mas, no entanto, ainda se via relutante em aceitar isso.

Nem toda escolha era simples, e muitas vezes não havia nenhuma a ser feita.

Um paciente recusando um tratamento espinhoso movimentava seu coração de diferentes maneiras. Entre o medo genuíno ou uma pessoa fazendo teatro, ele sabia que, como médico, não devia se importar, e apenas garantir o mais humano tratamento, mesmo para aqueles que não são tão dolorosos. Infelizmente, Jiang Xi era um bom médico, mas talvez não tão bom humano assim.

Adiar algo, em tratamentos, significa prolongar o sofrimento. E não raramente, fazer o que tem que ser feito pode ser confundido com indelicadeza, mesmo pelas almas mais tolerantes.

Então ele não costumava perder muito tempo de sua preciosa paciência sendo generoso em tempo e em gentilezas tentando fazer uma pessoa tomar uma pílula de gosto intragável. Antes que seu paciente pudesse esbravejar pelo tratamento rude, ele estaria bem e seus discípulos entregando a nota com exatamente todos os custos calculados e uma receita escrita em uma caligrafia apressada e quase ilegível.

Nem no passado e nem no presente Jiang Xi conseguia ser bom com palavras. E esse rosto em particular despertava tudo o qual ele queria esquecer. Suas culpas. Suas dívidas. Seus remorsos.

Wang Chuqing. Hua BiNan. Xue Meng.

O rapaz mais jovem, apenas se levantou do leito, ajeitando a parte desfeita de suas vestes verde-escuro. Eram roupas simples que cheirava a sabão neutro e ervas. Limpo, mas sem nenhum requinte.

Ao levantar-se, ele pegou um pedaço de linho branco que estava dobrado sobre a mesa de mogno ao lado do leito. Ele não se preocupou muito em arrumar os cabelos que desciam lisos e sedosos pelas costas, antes de amarrar o tecido sobre os olhos.

Shi Mingjing era uma figura que destoava totalmente do ambiente luxuoso ao redor, sua aparência ficando ainda mais grotesca após colocar sobre a cabeça um véu de bambu gasto, com um véu escuro cobrindo o chapéu, também limpo, mas já manchado pelo tempo de uso.

Ele não cobria mais o rosto. A venda sobre os olhos era suficiente para que todos soubessem quem ele era.

A Mão Santa de Gu YueYe.

"Eu não disse que poderia sair." Disse Jiang Xi, interrompendo seus devaneios e falando com um tom desagradável. Ele demorou um pouco para estudar os gestos do outro, embora não estivesse reclamando por adiar, mais uma vez a sessão de cultivo duplo. Ele não podia dizer que tinha pressa em se submeter a tal tratamento. Embora fosse uma solução mais rápida, ele poderia obter o mesmo com as pílulas. Aquelas pílulas.

O problema é que sempre que chegava a esse cômodo, sempre que chegava perto de estar o mais próximo de outra pessoa, de qualquer contato de pele seu corpo ficava imóvel.

Você consegue me enxergar? Você consegue perceber quem eu sou?

Jiang Xi não era uma pessoa simplória. Na verdade, desde sempre ele foi exatamente a antítese disso, nunca conhecendo o desprezo. Como um autêntico querido dos céus, ele nasceu em berço de ouro, abençoado com beleza, talento e contatos.

Verdadeiramente abençoado, ele foi agraciado com um coração relativamente frio.

Ele nunca subestimou sua própria importância para o mundo, a grande mão dos negócios e o pilar que abastece e satisfaz os bastidores sombrios dos nobres.

Jiang Xi não tinha medo de parecer uma escória, porque sabia que se encontrava muito acima disso. A tolice da humanidade vinha do fato da idiotice estar distribuída de forma muito democrática no mundo.

Sua riqueza cresceu a partir da inteligência e seriedade de usar bem o que lhe foi dado sem pedir.

Ele não escolheu nascer em Gu YueYe. Mas nasceu. Ele não escolheu ter a aparência de um imortal. Mas tinha. Ele não escolheu ser talentoso. Mas era. Ele não escolheu estar acima dos outros na cadeia de existência. Mas estava. E ele também não escolheu que as pessoas frívolas o amassem por sintomas de uma doença tola, ainda sem cura. E muito menos tinha culpa se queriam lhe pagar tão somente por existir.

Não havia debaixo do céu, uma seita que se comparasse a Gu YueYe, e ninguém que se comparasse a Jiang Xi.

Mesmo aqueles que se mantiveram à sombra do fracasso, apenas remoendo o desafiador sucesso e prosperidade que Gu YueYe alcançou sob sua liderança, sabiam que por trás dos olhos suaves, da boca bem desenhada e da ponte elegante do nariz, do cabelo macio que deslizava como seda, preso em grampos de jade e prata filigranada, com trajes de seda verde-escuro que realçava sua pele requintada que não conhecia o beijo do sol, fios de ouro entrelaçados em jóias costuradas à mão, de onde pendia uma mão suave, com uma marca de cinábrio estilizando o pulso delgado antes de encontrar uma palma delicada e dedos finos segurando um longo cachimbo de água, escondia a inteligência e a astúcia do imperador celestial.

Não era uma simples questão de facilidade. Essa palavra era empregada apenas por pessoas medíocres e fracassadas, incapazes de reconhecer o esforço alheio. Os oceanos são profundos, mas existem muitas pessoas superficiais... rasas demais para fazer Jiang Xi despertar algum interesse pela humanidade.

Ele era, antes de tudo, um homem de negócios e um pesquisador. Partes que andavam lado a lado para quem almeja chegar ao topo.

Talvez ele tenha tido alguns atalhos na vida, mas isso não significa que ele não apreciasse o esforço inteligente. Mas isso ainda o deixava longe de querer relações estreitas além das impostas pelo sangue.

Havia muitas pessoas no mundo, e com esse excesso multiplicava-se a pobreza, a fome, as doenças... Ele tinha desistido de tentar ensinar as pessoas no passado que elas não viviam, e sim sobreviviam no mundo, e que a calamidade no mundo talvez tivesse algum equilíbrio no mundo se houvesse menos pessoas.

No passado, suas palavras de discurso feroz foram ignoradas por quase todos, afinal ele era apenas um jovem bonito e espirituoso. No futuro, alguém estaria atento a elas, pesando em uma balança de precisão não apenas suas palavras, e não apenas as vidas de GuYueYe, mas de toda uma população.

No passado, ele pensava em controle de natalidade, mas alguém pensou em um massacre.

E, no entanto...

Poucas pessoas conseguiram um segundo olhar de Jiang Xi. Menos pessoas conseguiram um pensamento deliberado. Mas se havia algo raro de se conseguir de Jiang Xi, era indulgência ou reconhecimento genuíno.

Ele não confiava nas listas da mansão dos Jardins das Flores de Pêssego. Apreço era uma palavra formidável e inexistente no vocabulário de Jiang Xi por muito tempo.

