Não Muito Princesa

By raquel_costa_

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A vida de Tina (Valentina Cortês) não é como a das jovens da sua idade, porque ela é uma princesa, mais espec... More

Apresentação dos personagens
Copyright
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 5
Capitulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10

Capítulo 4

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By raquel_costa_

Louise e eu ficamos muito sonolentas e ela prometeu me contar o restante de sua história no dia seguinte. E eu ia garantir que minha babá cumprisse aquela promessa, pois além de ter me despertado muita curiosidade em saber o desfecho, me distraia dos últimos capítulos constrangedores da minha própria história.

Deus ouviu as minhas preces, e, depois de uma semana e meia de chuvas intensas, naquela manhã de quinta-feira, o sol deu-nos o ar da graça. Aproveitei a oportunidade para conhecer melhor o Balneario El Escambrón, a mesma praia na qual eu tinha tomado uma bela chuva naquela noite fatídica: aquele rapaz irritante... o meu primeiro beijo... quase mudei de ideia não fosse a lembrança de que o meu único mês de férias estava escorrendo por entre meus dedos e eu precisava aproveitá-lo ao máximo. Daria o meu melhor para ficar longe de confusões dali em diante.

A areia macia, o mar cristalino e de um azul turquesa tão vívido que parecia até uma miragem, o cheirinho da maresia... "Louise teria gostado se tivesse aceitado vir comigo", pensei. Mas segundo ela, o sol intenso poderia lhe trazer problemas de pele, já que, com a idade, sua derme havia ficado muito mais sensível. Como fui abençoada com a melanina e como estava na flor da idade, juntei tudo o que precisava na sacola de praia — óculos de sol; protetor solar fator 60; duas tolhas; meu chapéu; meu par de chinelos; meu celular; scrunchies para prender meus cachinhos; uma canga; meu maiô; uma pequena boia em formato de flamingo; um vestidinho solto e um pequeno guarda-chuvas (para não precisar aceitar abrigo de "estranhos", se é que me entende...).

Sei que parece burrice viajar para um lugar pela primeira vez sem nenhum guia turístico, mas eu conhecia todos os idiomas que alguém poderia querer falar comigo ou para o caso de eu precisar pedir informações, e, além disso, forrei a canga perto de onde haviam policiais à paisana, para prevenir eventuais riscos. Eu não era tão ingênua quanto parecia, podia me virar bem sem meus pais ou a babá.

Louise não queria que eu fosse à praia sozinha, me indicou que eu acompanhasse a senhora que estava hospedada no chalé vizinho, Rita, uma mulher muito simpática com quem minha babá tinha feito amizade. Porém, isso limitaria a minha sensação de liberdade e independência, então, eu apenas disse que iria, sim, junto com a vizinha. Mas Loulou não precisava saber a verdade, não é mesmo?!

Eu estava caminhando na areia, indo em direção ao mar, quando uma bola de vôlei veio de encontro à minha testa, jogando-me para trás. Cai com a bunda na areia, não tão macia diante de um impacto desse. Certo, o destino queria rir de mim...

Dios mio! Moça, você está bem! Me desculpa, eu não queria... — Vi uma garota se aproximar, seguida de um rapaz. Ou melhor, vi o vulto deles.

— Você consegue me dizer quantos dedos tem aqui? Qual idioma você fala? Español? English? Português? — O rapaz loiro com a pele vermelha de sol perguntou parecendo preocupado.

Sí. Yes. Sim — falei levantando o meu tronco até ficar sentada, ali mesmo, onde caí. —  E estou bem, obrigada por perguntar. Você está mostrando três dedos, eu acho.

Amor, ela é poliglota?! — A moça de cabelos escuros e compridos sussurrou para o rapaz como se eu não pudesse ouvir. Achei graça disso.

— Vai por mim, não é tão legal assim... — Limpei a areia grudada em meus cabelos e nas minhas costas.

— Mil desculpas — suplicou a garota que devia estar na minha faixa etária. — Eu sou um desastre no vôlei! Os meus saques são ou muito altos ou muito baixos. — Balançou a cabeça desanimada.

— Tudo bem — grunhi recobrando a visão, conseguindo enxergá-los melhor. — Acho que, como dizem por aí, eu estava no lugar errado na hora errada... pela segunda vez.

