O segundo homem
Já na redação, Cathy permanecia imóvel, diante do computador, lutando contra o desejo de definitivamente confirmar suas suspeitas sobre a soltura de Miguel.
Alguns cliques e com os dados que ela já tinha pesquisado inúmeras vezes, descobriria através do site do Tribunal de Justiça local se ele tinha conseguido a liberdade provisória. Alguns segundos e todos os indícios dos últimos dias — o telefonema, a moto e a silhueta na praia — tudo o que era somente uma suspeita, passaria a ser definitivo.
Então, a afirmação feita anteriormente, num tom tão seguro e falso, seria completamente verdadeira. E o tempo entre o presente e o reencontro começaria a correr numa contagem regressiva angustiante, que lhe roubaria a alegria de viver, sugando-a num vórtice maligno de expectativa e ansiedade.
Expirando lenta e profundamente, ela convenceu-se de que não lhe faria nenhum mal adiar aquela confirmação. Se pudesse pensar que ainda tinha tempo, talvez pudesse começar a considerar a ideia da amiga de não estar sozinha quando o reencontro acontecesse. Talvez pudesse, afinal, existir o tal segundo homem...
"Ótimo, agora estou mesmo querendo acreditar que sair por aí beijando na boca vai me ajudar em alguma coisa!!!", pensou, desanimada. "Catharina Hilário Batista, você é patética, patética, patética!!!"
___ Cathy, você é um gênio!!! — Thomas veio até ela, retirando-lhe de sua "esquizofrenia" para comentar que uma sugestão dada por ela no dia anterior, tinha o ajudado muito em um novo trabalho.
Agradecida — ela realmente adorava ajudar os amigos — ela se voltou para o seu computador quando ele se afastou.
Era incrível como as batalhas mais absurdas eram travadas no interior das pessoas, sem que ninguém mais pudesse suspeitar.
Pensando nisso, ela começou a abrir alguns arquivos, com a mente ainda longe do trabalho. A capa do quinto álbum da Legião Urbana, que estava colocada como papel de parede desktop, fez com que pensasse na noite anterior e logo, a mente trouxe novamente o arrepio sentido quando estava tão próxima de Eros, no carro.
Mais um suspiro. Aquilo era facilmente explicável. Muitos anos de abstinência sexual, ela era humana, afinal. E ele, o deus mitológico do desejo sexual.
Aquele pensamento levou-a a lembrar da irritação que surgiu quando percebeu que Cida estava doida para ser a primeira a "experimentar" o novo vizinho. Maneando a cabeça, Cathy tentou se livrar daquela sensação e fechando os olhos, pousou uma das mãos sobre a testa.
"Êta manhã difícil!"
Ela só podia estar enlouquecendo, essa era a única explicação! Só perdendo a razão a ideia de, não só envolver-se com um "segundo homem", mas envolver-se com Eros, nutrindo qualquer expectativa que não guardasse relação exclusiva com seu desempenho profissional, seria aceitável!
___ Cara, preciso trabalhar... — murmurou, abrindo os olhos — Preciso me concentrar alguma coisa útil antes que a ideia da Linda comece a parecer realmente interessante...
Um sorriso inesperado, no entanto, tomou conta dos lábios de Catharina, logo após aquela tão sensata constatação. E pela mente sabiamente controlada pela razão, emoções tão condenadas como "experimentar" algo novo, penetraram despercebidamente, quase sem querer.
Eros, que havia chegado e acabara de sair do elevador acompanhado por Dre, avistou aquele sorriso e sem suspeitar do que ele significava, deixou-se perder por alguns segundos nos pensamentos causados pela constatação ocular de que seria inevitável criar outras expectativas sobre sua colega de trabalho.
___ Bom dia, Cat cantora, dormiu bem? — Dre a interpelou, assim que parou com Eros em frente a sua mesa.
Como que acordando dos súbitos pensamentos causados pelas emoções que não se renderam a racionalidade, ela ergueu os olhos e deparar-se imediatamente com o personagem principal de seus pensamentos fez-lhe disparar o coração com tanta energia, que ela sem querer, deu um pulinho na cadeira.
___ Nossa, se eu não te conhecesse, diria que você não dormiu muito, tamanha a reação de quem é pega no flagra fazendo alguma coisa muito boa e errada que acaba de ter!!! — Dre disparou, gargalhando em seguida.