Ele tinha pais, é claro. Um Shizun. O antigo líder da seita. Eles eram o mais próximo de afeto genuíno que ele conseguiu manifestar. Teve um Shizun e um antigo líder de seita próximo. Eram relações não escolhidas, apenas resignadas de certa forma. Ele não era um mau filho, mas também não era o mais afetuoso. A seu favor ele tinha que seus pais também não eram figuras expansivas... como... Xue Zhengyong, mas esta pessoa também não era exatamente o melhor modelo de pai inspirador a julgar como aquela criança cresceu completamente estragada.

Claro que analisando suas palavras... talvez... por uma ironia do destino muito grande ele possa... talvez... ter se arrependido de algumas palavras lançadas ao vento...

Ele sempre pareceu entendê-lo tão bem...

Com Chuqing ele não conseguia deixar de ser cauteloso, e mesmo que o tato não fosse sua melhor virtude, ele tentou cuidar dela da forma como sabia. Nunca foram as palavras doces e preocupadas de um amante, que reproduzia as falas macias decoradas de poemas ociosos e romances que eram como veneno no coração dos mais imprudentes, mas eram, a seu modo genuínas.

Mas... se alguém poderia entender e até mesmo apoiar seu ponto de vista, esse alguém ele. Aquela pessoa.

"Por que seus ferimentos são tão graves???"

Ele perguntou isso uma vez, mas a resposta nunca veio.

Uma vez um véu e um chapéu de bambu menos gasto escondeu um rosto bonito que fingia ser deformado.

Pertenciam a uma pessoa que vivia para curar as pessoas, mas odiava que lhe tocassem. Em muitas ocasiões, essa fobia parecia estar muito próxima ao nojo, como se a humanidade fosse de alguma forma repulsiva.

Jiang Xi não falava nada, mas compartilhava algumas opiniões, já que suas necessidades de contato humano eram praticamente inexistentes também, e por algum tempo, Jiang Xi pensou ter encontrado um igual.

Pensando bem, no passado, o jovem Jiang Xi tinha algumas aspirações e ambições. Muitas delas alcançadas, mas algumas ainda permaneciam no pensamento, sem realização contudo. E essa pessoa... esse homem tinha se colocado ao seu lado, com plena liberdade, sem ligar para suas ambições, sem bajulá-lo, mas que os êxitos sempre certeiros sob o emblema de Gu YueYe, ajudaram a consolidar e levar sua seita a um novo patamar como seita de cura. E isso, mesmo que não tenha sido a intenção, ou assim Jiang Xi pensava, foi mais útil do que muitas alianças e negócios fechados com outras seitas.

É claro, o mercado negro sempre teve um alimentador oficial, mas sob a liderança de Jiang Xi e a mão com sangue dourado, os pilares fixos viraram fortalezas no submundo da nobreza.

Mas não era somente isso.

Como um médico dedicado e uma ciência no coração, Jiang Xi se preocupava em tirar a dor e o sofrimento. Alivie o fardo da humanidade através da cura do corpo e da mente.

Se há uma doença, apenas encontre a cura e a ofereça.

Jiang Xi disfarçava bem, mas tinha alguma curiosidade escondida.

Porque a humanidade ainda insistia, em beber o veneno sem antídoto que era a raiz dos mais diversos males do mundo?

Hua BiNan nunca pareceu se interessar por essa ciência em particular, mesmo que tenha sido ele a produzir a melhor "Pílulas do Amor", completamente refinada que era capaz de induzir até dez anos de afeto e um dos itens mais cobiçados do Pavilhão XuanYuan.

Quantas pessoas não pagavam pelas pílulas do "Afeto Obsessivo" comuns por apenas alguns momentos efêmeros ao lado do objeto de seu afeto? Quanto o Mercado ChangYe não faturava com as aventuras de pessoas que procuravam desesperadamente através de ilusões que alimentavam suas concupiscências diminuírem o anseio de se sentirem solitárias? Ou de idealizar um modelo específico de fantasia?

Hua BiNan sempre surpreendeu Jiang Xi. Mas o contrário nunca havia acontecido.

Claro que o primeiro encontro tinha sido apenas um negócio, e apesar da aparência repulsiva por trás do véu, do cultivo aparentemente medíocre, parecia haver mais por trás de todo aquele manto de mistério de um homem que resolveu se isolar do mundo em uma montanha.

Algo em seus olhos no primeiro encontro, mostraram que ele não se surpreendia com sua visita... pela primeira vez o emblema de Gu YueYe não havia gerado uma comoção e isso despertou a atenção de Jiang Xi.

Não havia admiração, temor, nem mesmo uma sombra de interesse em sua aparência bonita naqueles olhos que se estivessem em outro rosto poderiam ser quase hipnóticos de tão bonitos.

Olhos bonitos não moviam Jiang Xi, mas os de Hua BiNan eram expressivamente frios. Não havia a emoção característica da humanidade, nem mesmo empolgação. Não deixava de ser intrigante à sua maneira. Mas se os olhos não diziam nada, o raciocínio ágil e brilhante e as mãos habilidosas diziam muito. Antes de Jiang Xi encontrá-lo, as pessoas tratadas eram unânimes em dizer que era um curandeiro rápido em seu diagnóstico e eficiente em curar. Mesmo aqueles que tinham suas dúvidas ao encontrar um homem frágil, se rendiam aos resultados obtidos e não hesitavam em indicá-los a amigos doentes.

Talvez ele tivesse um núcleo destruído, ou danificado como o de Chuqing... talvez um sentimento conturbado que deixou um coração em chamas... destruído e descrente da humanidade... Jiang Xi sempre o considerou valioso pela sabedoria e conhecimento, e inteligente por não se deixar envolver em amarras sentimentais, então nunca perdeu muito tempo pensando nas possibilidades... mas nunca lhe ocorreu que Hua BiNan era um remanescente do incidente que era a vergonha de seus ancestrais. E da sua própria, quando decidiu que deveria leiloar a última Beleza que se encontrava sob o poder de Gu YueYe.

Um pecado nunca esquecido.

Sua relação com Hua BiNan sempre foi indiferente. Eles eram colaboradores mútuos, ocasionalmente conversavam, e para quem observasse de fora eram talvez quase como amigos, mas nunca houve trocas de confidências profundas além da medicina. Ambos compartilhavam ciência, até mesmo a paixão pela medicina, mas não a vida.

Nenhum deles deixou mágoas escaparem mesmo que respirassem resquícios de dores antigas. Hua BiNan nunca deixou transparecer o ódio que sentia pela seita médica que usou a vida de pessoas do seu clã como incubadoras e como um medicamento nobre, destinados àqueles que podiam pagar muito para viver bem e mais, e nem mesmo o desprezo pelo sumo-senhor que ousou leiloar a única pessoa viva do clã das Belezas que permaneceu em sua seita, sem se importar com o destino dela.