— Você é engraçada. Não é, amor?! — A moça com sotaque espanhol deu uma risadinha olhando de mim para aquele que, possivelmente, era seu seu namorado. Eu, pelo menos, não tinha o costume de chamar de "amor" quem eu não tinha muita afinidade. E digamos que o reino de Âmbar não era de usar apelidos afetuosos. Só títulos da nobreza vinham antes do nome da gente.

— Ela é. — O rapaz assentiu com a cabeça. — Está sentindo dores na cabeça? Quer que a gente te leve no posto de emergência? — Ele continuava a sacudir três dedos na frente dos meus olhos.

Se eles estavam com medo de ter me machucado, imagina se soubessem quem eu era e no que me machucar de verdade podia lhes resultar?!

— Eu estou bem mesmo. Não se preocupem. — Respirei fundo e me pus de pé. — Só meu traseiro dói. Eu falei... ai, meu Deus... eu não... esqueçam isso... — Balancei a cabeça constrangida. E mais uma vez: "adeus, fleuma real!".

— Tudo bem — A garota caiu na risada junto com o companheiro. — Você e seu grupo querem se juntar a nós no jogo? — Ela olhou panoramicamente nas redondezas à procura de alguém à minha espera.

— Estou viajando sozinha. — Estufei o peito querendo me gabar. Se em Porto Rico eu podia ser quem eu quisesse, não queria ser "a engraçada", mas, sim, "a inteligente, descolada e super independente que viaja sozinha".

— Sério?! Que legal! — A moça da pele bronzeada me olhou com o respeito que eu queria. — Então... quer jogar com a gente? — Sorriu alegremente como se esse fosse o melhor jogo de todos os tempos.

— É... vem com a gente, a nossa galera é muito massa! — O rapaz fez um gesto de "vem" com as mãos. Com a outra, segurou a mão da namorada.

Massa... — Repeti baixinho a gíria que havia acabado de aprender. — Mas é que... sei jogar xadrez, hipismo, tiro com dardos ou flechas, e até me arrisco um pouco na esgrima... mas... nunca joguei vôlei.

Uau! Que repertório! — Ela bateu palminhas rápidas. — Temos aqui uma garota importante da cidade grande. Você é americana? Veio dos Estados Unidos?

— Não... — Ri mais de nervoso do que de ter achado graça. — Vim de... do... Brasil! — Improvisei.

Ai, que legal! Meu irmão do meio disse que o Brasil é muito lindo! — A garota sorriu mais alegremente ainda.

— Não precisa se preocupar, pode se juntar com a gente, nenhum de nós sabe jogar vôlei... — O namorado dela disse.

— Acho que ela sabe disso... — A namorada falou com a expressão envergonhada.

— Bom... eu... — Refleti um pouco: "não era isso mesmo que eu queria? Conhecer gente normal? Fazer amizades? Ser tratada como uma pessoa normal como eles eram?". — Tudo bem. Eu aceito o convite. — Quase fiz uma reverência ao casal, flexionando os joelhos e segurando a barra de um vestido longo imaginário, mas recobrei, bem a tempo, a consciência de onde eu estava, por sorte.

Quando chegamos onde a rede de vôlei estava fixada na areia quente, haviam outros três jovens à espera daquele casal: duas garotas de cabelos bem compridos e escuros e um cara com os cabelos estilo surfista, loiríssimo. Certo, aquela turma tinha o seu estilo próprio, e isso era legal. Eu nunca quis tanto fazer parte de uma turma quanto naquele instante, mesmo tendo características físicas, raciais, étnicas e culturais tão distintas.

— Gente, trouxemos mais uma integrante para o time das meninas! — A garota que eu tinha acabado de perceber que não fazia ideia de como ela se chamava anunciou.

— Oi, como você se chama? — Uma das meninas do outro lado da rede perguntou.

— Valentina. Ou só Tina — respondi sem jeito.

— Muito prazer, Só Tina! — O "loiro surfista" cumprimentou fazendo graça. Fingi não notar sua expressão de cortejo, ou flerte, como pessoas normais dizem.

— Oi, Tina! Junte-se a nós — As duas meninas disseram quase em uníssono. E eu obedeci, indo em direção a elas junto com a garota que me trouxe.