Cathy somente suspirou, erguendo as duas mãos aos céus, num gesto de quem estava bastante acostumada a ser saudada daquela forma pelo ex-parceiro:
___ Será que, não sei, como as pessoas normais, talvez, podemos começar o nosso dia com um simples e eficaz "bom dia"? — começou, num tom de bronca bastante brincalhão.
___ Hum, sei não, evasivas, esse comportamento está me parecendo comprometedor demais! — Dre insistiu — Só responda a pergunta e eu esqueço o assunto: dormiu bem, querida Cat?
___ Mas é claro que eu dormi! — afirmou, fazendo um gesto negativo de cabeça em seguida — E a julgar pela sua cara de felicidade, você não!
___ É por isso que eu digo: a Cathy é a única mulher na Baía dos Santos que realmente me conhece!
___ A única que não te conhece no sentido bíblico, você quer dizer, né? — brincou, divertindo Eros, que imediatamente começou a rir — Por um acaso não foi com aquela garota que mora com a...
___ É, aparentemente colegas de quarto ouvem certas coisas que as deixam muito interessadas!
___ Você é doente!
___ Hey, é um mundo livre, eu e as garotas, só estamos usufruindo o nosso livre- arbítrio!
___ Sei... Até alguém engravidar, aí acabou a liberdade! Ah, mas só para mulher na história, né? Porque para o homem é como se nada tivesse acontecido!
___ Nem vem!!! Joga essa praga para lá!
___ Tá vendo? Você só quer o bom da liberdade, nada das responsabilidades que vem com ela!
___Caraca Cat, vai se jogar numa piscina, comer chocolate ou qualquer coisa que você faz para aplacar sua energia sexual não utilizada!
___ Não tem argumentos e resolve apelar!
Ele implorou perdão de joelhos, numa cena típica e hilária, claro.
___ Em minha defesa, só posso dizer: todos sabem que chocolate é viciante! — brincou, passando uma das mãos pelo braço, para o maior divertimento dos outros dois — E já diziam os americanos, baby: "once you go black, you never come back1"!
Cathy gargalhou, levando as duas mãos ao rosto e demonstrando o seu completo inconformismo:
___ OK, acho que já provou o seu ponto de vista, agora será que pode me deixar começar o meu trabalho, por favor!?!
___ Falô para vocês!
Cathy ainda ria, quando se voltou para Eros, que fazia gestos negativos de cabeça:
___ Vê? — ela gesticulou, mostrando Dre — É assim que os dias começam por aqui, então, vá se acostumando!
Eros deu a volta para se sentar na cadeira que ela empurrou na sua direção.
___ O lado bom é que depois que a gente trabalha com o Dre, simplesmente se acostuma com tudo!
___ Acho que se ele continuar andando com o Crau, as coisas tendem a ficar ainda piores!
___ Ah meu Deus, será que isso é possível?!? — ela duvidou, enquanto tirava o blazer branco e colocava-o na guarda da cadeira.
___ Não só é possível como também bastante provável, então...
___ Deus tenha piedade de nós! — ela riu — E por falar em piedade... — abriu o arquivo sobre Bento Ferrari em sua tela — Preparado para ser diferente nas fotos com o "deus" do mundo da moda?
Enquanto Eros arqueava as sobrancelhas, duvidoso, ela prendeu os cabelos com uma presilha, cor-de-rosa como a miniblusa levemente decotada que estava usando.
___ Com certeza não queremos ele ostentando status e riqueza, sentado do que deve ser um trono e dando ordem a plebe, como um imperador! — comentou olhando diretamente para ela, que parecia especialmente bonita naquela manhã.
Cathy achou graça, pois era exatamente assim que ela visualizava o empresário.
___ É, ele me parece representar perfeitamente esse papel, por isso nosso mal fadado trabalho é focar num lado diferente do Ferrari!
___ E seguiremos a linha atual, nada de você, tudo do entrevistado?
___ Sim, por favor! — enfatizou — Não sou repórter, não quero aparecer! Se você quiser filmar tudo, depois editamos.
___ Tudo bem, quem sabe não conseguimos provas para uma ação criminal?
Ele estava impossível.