A vida de um inocente sendo tirada para que outros pudessem permanecer eternamente jovens e vigorosos ou pelo menos vivos...

Jiang Xi também nunca deixou transparecer que sua aversão a relacionamentos piorou depois da fuga de Chuqing, alimentando seu pensamento de que homens são lascivos e as mulheres, mesmo as gentis e de boa família, não são confiáveis. Baixando a guarda, com Hua BiNan ele esteve um passo mais próximo da confiança do que jamais esteve de outro ser humano, talvez por conseguir visualizar semelhanças no mesmo barro em que foram moldados. O conhecimento que apenas os anos podem trazer. Chuqing chegou a ver seu corpo, mas nunca sua alma. E isso era um demônio interno trancado, esquecido e nunca nomeado. Mas esquecer um demônio interno não significa exorcizá-lo.

No fim de tudo, restou apenas poeira, densa e sufocante. Fazia muito tempo desde que Jiang Xi achou que tinha o mundo em suas mãos. E nem tudo o que se perde ao amanhecer, se recupera no crepúsculo.

Shi Mingjing o encarava por trás do linho que cobria seus olhos. Não havia a indiferença fria mordaz de Hua BiNan e nem as palavras ácidas que eram como um repelente de pessoas mais eficaz do que seu rosto desfigurado.

Mas essa pessoa não estava desfigurada. E nem mesmo era uma pessoa medíocre.

"Se o líder Jiang precisar, ainda tenho pílulas do último lote produzido." Shi Mingjing falou com ele de forma respeitosa. Ainda era estranho para Jiang Xi ver um pouco de humildade na voz de Hua BiNan.

Não que Hua BiNan deixasse transparecer qualquer emoção em sua voz. Ele era indiferente, e por isso qualquer nuance gentil demais ou preocupada demais causava algum asco no interior de Jiang Xi. Soava tão falso quanto os anos de Hua BiNan dedicados ao crescimento da seita.

Quanto mais alto se ergue a torre, mais alto é o prejuízo quando cai.

"Não preciso de nada. "Nem mesmo de cultivação dual.

"Com todo o respeito Líder Jiang. As 'pílulas da libertação' não podem fazer milagres fora do corpo. Deve tomá-las para equilibrar o fluxo de energia demoníaca em seu corpo..."

"Creio, que sou médico também. Não está me dando mais informações do que eu já não saiba." Zombou Jiang Xi. Ele nem mesmo havia removido o cinto de sua roupa. Seu manto farfalhava mesmo com os passos elegantes enquanto ele se dirigia até a janela do cômodo, empurrando-a com uma mão.

Os aposentos de cultivo do líder da seita eram luxuosos, com cores suaves, como se fosse um quarto de primavera de uma casa de campo, mas com vista para o mar. A seda verde e creme das cortinas combinavam com a tapeçaria que cobria o chão e também com as pinturas de cores ricas na parede. O leito que eles tentaram estar juntos antes estava coberto por mantas suaves em cores neutras. Por ser em uma área afastada, longe de discípulos curiosos e olhares indiscretos, não havia necessidade de se incomodar com as janelas abertas. Não é como se a prática exigisse horas incontáveis, para que alguém se preocupasse com pequenos detalhes como uma janela, mas Jiang Xi não era qualquer pessoa.

Os discípulos que pareciam borboletas atrás de si em todos os ambientes que estivesse haviam sido dispensados, porque Jiang Xi não precisava de testemunhas em seus negócios, principalmente para este negócio, e é claro que sua disposição para pedir favores era limitada a zero. Mas Shi Mingjing se recusava a receber mais do que um lugar para dormir e refeições desde que voltara para Gu YueYe. No entanto, ele era muito solícito para pequenas tarefas como essa.

Antes que ele pudesse abrir a janela sozinho, Shi Mingjing já havia alcançado e puxado o ferrolho e aberto deixando o cheiro de maresia entrar para inebriá-los.

"Sei que o líder também é médico. E sei também que está ciente das restrições da pílula na sua condição. Embora seus efeitos sejam duradouros, não são perpétuos. Principalmente porque demora a tomá-las. Não deveria ser negligente em seu próprio cuidado. Principalmente depois que dispensou os cuidados de seu filho adotivo." Shi Mingjing fez uma pausa e pensou um pouco antes de continuar "Seu medo não se baseia na função que encerra, mas na vida que continua. Mas como espera estar forte para cuidar dele por tanto tempo, sem se cuidar antes?"

Jiang Xi pareceu incomodado com a conversa. "Quem está lhe perguntando? Cuide dos seus assuntos! Não está aqui para fazer suposições ou especulações. Se não há mudanças na fórmula, como espera que elas façam milagres? Hua BiNan a essa altura já teria feito mais progressos..."

A voz de Jiang Xi morreu ao pensar nessas palavras. Ele não estava especialmente preocupado com o fato de Shi Mingjing ter ficado tenso. Hua BiNan tinha sido o seu melhor médico, o melhor mestre de sua seita, mas para Jiang Xi, ele representava uma ofensa pessoal em nome e em lembrança. Não era a mesma pessoa à sua frente e no final das contas ainda era a mesma pessoa.

Ele sempre manteve os ouvidos atentos a rumores por mais remanescente que fossem sobre um médico solidário e talentoso. Um círculo vicioso que se repete, mas conhecendo a parte que separava a história de Shi Mingjing e Hua BiNan, ele sabia que o caminho de Shi Mingjing provavelmente seria o mesmo ou pelo menos parecido com o de Mo-Zongshi. Tentar sua redenção. Mas como um traidor nunca pode voltar ao lar, estava certo de que Shi Mingjing nunca pisaria novamente no Pico SiSheng.

Encontrar um médico andarilho, e que estava cego não deveria ser difícil, mas acabou levando mais tempo do que Jiang Xi previa.

Esse mesmo Shi Mingjing não voltou a Gu YueYe por nostalgia ou amor a medicina. Eles tinham dívidas entre si, que dinheiro nenhum poderia pagar.

Gu YueYe dizimou uma raça, a usou como experimento, tratando-os pior do que a porcos. Jiang Xi sabia que o canibalismo era censurado por muitos, mas em alguns povos bárbaros, um inimigo capturado ser devorado por uma tribo ainda era uma honra, pois estes acreditavam que a força vital do guerreiro seria absorvida ao consumi-lo.

De fato, era isso que acontecia em Gu YueYe, mas não por um sinal de honra e reconhecimento da força, mas por serem vistos como apenas um potencializador de energia vital. Quer fosse na forma de um aquecedor de leito ou na forma de suplemento alimentar.

Absolutamente nojento.