— Mas, espera... eu não sei nem o nome de vocês. — Cerrei os dentes.

— Ah, é... — A garota que me acertou com a bola deu uma risadinha. — Eu me chamo Julia ( notas: a pronúncia era parecida com a do tal tio Jose. Com "R", ou seja, "Rúlia"). Esse aqui é o meu namorado, Sebastian. Aquela mais alta, Antonieta. A irmã dela, Antonela. Aquele cabeludo é o meu cunhado, Juan (mesma linha de pronúncia: "Ruan").

Ao ouvir o próprio nome, o tal do Juan levantou a mão, como os outros fizeram, mas também deu uma piscadela para mim, com um sorrisinho sugestivo. Ótimo, mais um engraçadinho para essa viagem! Mas, ao menos, era bonito, admito.

— Eu avisei que não era boa — falei ao errar o primeiro saque.

— Relaxa, a gente tá aqui só pra se divertir mesmo — Antonieta disse.

— Ainda bem que você não é boa, pois já estávamos em desvantagem, graças ao Fernandez, que fez o favor de furar com a gente... — Juan disse se referindo ao fato de que éramos quatro meninas contra dois rapazes.

— O meu irmão anda ocupado... pôs na cabeça uns projetos aí... disse que vai abrir o próprio empreendimento — Julia disse errando outro saque, que, por muita sorte, não acertou outra pobre pessoa tomando sol. Uma senhorinha de maiô rosa-chiclete.

A mulher arregalou os olhos e proferiu algum insulto em espanglês, dialeto muito comum em Porto Rico, devido aos laços com a América (de acordo com a Louise). Mas aquilo só fez o grupinho dar risada, assim que a moça deu as costas. Meu sonho era aprender a rir depois de tomar uma bronca, pois elas eram muito frequentes na minha vida em Âmbar: "Valentina, mais que modos são esses! Isso são maneiras adequadas de se dirigir a um cavalheiro bem intencionado?!" — Eu sabia bem as intenções do príncipe Edgar, e não eram tão boas assim, tinham a ver com dinheiro e poderio.

O restante do jogo foi bem divertido, e eu até dei umas boas risadas com as péssimas habilidades de cada um de nós. Depois, decidimos tomar banho de mar enquanto pulávamos umas ondas baixas. O sol estava trincando em nossas peles, que tomavam uma cor singular de verão.

Juan seguia me encarando de um jeito "flertativo", mas eu fingia não notar, pois já havia vivenciado momentos constrangedores demais para uma viagem só. Lembrei com frio na barriga o meu primeiro beijo naquele Opala idiota.

— Que cara azeda é essa? — Julia perguntou com divertimento na voz e no rosto. Estamos todos em fila, deitados na areia, debaixo de um ombrelone (guarda-sol enorme) e umas palmeiras.

— Nada... lembrei de um patife que derramou café no meu vestido, no aeroporto. — Revirei os olhos.

Sério?! — Deu risada. — Ouviram essa?!

— Nem me fale... sujeito irritante, nunca vi igual... — Tentei espantar as únicas coisas que insistiam em rondar a minha mente: o rosto de Daniel, tão próximo que dava para ouvi-lo respirar, e a sensação de beijá-lo.

— E o que você fez com o vestido? — Antonela quis saber.

Eu nunca tinha visto tanta gente ao mesmo tempo querendo ouvir o que eu tinha a dizer. Até me senti uma rainha, pois princesas podem pouco (ou nada) opinar em Âmbar. A nossa função principal é obedecer e sermos educadas, principalmente com o prometido em casamento, no meu caso, o Ed.

— Coloquei em uma sacola plástica. Vou levar a uma lavanderia quando chegar em casa... e depois... sei lá, doar para a caridade... — Dei de ombros.

— Como é esse tal vestido? — Julia me olhou com interesse.

— De onde você é? América? — Juan perguntou.

— Acho que tenho cara de americana... — Sorri sem jeito. — Sou brasileira. — E uma bela mentirosa.

Procurei uma foto de antes de embarcar para San Juan, onde eu estava vestida com a peça, ainda intacta.

— Esse é o tal vestido.— Entreguei o aparelho a Julia. — Isto é, antes do ataque daquele vândalo.