___ Ele não vai ser tão estúpido! Ou vai? Como é difícil achar qualidades nas pessoas que estamos predispostos a odiar... — suspirou, como quem falava consigo mesma.
Eros vibrava a cada crítica que ela fazia ao arrogante patrão do seu amigo — ele próprio já tinha visto o cara numa festa em Vila Velha do Caminho Real e o julgou um porre! E óbvio, faria tudo para cultivar a crescente implicância, também na sua parceira.
De sua mesa, Nes os observava, enquanto falava ao telefone. Aquele fotógrafo chamava-lhe a atenção, mas sabia que era por algo mais do que simples beleza — ele tinha um certo "q", alguma conexão que o fazia muito familiar e a julgar pela forma como já estava enturmado com Catharina, Agnes não era a única a sentir.
Tal constatação despertou nela um pressentimento ainda muito sutil, que sua consciência ainda não conseguia entender completamente, ou traduzir em palavras.
Por isso, ela anotou esses pensamentos num papel sobre a mesa, utilizando-se somente de figuras e símbolos, para que pudesse se lembrar depois, e não perdesse aqueles ricos insights na correria do dia-a-dia.
Mantinha um bloco sempre a mão quando falava no telefone, e tais "rabiscos", codificados de uma maneira que só ela podia entender, além de sempre serem extremamente úteis, impediam questionamentos por parte da pessoa sobre a qual ela escrevia. Para escrever sobre sua querida amiga Catharina, ela sempre utilizava o símbolo da estrela de cinco pontas. Para seu novo amigo, Eros Vicenzze, desenhou um V, só que de ponta cabeça.
Após desligar o telefone, continuou a observá-los por alguns segundos, rindo e conversando empolgadamente, voltados para a tela do computador de Cathy, antes de baixar os olhos para suas anotações.
Então, ao perceber o símbolo que tinha tão rapidamente escolhido para representar o novo amigo — o símbolo masculino, a metade da tatuagem de Catharina que tinha uma cor diferente — Agnes começou a pensar seriamente, que aquele podia ser o outro homem que aparecera em seus sonhos.
Sim, o segundo homem, porque o primeiro, todos sabiam de quem se tratava!
___ Parece que a Cathy já me superou completamente... — Dre dramatizou, interrompendo as divagações da bruxa — Só por que ele é maior, mais forte...
___ Dre, ele é definitivamente, mais! — riu, voltando os olhos para o carente amigo, que se debruçava sobre a mesa — Não vai me dizer que agora que conseguiu realizar o seu sonho de ir para a parte gráfica, está querendo voltar a ser fotógrafo?
___ Não, mas acho que vou me sentir muito sozinho trabalhando só com computadores. — afirmou, num tom de confidência e seriedade que só utilizava quando falava com Agnes, sua mentora — Vou sentir falta de estar o dia todo com a Cathy, rindo e brigando feito loucos, nos escondendo em favelas e banheiros sujos de bares...
___ Nossa, que romântico! — Nes brincou, mas sabia que ele estava falando sério — Acho que ela gostou do moreno, mas nunca vai esquecer esse negão aqui! – mimou-o.
___ Fiquei feliz quando ele chegou, sabe, mas agora já tô achando demais! O cara tá aqui há dois dias, já roubou a minha Cat e já tem fã-clube entre a mulherada!
___ Quem é que tem fã-clube? — Mel se interessou, sem fazer a mínima questão de disfarçar que estava de orelha em pé na conversa dos dois.
___ Acho que você é quem deve saber bem. — Nes retrucou — Sempre dá um jeitinho de ficar perto do Eros.
___ Imagine! Eu somente estou tentando reverter uma injustiça: por que Catharina está agindo como se ele estivesse aqui para trabalhar exclusivamente com ela?
___ Ela não está fazendo isso! Apenas tem a atenção dele, pois ambos têm uma entrevista com Bento Ferrari, daqui a pouco!
A baixinha conhecia muito bem o olho-gordo da colunista com relação à Cathy e sabia que não precisava de nada mais do que a verdade para colocar as coisas em pratos limpos.
Bufando, Mel afastou-se reclamando que não se conformava com a "proteção" que Catharina sempre teve naquela redação, mas que um dia, veria aquilo acabar!
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1 Uma brincadeira americana que pode ser traduzida livremente assim: uma vez que você experimenta um negão, não quer outra coisa!