Jiang Xi havia destruído todas as fórmulas secretas proibidas que sua seita possuía, com o objetivo de nunca mais voltar a refinar produtos que dependiam de sangue humano ou meio humano. E para apagar de vez esse capítulo da existência de Gu yueYe até o ponto de quem sabe tornar-se apenas uma lenda com detalhes perdidos através das gerações ou em pergaminhos tão antigos que suas palavras puídas pelo tempo não seriam precisas, ele se desfez da única sobrevivente que voluntariamente ficou para trás.

Quem esperava que no futuro, aqueles a quem seus ancestrais haviam ferido seriam a sua única chance de cura? Ou que o homem em que esteve mais próximo de ter uma confiança amistosa o traiu não uma, mas duas vezes? E que na segunda vez, seu próprio sangue, espalhado como folha ao vento também sofreu com isso?

O preço de sangue foi cobrado com sangue. O preço da dor foi cobrado com dor. De sua seita. De si mesmo. E até de seu filho.

Jiang Xi desceria ao pó da terra ou ascenderia ao céu antes de reconhecer em alta voz que esse foi o grande motivo pelo qual ele foi atrás de Hua BiNan novamente.

Se o sangue cobrado fosse o seu estava tudo certo. Se fosse o de sua seita ainda seria justo. Mas o carma do sangue não poupou sua descendência, mesmo que nenhum dos dois soubesse disso.

O Pico SiSheng sofreu perdas severas, desde a sua reputação, passando pelos recursos e o mais valioso que eram as vidas. Mas quem viveu para consertar estava só. Xue Meng.

Mesmo não sendo o culpado de tudo, Jiang Xi não pode deixar de se sentir desconfortável. De se sentir culpado. Aquela criança mimada foi profanada no dia em que viu Xue Zhengyong morrer. Um braço quebrado e uma espada banhada em sangue. Jiang Xi era tão culpado daquele sangue inocente quanto Xue Meng. Até mais, porque tudo... todo o ódio, toda a mágoa, toda a dor de Hua BiNan começou em sua própria seita.

Ele não era covarde. Aceitaria o fardo com dignidade. Ou o que sobrou dela depois de tudo. Mas ele não podia pensar que se sua seita devia vidas ao clã das belezas dos ossos de borboleta, ele devia muito mais ao sangue que ele nunca reconheceu como seu.

Não era fácil olhar para Hua BiNan novamente. Não era fácil separá-lo de Shi Mingjing. Mas nada se comparava a dor de ver seu filho quebrado. Os gritos de dor, o desespero e as lágrimas de Xue Meng ainda assombravam seu sono.

"Você pode ir. Eu não o reconheço como pai."

Ir para onde? Se afundar em sua própria escuridão particular? Remoer seus próprios demônios e abrir o baú empoeirado que estava guardado no sótão de sua consciência apenas para descobrir que ele ainda sabia como sentir? Descobrir que ele ainda tinha um pouco de calor dentro de si, mas que agora estava mais frio do que as montanhas de Kunlun? Ou que doeu mais do que ele podia reconhecer a partida de Chuqing e a traição de Hua BiNan, por que não era apenas seu rosto magro sendo atingido, mas a constatação de que por duas vezes ele fracassou em seu empreendimento de construir algum tipo de relação, ainda que com poucos laços emocionais? Mas que isso nunca poderia se comparar ao frio que se apegou a seus ossos ao ouvir seu próprio sangue rejeitá-lo? Não. Mesmo frio... mesmo vazio... mesmo que a rejeição doesse até o âmago de sua alma, Jiang Xi não iria... não queria... não podia ir embora.

Em seus primeiros meses após a abertura do portão do reino demoníaco, lutar por sua própria vida era mais por culpa do que por altruísmo. Não foi ele quem levantou a mão e derramou o sangue, e mesmo que nada pudesse fazer, assistiu Xue Zhengyong e Wang Chuqing morrer. E os dois deram a vida pelo filho. Quem seria Jiang Xi se estivesse abaixo do sacrifício deles? Seria lembrado? Seria amado na morte? Ele não descobriria, por que precisava se manter vivo para fazer o que foi negado a ele por mais de duas décadas. O seu papel de pai. E como tal deveria cuidar dele e protegê-lo.

Ainda que fosse nas sombras, ainda que em uma balança desigual, ainda que talvez ele nunca fosse o suficiente, por mais força, dinheiro e posição que tivesse no mundo do cultivo. Xue Meng deixando isso claro a cada encontro. Com o orgulho ferido, como uma ave que foi ofendida, Jiang Xi só podia levantar o rosto, escondo a dor causada pelas palavras que entravam como agulhas em seu coração e exibir sua fortuna para tentar se sentir melhor.

Trazer Hua BiNan de volta foi para ter paz em sua própria consciência. E porque, junto a culpa, surgiu um desejo oculto, de ter, pelo menos um pouco daquela devoção filial de Xue Meng.

Jiang Xi respeitava o segredo de Chuqing e que agora também era o seu, mas principalmente o desejo de Xue Meng de não ser associado a ele, mas seria mentira se ele dissesse que nunca fantasiou em seus momentos de introspecção, a voz de Xue Meng, em diferentes nuances, chamando-o de pai, ou de ter uma sombra pequena, com pisadas fortes, farfalhando atrás dele em suas vestes verdes, exigindo uma espada como a sua.

Sua seita devia vidas ao clã de Hua BiNan. Hua BiNan devia vidas ao mundo todo. E mesmo o homem mais honrado do mundo sabia que a habilidade medicinal de Hua BiNan era superior. No passado a razão por trás de seu negócio com ele foi o crescimento de Gu YueYe. No presente, a razão de seu negócio era sua cura primeiramente, mas a longo prazo, fazer algo pela criança crescida que ele nunca pôde abraçar.

Alguns meses antes ele se ouviu dizendo para Shi Mingjing:

"Estamos pagando dívidas. Ou tentando aliviar o fardo delas. Não há como concertar ou recuperar vidas perdidas. Mas podemos curar as que ainda não se foram. Eu ofereço um lugar e recursos. E a proteção de Gu YueYe para que ninguém o mate. Esse é o meu pagamento de dívida com você. E você continuará a produzir medicamentos para curar pessoas. Essa é a sua forma de pagar sua dívida com as vidas que você tirou. Esculpir sua carne não fará melhor pelo mundo se estiver morto. Se quer fazer algo de útil para se redimir, esteja vivo para isso. Ou tenha mãos para fazê-lo." E mediante o silêncio do jovem que mantinha uma bandagem nos olhos ele continuou "Você não tem escolha."

Voltando ao presente, quando dívidas ainda existiam, Jiang Xi se recusou a consumir medicamento refinado com a carne de Shi Mingjing, embora não pudesse proibi-lo de arrancar a pele dos pulsos que viviam envoltos em bandagens.

Até que ele refinou o que chamou de "Pílula da Libertação". Diferente das "Pílulas Imortais de Gu YueYe" feitas com o a carne de uma , essa era feita apenas com o seu sangue. Não por acaso esse medicamento se chamava assim.