— Lindo! Muito hermoso! — Ela pareceu ter realmente gostado daquele vestido de senhora de meia-idade, o que me fez ter uma ideia.

Então, é seu agora! — Sorri cordialmente. Queria agradá-la, para ver se, finalmente, fazia amigas. Eu não tinha uma sequer para contar sobre o meu primeiro beijo, e, nesse caso, nem minha prima Gabrielle podia saber, pois apesar de muito gentil e agradável, não conseguia se conter, às vezes, podendo essa notícia muito bem chegar aos ouvidos de seu tio, ninguém menos do que o rei, ou meu pai, se preferir.

— Não... não posso... não posso aceitar... — Ela me olhou assustada, como se não acreditasse que alguém pudesse se desfazer tão fácil de uma peça claramente caríssima.

— Eu faço questão. — Notei que todos estavam boquiabertos.

Esse não é o símbolo da Chanel?! — Antonieta percebeu a logo no cinto marcando a minha cintura.

— Digamos que sim... — Sorri.

Dios! Por que você quer me dar isso?! — Julia arregalou os olhos.

— Por que não quero mais, e você gostou, então... — Dei de ombros.

— A chica é muito rica. — Juan riu e fez com que os outros fizessem o mesmo.

— Não... Não foi tão... é de um... brechó... queima de estoque... — Dei uma risadinha nervosa. — Sou só uma pessoa normal, como vocês.

— Se você diz... — Nada podia ofuscar o brilho nos olhos da Julia. — Quer vir jantar conosco?

— E... Eu?! É um... convite? — Eu jamais havia recebido um convite individual e amigável para jantar, porque, como eu já disse, nem tinha amigos em Âmbar, exceto por minha prima.

É claro! Você merece um banquete depois de um gesto desses! — Gostei de ter conquistado a afeição de Julia, mas não queria banquete coisa nenhuma, estava farta de grandes banquetes cheios de bajulação. Só queria um jantar normal com pessoas normais.

— Se vocês não se importarem... — Olhei para o restante do grupo deitado na areia.

— Nós vamos amar ter você conosco! — As irmãs Antonieta e Antonela disseram em quase sincronia.

O restante reforçou o convite, e eu recebi um olharzinho bem convidativo por parte do rapaz que tem o segundo nome da cidade onde eu estava.

Me permitir flertar ou não? Eis a questão...

Aproveitei o soninho da tarde de Louise para entrar de fininho no chalé e pegar o vestido manchado na sacola. Deixei na mesinha de cabeceira dela: "Fui jantar com uns amigos que conheci na praia. São amigos da nossa vizinha Rita, então, não se preocupe. Beijos, Tina".

E é mesmo verdade quando dizem que "uma mentira chama a outra", pois eu já estava numa teia delas. Mas alguém precisava saber?!

Eu não podia ir ao jantar com o vestidinho que estava usando na praia, pois era simples demais, mas também não tinha tempo para uma super produção — que nem seria adequada, afinal, aquelas pessoas eram simples e vestiam-se da mesma forma. Não era assim que eu também queria ser? Vesti outro jeans de brechó que eu havia comprado quando cheguei a San Juan, junto com uma camiseta branca e um All Star vermelho, adquiridos na mesma loja. Avistei aquela jaqueta idiota pendurada na cabeceira da minha cama e percebi que a peça versátil me cairia bem. "Perdeu, playboy", dei risada, enquanto a vestia.

Uau, nada mal! — Ruan disse, em alto e bom som, quando eu saí pela porta da frente, despertando risadinhas e fazendo meu rosto corar.

— Que jaqueta linda! Acho que está muito na moda, parece que já vi alguém com uma nesse estilo — Julia falou. Acho que tinha se tornado minha fã. Gostei da sensação, até porque as meninas de Âmbar me olhavam com o oposto de admiração. Nunca entendi essa coisa de rivalidade feminina, ainda mais por causa de um interesseiro feito Edgar. Parecia burrice as mulheres se oporem umas às outras, ao invés de unirem forças em prol umas das outras.

Mamá! Eu trouxe uma convidada! — Julia gritou para os fundos de sua casa. Não era um castelo no pico da colina, mas para os padrões de Porto Rico, era uma casa grande. A mobília era simples, mas tinha o seu charme. Eu gostei muito do ar rústico da sala de jantar, com a mesa de madeira e as paredes de pedra, com umas samambaias penduradas.

— Quem é a nossa visita, hija! — A mulher baixinha com os cabelos escuros presos em um coque veio da cozinha.

— Essa é a nossa amiga do Brasil. Conhecemo-nos na praia. Ela me deu um vestido lindo, mãe!

— Que isso... lembre-se que tem uma bela mancha para você lidar... — Sorri tímida. — Fico honrada em conhecer a senhora. — Dessa vez, sem querer, fiz uma reverência pomposa à mãe da Julia, que sorriu e me puxou para um abraço.

Que hermosa a sua amiga! — Olhou de Julia para mim. — Como você se chama, niñita?

Valentina. — Mas não foi minha voz que disse isso, foi uma voz de homem, que surgiu naquela sala de jantar junto com o dono dela. Daniel.

Fernandez! — Ruan cumprimentou, com um desses toques personalizados de amigos, o imbecil que sorria satisfeito na soleira da porta.

Conhece a Tina?! — Julia perguntou assustada.

— Conheço um pouc... — começou a responder.

— Acho que está enganado. Não conheço você. — Minha visão começou a ficar turva, ainda mais porque aquele sorriso metido denunciava no que ele estava pensando: o beijo.

Lady Chanel? Como pode se esquecer do incidente com o vestido?

— Você viu quando o patife derramou café no vestido dela? — Antonela olhou curiosa para Daniel.

Patife?! — Daniel me olhou dando uma gargalhada. Uma gargalhada!

— Que benção o meu destino! — Forcei um sorriso que me custou um grande esforço. Eu queria sair correndo, antes que o meu primeiro beijo virasse o assunto do jantar.

— Como vocês se conheceram? — Antonieta perguntou olhando de mim para Daniel.

— Conta para eles, Tina! — Daniel sorriu descarado, sabendo muito bem que eu preferia ser engolida por uma cratera, ali mesmo, do que contar a verdade.

— Ele... eu... veja... — Engoli em seco. — Acontece que...

— Infelizmente, eu estava tranquilo lá na Starbucks, pedindo o meu descafeinado... — A crueldade no sorriso dele me fez querer partir aquele rosto no meio com um tapa certeiro. Mas a lembrança daquele beijo me desarmou, fazendo meu estômago se revirar.

— Espera... — Julia começou. — Eu não acredito?! Você é o patife! — Caiu na risada.

Xeque-mate! — Daniel piscou.

— Gente! — Antonela e a irmã também deram risadinhas animadas.

— Por que não contou que tinha conhecido uma garota tão... tão... — Juan começou a dizer sem desgrudar os olhos de mim. E esses olhos brilhavam.

— Talvez, não fosse importante... — Daniel fechou a expressão para o amigo risonho.

Então, era isso... o fato de ele ter estragado a lembrança do meu primeiro beijo, o meu primeiríssimo beijo não passou de uma eventualidade cotidiana. Isso, nada importante. Quem se importa, não é mesmo?!

— Isso. Só um vestidinho medíocre, nada demais. — Forcei uma risada. Daniel percebera que eu havia ficado ofendida. Mas, para minha sorte, não compreendeu a profundidade de como me atingiu, ou poderia se gabar ainda mais.

O jantar ocorreu normalmente, exceto pelo fato de que ele ficava tentando fazer contato visual, mas eu o evitava. Só queria ir para casa depressa, para não precisar mais fingir não estar morrendo de raiva e... decepção. Acabei percebendo, e muito contrariada, que o primeiro beijo pode acabar significando mais do que imaginamos. Não é como se eu idealizasse cenas de filmes da Disney, é óbvio que não, mas eu tinha um coração.

Já aquele sem-noção, tinha se esquecido. Simplesmente apagado da memória o momento em que estragou a lembrança que eu teria que levar para a vida toda.

A culpa era minha, afinal... não era eu quem tinha lhe beijado?! Bem feito para mim!

— Algo de errado com a comida, meu bem? — A senhora Dulce me olhou preocupada. — Você está com uma carinha de...

Azedo — Julia complementou. — Ela faz essa carinha às vezes. — Sorriu.