Jiang Xi sabia que havia mais por trás do uso do sangue que apenas a energia vital. Se isso fosse o suficiente no passado, muitas vidas poderiam ter sido poupadas. Os alquimistas de Gu YueYe antes de Hua BiNan não eram pessoas ignorantes de certos fatos, como a força diferenciada do sangue fresco e quente em comparação com a carne de um cadáver. E embora ele tivesse sua própria teoria, não iria questionar Shi Mingjing. Eles se deram um voto de confiança, ainda que fosse o sentimento mais longe que estavam de sentir um pelo outro.

"Seu sangue para salvar o meu sangue. E com isso estar eternamente em dívida com você?" Perguntou Jiang Xi estreitando os olhos para o outro. "Eu concordei com a prática medicinal executada nesse quarto, mas provavelmente isso foi fruto de uma alucinação passageira. Energia vital ainda é energia vital. Não há por que deduzir que um forno humano possa ser mais útil do que pílulas de sangue."

Shi Mingjing suspirou resignado. Eles já tinham tido aquela conversa antes. Isso não fazia a situação menos espinhosa. Tampouco ele se sentia bem com a possível ideia de tocar no sumo senhor. Mas a ideia que ele mesmo sugeriu foi baseada no ataque da doença de Jiang Xi, no dia anterior durante a visita de Xue Meng. Se Jiang Xi não fosse tão relutante com o uso das pílulas, já teriam feito mais progressos.

"Não há mais dívidas do que aquelas que já carregamos. Mas foi o líder Jiang quem foi atrás de mim. Não o contrário."

"O que oferecem nas aulas de etiqueta do Pico SiSheng para gerar cultivadores tão pouco respeitosos com seus anciões? A oferta de pagamento de Gu YueYe ainda está de pé, mas posso considerar dobrar o pagamento se isso o manterá calado."

"Como espera cuidar dele se não estiver bem de saúde?" Insistiu Shi Mei.

"Já disse que não é de sua maldita conta." Respondeu Jiang Xi com raiva. Ele virou as costas para o Hua BiNan uma geração mais jovem, buscando nas mangas o cachimbo de água. Desde que eles estiveram juntos durante os últimos meses, ele tentava não explodir ao olhar esse rosto maldito. Principalmente depois que ele...

"Não se preocupe. Seu segredo está seguro comigo." Sussurrou Shi Mei de forma leve. Não havia um único traço de ameaça. Apenas soava invasivo demais. "O Líder da Seita sabe, tão bem quanto eu o quanto sou bom em guardar segredos."

Ouvindo isso, Jiang Xi olhou rapidamente para Shi Mingjing, os dedos finos e delicados apertando o cachimbo com força, mas este já se afastava, completamente consciente do espaço, sem tropeçar, quase como se pudesse enxergar, deixando Jiang Xi sozinho com seus pensamentos turbulentos.

*****

Amanhecendo como um deus e morrendo como um mortal. A noite trazia mais do que escuridão.

Talvez por que Shi Mei viveu mais de uma vida de prantos, embora sem lágrimas

Jurando eternas mentiras e seguindo sempre sozinho.

Várias vidas... muitos mortos... tantos caminhos tortos....

Se os ventos do norte não podem mover moinhos, não significava que ele não poderia tentar mudar a própria sorte. Ou seu destino.

Shi Mei assumia seus pecados. E seguiria um caminho solitário de autoconhecimento, de auto cura e principalmente autopunição, como parte da sua penitência. Ou pelo menos assim Shi Mei pensou.

Como uma pessoa que passou a vida se escondendo, sua vida era um borrão de lembranças conturbadas que pareciam não ter forma.

Uma vez ele deixou um desconhecido familiar entrar em sua vida, saindo das sombras e lhe dizendo que havia luz. Parecia tão certo porque alguém lhe disse que havia esperança. Se ele não pudesse confiar em si mesmo, em quem mais poderia?

Quando foi que ele se perdeu? Não importava mais. Não quando mais importante do que ter luz é que ele conseguisse reunir algum pedaço de dignidade.

Embora toda a vida ele tenha se sentido desesperado e solitário, de alguma forma, bem no fundo ele desejou que alguém lhe enxergasse além do corpo, além dos olhos, e lhe dissesse que tudo ficaria bem. O sentimento que ele sentiu por Chu Wanning no passado veio da compaixão que ele demonstrou por criaturas que não precisava ver ou conhecer, mas sabia valerem mais do que os livros eram capazes de dizer.

"São humanos." Essa frase dita de forma tão categórica foi a reafirmação de que Shi Mei era uma pessoa. Porque ele precisava desesperadamente que alguém lhe dissesse isso. Que alguém tirasse o véu sombrio de seus olhos de duvidar de que ele era de fato humano. Mas isso não significava que ele estava pronto para confiar.

Com nove anos, ele já havia descoberto que mesmo o pai mais amoroso e compreensivo poderia ser traiçoeiro e destruidor. Sua vida era mais preciosa que a de sua companheira ou de sua descendência. Naquele dia sua alma morreu e seu corpo criou aversão pela humanidade.

Mas o caminho do desconfiado é triste e solitário. Mas essa solidão nunca incomodou tanto quanto no dia anterior, quando o antigo jovem mestre, e atual líder do Pico SiSheng descobriu que ele estava em Gu YueYe e não apenas vagando pelo mundo.

O estudo da luz e das sombras era importante. Ele nunca pensou em pintar antes... a difusão de borrões de luz misturados às sombras.

As lembranças de seu tempo como discípulo no Pico SiSheng nunca estiveram tão claras, e nem mesmo tão dolorosas. Porque era apenas isso que um cego poderia fazer. Ter lembranças de dias luminosos.

Shi Mingjing nunca gostou de claridade no quarto ao se deitar. Ele tinha uma janela simples no seu quarto de alojamento no Pico SiSheng... depois de viver na escuridão eterna, tendo seus próprios demônios a lhe atormentar, as luzes eram bem-vindas.

Céu e inferno dentro do corpo...sem pertencer a lugar nenhum...

As pessoas pareciam ignorar o fato de que o portão do reino demoníaco foi aberto e o que isso significava para qualquer descendente do clã DieGu Meiren Xi. Ele não era mais o mesmo Shi Mingjing.

A poderosa e densa energia demoníaca fluiu através do portão, e o seu sangue se fortaleceu durante a troca de energia entre os reinos...alimentado pela energia ...seu núcleo se desenvolveu, totalmente fortalecido, como se nunca em sua vida seu núcleo tivesse sido tão medíocre. Na verdade, atualmente ele tinha potencial para lutar por uma posição no mundo se assim quisesse. Mas viver na simplicidade e não procurar mais do que lhe foi ofertado era parte de sua penitência pessoal. Incluindo sua visão.