— Sua comida está mais que maravilhosa, senhora. — Eu estava mesmo amando aquele risoto de camarão. Nunca havia provado, nos banquetes da Corte, algo tão saboroso e bem temperado. Queria até pedir a receita para levar para a Dolores, chefe de cozinha de Woodland Castle. — É que, às vezes, me vem à memória uma cena muito... indigesta. — Dessa vez eu o olhei, bem nos olhos. "Vamos ver quem vence dessa vez, babaca?!", pensei.

Tipo o que?! — Daniel devolveu o olhar de desafio. — O que é tão indigesto? — Eu poderia jurar que vi ressentimento nos olhos dele, não fosse ele mesmo ter dito, nas entrelinhas, que aquele maldito beijo não significou nada! Se é que ele sequer se lembrava desse desastre!

Todo mundo fez um silêncio sepulcral para ficar olhando para Daniel e eu. Aquele conflito não-declarado pareceu despertar a curiosidade de cada um, como a cena final de um filme ou de uma novela. Até a mãe dele mal piscava os olhos.

Obrigada, porto-riquenho, por estragar minha felicidade quantas vezes lhe é possível!

— Nada específico — contornei. — Sei lá... acho que é só o estresse da viagem longa que fiz. — Forcei um sorriso, mas sem olhá-lo.

— Sabia que ela é do Brasil?! — Julia disse ao irmão.

— Sério? Você não me disse... — A voz dele saiu em um tom ameno, me olhando nos olhos, fingindo estar inabalado.

— Vocês são amigos? — O Sebastian perguntou ao cunhado.

— Não. Mal nos conhecemos — Respondi.

— É. Não tivemos a oportunidade de nos conhecermos. — Daniel forçou o mais metidos dos sorrisos, mas eu soube que o atingi, de alguma forma. Se ele pensava que eu era uma menininha frágil e iludida, estava enganado.

Terminado o jantar, resolvi ajudar a dona Dulce a lavar a louça, pois era isso que visitas normais faziam. Pessoas normais não dispunham de um arsenal de copeiros para fazê-lo.

— Deixa que eu seco a louça, mamá. — Daniel apareceu acabando com o resto da minha noite.

— Está bem, Chiquito — Beijou o rosto dele e se retirou, provavelmente, indo se juntar ao pessoal na sala de estar, em frente à TV. Estavam entretidos em algum reality show de celebridades ricas.

— Então... indigesto?! — Daniel falou assim que ficamos a sós, para o meu desgosto. — Estranho...

— Não sei nem do que você está falando... — Dei de ombros com um sorriso debochado. Por dentro, eu não parava de pensar no meu primeiro beijo arruinado por esse... imbecil.

— Tenho certeza que você sabe bem o que eu estou falando, mas também sei que você sentiu o oposto de "indigesto". — O tom de voz confiante me fez sentir um ódio descomunal. Eu poderia escorraça-lo de insultos, ali mesmo, naquele instante, se não fosse a minha consideração por sua mãe, sua irmã e seus amigos.

E que azar o meu conhecer pessoas tão divertidas, mas tão próximas ao meu pior pesadelo que eu estava tentando esquecer!

"Talvez, não fosse importante" — repeti as palavras que feriram o meu orgulho.

— Você viu o jeito como ele estava te olhando? — Fechou a cara.

— Ãh?! Do que você está... quem... você está doido?!

— O Juan. Ele está afim de você. — Revirou os olhos.

— Nada a ver. — Ri como se não tivesse notado. — Mas... e se ele estiver? E daí? Te incomoda?

Mas, espera... Ele estava com... ciúmes de mim?!?! O quê?!? Não sei explicar a sensação agridoce que tomou conta do meu ser, mas disfarcei com uma expressão imponente.

— Não, claro que não. — Sorriu amargo. — Nós nem nos beijamos intensamente ao ponto de eu nem conseguir dormir, para depois você chamar isso de... "indigesto"! — Olhou-me muito ressentido e eu não sabia se achava isso meigo ou se o odiava ainda mais.

Você quem deu a entender que isso não significou nada! — sibilei morrendo de medo de alguém nos ver.

— Porque eu fiquei pê da vida, quando ele... não foi o correto... você é uma garota independente... tem todo o direto de... a vida é sua... É você quem escolhe... se quiser... — Eu quis dar risada de seu embaraço, mas me mantive firme.

— Você me chateou. — Confessei sem querer, tamanho o contentamento por aquela cena de ciúmes, afinal eu o estava vencendo.

— Por que, afinal? Não foi indigesto?! — Alternou os olhos da louça direto para os meus.

— Eu não... não... mas... — E vi todo o meu plano de me manter longe de confusão indo ladeira abaixo. Uma ladeira sem fim.

— Então, você gostou, não foi?! Eu sei que gostou. — Daniel Fernandez fez uma cara de desafio que me fez entender que ele tinha voltado à arena de batalha. — Admite que foi o melhor da sua vida!

— Sei que você necessita da minha aprovação, mas não a terá — Lavei mais um prato, sem encará-lo, deixando-o se corroer de dúvida.

— Eu sei que sim. Suas mãos tremendo revelam o que você tenta esconder. Seus olhos também. Você não consegue me olhar sem ficar apaixonada por mim, por mais que tente me odiar. — Era um ótimo jogador, suas palavras mexiam com o meu cérebro, mas eu não ia acuar. Eu amava um bom duelo.

— Nem se você quisesse, poderia me dar o melhor beijo da minha vida... — Olhei-o com maldade. — Sem que eu tenha algum parâmetro, não vai poder mudar isso. Você perdeu. Aceite.

— Sem... parâmetro?! Você... você está dizendo que... — Sim, eu o tinha desarmado, mas não do jeito que eu queria. E agora ele sabia do meu segredo mais constrangedor da vida. Droga de boca grande! Eu nem sei porque critiquei a minha prima! Ela pelo menos não se metia em situações tão vergonhosas quanto o possível, como eu!

— Eu quis dizer que... não é isso... é só...

— Você nunca tinha... ai, meu Deus! Eu estraguei tudo, não foi?! — Sua expressão mudou de egocêntrica para consternada. — Eu estraguei seu primeiro beijo falando aquelas palavras idiotas para o Juan... por isso você ficou magoada... não foi?! — Tocou meu rosto de leve com a mão esquerda.

— Que bobagem! — Tentei rir, mas soou como um ruído desesperado. — Você entendeu tudo errado! — Na verdade, ele sabia me ler de um jeito assustador.

— Não entendi errado, não. — Colocou também a mão direita na minha outra face. — Mas eu estraguei tudo. O que eu falei... foi bobagem. Desde que eu te beijei, eu meio que só penso nisso, o tempo todo. Eu sei, pode sorrir, eu me rendo. É a verdade. Mas ver outra pessoa te achando linda foi um pouco demais para eu conseguir lidar, sem perder a pose. — Olhou em volta para ver se alguém estava vendo aquela cena, enquanto meu coração queria me matar. — Mas não agi certo. Você tem todo o direito de ser amiga, ou... algo a mais... com quem desejar. E se quiser. Ninguém tem  a obrigação de ficar afim de alguém. Foi só... a droga de um ciúmes. Desculpa. Eu não vou fazer mais iss...

— Você está errado — rebati tentando não gostar muito do macio de suas mãos que decidiram ficar em meu rosto.

Quê?! Em qual parte?! — Franziu o cenho.

— Você disse: "desde que eu te beijei". Mas você não me beijou. Eu te beijei. Ganhei! — Dei uma piscadela entre suas mãos.

— Você está certa. — Foi melhor do que música clássica aos meus ouvidos. — Você me beijou. E eu nunca gostei tanto de perder em toda minha vida.

Daniel chegou tão perto que eu quase deixei escapar das minhas mãos o prato de porcelana pingando água no chão. Percebendo o meu embaraço, pegou a peça das minhas mãos e a secou com o pano de prato que tinha deixado no balcão de madeira. Feito isso, ele voltou a me olhar, mas não havia soberba ou desafio, só um sentimento que, mesmo eu não sendo capaz de explicar, fez meu coração errar o compasso das batidas.

Quando Daniel segurou meu rosto mais uma vez, eu cheguei a admitir que Camões estava certo:

Perder não é tão ruim assim — falei à meia respiração antes de permitir que ele me beijasse. Lentamente.

Daniel se afastou, só um pouquinho, de meus lábios para dizer, antes de voltar a me beijar:

Bela jaqueta.

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