Mesmo com o núcleo desenvolvido, devido a sua pouca habilidade, ele não treinou de olhos vendados como Xue Meng e Mo Ran, precisando de mais tempo do que qualquer outro cultivador para se adaptar a sua nova condição. Não que fosse mais fácil, mas certamente seria diferente. Ele sempre esteve no escuro antes. Proibido de ser ele mesmo ou até mesmo de ser alguém, mas o treinamento do dao da medicina não era tão rigoroso quanto a privações de sentidos para fortalecer outros. No máximo ele usou para treinar seu olfato. Portanto, um núcleo desenvolvido ainda precisava ser treinado para ser realmente útil.

Lavar roupa, limpar o pó...mesmo com suas restrições sensoriais, não eram mais tarefas que representavam um grande problema. Ele já não cortava a ponta dos dedos ao descascar frutas e ele sabia quantos passos precisava dar para chegar a todos os lugares. Seus ouvidos poderiam facilmente distinguir algumas pessoas apenas pelo peso de seus passos.

Mas as cores estavam além do tecido que cobria seus olhos. O charme das manhãs de primavera e as folhas vermelhas se desprendendo no outono eram apenas uma lembrança, assim como as vozes felizes e embriagadas de seus companheiros com o rosto corado, refletindo o vermelho das festividades de ano novo ou as luzes e as cores dos festivais de colheita.

No passado, ninguém imaginaria que o calmo Shi Mei, era tranquilo como uma floresta, mas estava completamente em chamas por dentro. Queimou tanto que não sobrou nada além de cinzas ao vento, tão densa que era impossível ver o sol. O Shi Mei do presente não era exatamente resiliente ou tolerante, mas vivia em constante culpa.

A culpa pode movimentar as almas para um caminho de bondade, mas Shi Mei sabia que mesmo que sua culpa fosse genuína, assim como o seu desejo de redenção, havia um pouco de orgulho em sua própria penitência.

Shi Mei não era mais cego, mas continuava vivendo como se fosse. Lhe parecia lógico que se ele fez o mundo perder algo importante, que ele deveria perder algo igualmente importante.

No dia em que feriu seus olhos, Shi Mei sabia que não havia retorno. Mas com um novo núcleo, tendo cultivado plenamente a autocura e regeneração, seus olhos gradativamente se recuperaram mesmo que ele não tivesse a intenção. A vida de um cego era a de um pária. E todos sabiam disso. Humilhados, enganados, excluídos.

Quantas vezes ao receber frutas como pagamento por um tratamento, ele sentia os movimentos de seu próximo paciente eram furtivos ao esconder algo em suas vestes, mesmo que ele já tivesse ofertado algo anteriormente. Quantas vezes não devolveram seu troco certo ao comprar alimentos ou lhe deram alimentos velhos ou duros, mesmo que houvesse mais frescos para ofertar?

Shi Mei nunca reclamou. Nem mesmo brigou com algum dono de barraca de frutas, mesmo que agora ele tivesse força para fazer. O ciclo do karma deve ser cumprido se ele quisesse ter alguma paz em sua próxima vida. Sacrificar sua visão lhe parecia um preço muito justo por todo o mal que ele causou um dia em sua loucura cega.

Voltar a Gu YueYe era a premissa celestial de que aquilo que foi feito nesta terra, pagamos nesta terra. Gu Yuye pagou parte do preço de seu pecado. Agora era a vez dele.

Quando o líder Jiang apareceu em sua cabana dessa vez, não foi para lhe fazer uma proposta, mas para lhe fazer um ultimato.

"Você não tem escolha..."

Mas e quando Shi Mei teve? Mas não havia como dizer que as palavras amargas do líder Jiang não pesaram em seu coração. Eles tinham dívidas entre si, que em uma única existência não seriam capazes de pagar.

A convivência forçada trouxe o conhecimento de um problema, e de um segredo. Nos primeiros dias em que esteve em Gu YueYe, mesmo que rispidamente, o líder Jiang lhe convidada a tomar parte nas refeições junto com ele. Felizmente ele havia ultrapassado o estágio de comer com as mãos e conseguia manipular o kuaizi em uma tigela sem passar vergonha. Shi Mei não abria os olhos, e nunca saía sem a faixa cobrindo os olhos. Ninguém além dele mesmo sabia que ele havia recuperado a visão, até porque não precisava de olhos acusadores, lhe censurando por não querer usar seus olhos. Seus motivos eram unicamente e exclusivamente seus.

A princípio eles ficavam em silêncio. Com o tempo, o líder Jiang pareceu se interessar pela vida do atual líder Xue. Mesmo que isso causasse fisgadas agudas, como um espinho na carne, Shi Mei as respondia. Ele havia aprendido a detectar sentimentos com muito mais naturalidade pela voz. E Jiang Xi parecia cauteloso em suas perguntas, como se estudasse a melhor forma de perguntar de forma diplomática e não invasiva, como se fosse uma mera trivialidade, mas também havia ansiedade em seu tom de voz e a respiração ficava menos audível, como se ele parasse de respirar para não perder nenhuma palavra de sua resposta. A princípio, Shi Mei pensou que era um fruto da culpa por sua irmã mais velha ou pela injustiça ao qual o Pico SiSheng e seus integrantes foram submetidos, mas havia pressa em suas reflexões, e com o passar do tempo, Shi Mei notou que as perguntas seguiam um padrão sobre a vida, os gostos, as necessidades e aspirações de Xue Meng.

Shi Mei era perspicaz. Não foi difícil deduzir que mais segredos viram a luz durante os acontecimentos turbulentos envolvendo o Pico SiSheng. Além da aparência semelhante e do talento equiparáveis, o comportamento orgulhoso e o temperamento difícil do atual líder Xue era exatamente o mesmo do líder Jiang. Não precisou muito para fazer as contas e comparar datas e saber que havia mais segredos escondidos sob o casco da grande Xuanwu.

E foi em um desses diálogos suspeitos que ele percebeu o quão grave era a doença do líder Jiang.

"Como são as aulas no Pico SiSheng?" Começou O líder Jiang, sendo a imagem do refinamento mesmo enquanto comia "Um rapaz que alcança o primeiro lugar na Competição Da Montanha Espiritual sem o auxílio de uma arma sagrada é um feito notável. Chu-zongshi é um bom mestre."

Shi Mei guardava para si o fato que esteve ao lado de Xue Meng durante a competição. Todos viram, mas não podia negar que sua parcela de contribuição havia sido mínima e que a primeira escolha de Xue Meng naturalmente seria Mo Ran para as provas em dupla.

Lembrar daquele dia causava arrepios em Shi Mei. Os dois melhores discípulos de Chu Wanning de alguma forma se encontrando... Mesmo que Xue Meng deixasse pouco espaço para que ele sentisse algum tipo de afeição naquela época, não pode negar que ele desejou ter um pouco, apenas um pouco da confiança que ele demonstrava. No fim, foi apenas Nangong Si contra Xue Meng, com Shi Mei e Song Qiu Tong apenas cobrindo os buracos de suas duplas. Os dois eram iguais. No sangue e no pouco talento. Não havia como negar, que todo o mérito era de Xue Meng naquele dia. Long Cheng se provando tão eficaz em suas mãos que era comparável à antiga arma espiritual da seita Rufeng. E naquele dia Shi Mei sentiu uma grande inveja de Xue Meng.

Corrosivo e nocivo. Não por causa do reconhecimento que lhe era merecido. Mas porque lembrou tudo o que ele não tinha novamente, e com mais força. Xue Meng, de uma seita pequena, mesmo sem uma arma espiritual conseguiu chegar no topo. E tudo porque tinha pessoas que lhe apoiavam. Havia calor ao redor de Xue Meng e era isso que lembrava os rancores mais profundos da alma de Shi Mei.

O líder Xue Zhengyong cobria Xue Meng com seu orgulho e o protegia. Foi assim até o fim. Enquanto Shi Mei tinha apenas a lembrança bárbara de seu próprio pai mutilando sua mãe, desesperado por sua vida e não poupando nem mesmo o próprio sangue.

"São boas." Ele se ouviu responder. "Chu-zongshi é de fato um mestre admirável. O líder Xue sempre foi muito seguro de seus ideais. Versado em todos os vinte e quatro tópicos do amor filial."

As mãos do líder Jiang tremeram levemente ao ouvir falar sobre isso.

"Vocês eram muito próximos? Digo, na infância. O líder Xue parece ter sido uma criança... com opiniões fortes."

Shi Mei apenas analisou a pergunta enquanto manejava o kuaizi em sua tigela e mastigando um bolinho de carne, sem saber como deveria responder a uma pergunta tão pessoal. E sobre outra pessoa. Talvez o líder Jiang apenas estivesse procurando tópicos de conversa para que pudessem se entender, então, escolhendo cuidadosamente as palavras, resolveu ser honesto.

"O líder Xue sempre foi como a força da água e a intensidade do fogo."

Jiang Xi mastigava tão suavemente que era como se degustasse o alimento com a mesma precisão que processava a informação. Não havia nada que traísse suas emoções além do tremor que Shi Mei presenciou anteriormente.

"Entendo. Alguns alimentos ajudam a equilibrar os elementos. Como é..." No instante em que o líder Jiang queria perguntar sobre os gostos alimentares do outro líder, ele parou e fechou os olhos, respirando fundo. "Como são..." uma nova tentativa de fazer sua voz soar segura. "Desculpe... vou me retirar... muito condimento... me faz mal."

A comida estava equilibrada em sabor, chegando a ser leve demais para alguém que conviveu em Wushang. Os cozinheiros de Gu YueYe estavam entre os melhores e com certeza estavam cientes da alimentação de seu líder, o que tornava a situação suspeita. Shi Mei não questionaria a mudança de tom, e muito menos o fato do líder decidir se ausentar de sua própria sala de refeições, mas para ouvidos bem treinados como o seu era, não havia dúvidas. Era a falha de uma voz sufocada, de alguém tentando recuperar o fôlego. E a tosse que se seguiu era pegajosa, densa. Não havia dúvidas que era a tosse de uma pessoa enferma.

Ele ouviu rumores sobre a doença do líder Jiang, mas sua seita fez parecer que ele estava melhor depois de meses de reclusão. Shi Mei tinha suas dúvidas sobre o quão saudável o líder poderia estar. Ele ainda pagava sua penitência como um cego, então não havia visto o rosto de Jiang Xi, e nem mesmo tocou em seu pulso para saber como estava seu fluxo sanguíneo ou sua energia interna. Mas era experiente como curandeiro e sua habilidade aumentou depois que seu núcleo se fortaleceu.

Ele ouviu o líder Jiang fazer seu fluido movimento de puxar o cachimbo de água das vestes e começar a tragar, antes de sair do ambiente. Alguns discípulos o ajudaram a se recompor, mesmo que ele negasse a ajuda de qualquer pessoa encostando em si.

Horas mais tarde, em seus aposentos, Shi Mei escuta alguns discípulos mais ansiosos em compartilhar fofocas espalhando um para os outros que o líder Jiang havia chamado o melhor curandeiro de Gu YueYe em seus aposentos particulares.

Houve um dilema interno. Ele era um alquimista, mas não era mais um dos anciões de Gu YueYe. No passado, o líder Jiang chamaria Hua BiNan, mas não agora. Ajudar ou não ajudar? A quem ele poderia pedir conselho? Quem merecia morrer e quem merecia viver?

As regras do Pico SiSheng eram claras quanto ao caminho das virtudes. Seja corajoso, sincero, e nunca desvie do caminho da honestidade. Seja justo e defenda os inocentes, e todos aqueles que se encontram em perigo. Mesmo quando todos se voltaram contra eles, as pessoas do Pico SiSheng ainda se juntaram para defender aqueles que os acusaram. Se fosse Xue Zhengyong, Madame Wang, Mo Ran, Chu Wanning ou Xue Meng, não importava, todos ajudariam.

O filho desgarrado não esquece totalmente suas raízes. Sabendo que mesmo que ele tivesse saído do Pico SiSheng, o Pico SiSheng não havia saído dele, Shi Mei caminhou até os aposentos do líder Jiang.

Tratar Jiang Xi não era tarefa mais fácil do que convencer o ancião Yuheng de tomar um remédio amargo. Ambos tinham muito apreço por seu próprio rosto magro. Seu Shizun era desprovido de qualquer senso de autocuidado. Jiang Xi o fazia apenas quando sua vida estava a perigo. Tão rebelde quanto qualquer paciente, mas pior, por que esse tinha a ciência e o poder na mão para rebater sua opinião.

"Estou melhor. Não tenho mais nada. Volte a seus afazeres. Se preocupe com quem está realmente doente."

Por ter sangue meio-demônio, Shi Mei conseguia drenar a energia ressentida prejudicial no corpo do líder Jiang, suprimindo-a temporariamente, mas essas sempre ficavam mais forte quando o líder ficava ansioso. E é claro, Shi Mei notou cada vez mais que essa ansiedade tinha apenas um nome e sobrenome: Xue Meng.

Tendo descoberto o segredo da família, Shi Mei guardou como se fosse o seu próprio, mas isso depois de largas reflexões. Em seu primeiro pensamento, o líder Jiang tinha caído ainda mais baixo em seu conceito por desamparar sua esposa e filhos. Não havia registros de seu casamento, portanto Xue Meng era fruto de uma relação ilegítima. O que por si era um grande escândalo. Mas conhecendo Jiang Xi, que olhava para mulheres com a mesma emoção que olharia para um porco, mas que ainda conseguia emitir ondas de quase afeto para o filho adotivo, era possível que ele não soubesse.

Sobre as escolhas de vida de Madame Wang, Shi Mei não poderia especular. Existem dores que são muito pessoais. Ele gostaria que sua mãe tivesse tido uma chance de escolher apenas ir embora de um relacionamento ruim.

Conhecendo mais do líder Jiang, é provável que Madame Wang vivesse uma vida triste e sem amor. Jiang Xi não era frio ou inalcançável como as pessoas poderiam supor. Apenas seu calor não era para todos. Seus desejos e necessidades não estavam na carnalidade de desejos mundanos.

Por mais erótica que fosse sua aparência, Jiang Xi não teve seu espírito moldado para amores materiais ou carnais. Ele era tão solitário quanto Shi Mei. Mas enquanto Shi Mei tinha nojo da humanidade, Jiang Xi não sabia como se comunicar intimamente com a maior parte dela.

A grande prova estava no fato de que nenhum outro líder de seita tinha seus pratos favoritos fixados na cozinha de Gu YueYe, para a eventualidade de um dia, o jovem líder Xue aparecer de surpresa. Hospitalidade não era apenas mostrar luxo ou oferecer o mais elaborado banquete, mas em criar memórias significativas.

Outros líderes eram bem recebidos, bem acomodados. Suas necessidades atendidas sem limite de satisfação, mas a pedido do líder Jiang, um quarto ricamente decorado era limpo e perfumado todos os dias, exclusivamente para o líder Xue.

Para Shi Mei, que não podia ver as flores, mas poderia sentir o cheiro também parecia interessante que para se distrair o líder Jiang cultivava plantas. Era surreal imaginar o homem elegante podando folhas, mas o cheiro em suas mãos era inconfundível.

Mesmo trabalhando como médico, mesmo sendo o líder de seita, Jiang Xi se preocupava em preparar a casa para o dia que sua família chegasse. Como um pai ansioso pela visita do filho.

E se havia uma última prova incontestável, é que a única vez em que Jiang Xi aceitou tomar uma de suas novas pílulas refinadas foi quando saiu para a reunião anual de seitas.

Eles vinham a seu modo, superando as dificuldades e passando por cima de seus rancores para uma convivência pacífica, e mesmo sabendo que o tratamento com as pílulas da imortalidade era eficaz, o líder Jiang não aprovava sua conduta antiética e se recusava a tomar parte disso.

Gu YueYe estava longe de agir debaixo da ética, mas Shi Mei sabia que o líder não queria estar envolvido em mais um escândalo. E que não confiava nele.

A Pílula da Libertação era dez vezes mais potente apenas porque era feita com seu sangue, que não era mais tão fraco, e reduziria pelo menos a metade o tratamento do líder Jiang, se fosse feito com a Pílula da Imortalidade. Quanto ao cultivo duplo, ambos sabiam que em poucas seções de cultivo terapêutico poderia drenar parte daquela energia ressentida e até mesmo suprimi-la totalmente.

Não que eles não tivessem feito uma tentativa. Mas nenhum dos dois saiu do lugar.

Shi Mei fantasiou com seu shizun uma vez, mas nunca pensou realmente em cultivo dual com outra pessoa, porque para ele, assim como para Hua BiNan, o toque humano não era bem-vindo.

As instruções dos pergaminhos de Gu YueYe eram antes de tudo, para clarear a mente e equilibrar o fogo interno. Não havia necessidade de toques ou olhares. Parecia perfeito.

Mas nenhum dos dois pareceu levar em consideração que eram inimigos vivendo sob o mesmo teto. Que eram dois quebrados solitários. Jiang Xi não conseguia dizer ao filho que o estimava. Shi Mei não conseguia olhar nos olhos de Xue Meng, Mo Ran e Chu Wanning e pedir perdão.

Ambos não conseguiam avançar porque não sabiam lidar com seus demônios e nem queriam. Iluminá-los é trazer à luz o aspecto mais feio de quem são e que querem esconder. Porque não existe rejeição que não doa. E as vezes é mais seguro estar na sombra sobre o afeto do que na certeza da rejeição.

Rejeição só vem da parte de quem se estima. Shi Mei conhecia isso bem, e mesmo tendo sido ele a oferecer o tratamento ao líder Jiang, não esperava que ele fosse aceitar. Meses se passaram e nenhum voltou a falar sobre isso.

Até aquele dia. Até Jiang Xi tomar uma de suas pílulas. Até Xue Meng vir pessoalmente saber como estava o líder Jiang. Shi Mei nunca poderia devolver a família que Xue Meng perdeu. Mas aquele gemido doeu em seus ouvidos.

"Não o mate! Salve-o!"

O lamento de uma ave no céu pode ser ignorado, mas o que fazer quando a asa dela quebra embaixo da sua janela? Shi Mei sabia que ele era culpado pela dor de milhões de pessoas, incluindo o jovem enlouquecido e preocupado que tentava na maioria das vezes, fingir que não queria apenas atenção.

Xue Meng odiava ser criticado, mas odiava ainda mais estar sozinho, ou largado pela indiferença. Cercado de amor e cuidados, ele não se viu apenas sem pessoas para mimá-lo, mas desprovido de tudo o que lembrava o calor do passado. Mesmo as discussões a portas fechadas com o líder Jiang era uma tentativa de resgatar seu passado.

Antes, sempre que seu temperamento se elevasse, sua mãe, seu pai ou seu primo viriam em seu socorro. Até mesmo Shi Mei estaria a seu lado, tocaria seu ombro coberto, e diria coisas como "Se acalme, jovem mestre!"

No presente, ninguém apareceria, e a única pessoa que o olharia com frieza era a mesma que quando Xue Meng virava as costas levantava a mão no ar com o olhar ferido, apenas a sombra dos lábios pedindo para ele voltar.

Shi Mei ainda tinha sua própria consciência. Ele devia vidas ao mundo. Mas ele devia a Xue Meng não apenas a vida e a reputação de sua seita, mas tudo o que havia de especial em sua vida.

Quando criança, Shi Mei foi aceito por Chu Wanning e sempre achou que apenas servia para fazer o querido dos céus parecer mais especial. Mas aquele grito ainda ecoava na sua mente, tão forte quanto o grito de sua mãe mandando-o correr.

"Salve-o!"

"Você tem de crescer forte Shi Mei. Veja como eu sou forte. Beba leite todas as manhãs, assim como eu!"

Lembranças como essa invadindo sua mente, a proteção do jovem mestre que não permitia que ninguém lhe intimidasse desde que se tornaram colegas... Sim. Ele também tinha mais dívidas do que poderia se lembrar, ou entender, quando estava tomado apenas de sentimentos de ódio, inveja e vingança.

Cultivar em dupla não estava mais nos planos de Shi Mei, mas ele decidiu que assim faria se fosse necessário para curar o líder Jiang. Ele nunca poderia devolver a Xue Meng o calor de seus pais de verdade, mas poderia tentar... devolver a saúde para aquele que poderia, quem sabe, se ele deixasse, ser como um pai. Ele devia isso a Xue Meng. Seu amigo. O único que ele teve. 

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