Memórias Póstumas de Brás Cub...

By ProfMariBeneti

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Pertencente a uma família abastada do século XIX, Brás Cubas narra primeiramente sua morte e enterro onde apa... More

Prólogo - Ao Leitor
Capítulo 1 - Óbito do Autor
Capítulo 2 - O emplasto
Capítulo 3 - Genealogia
Capítulo 4 - A idéia fixa
Capítulo 5 - Em que aparece a orelha de uma Senhora
Capítulo 6 - Chimène, qui l' eût dit? Rodrigue,qui l'eût cru?
Capítulo 7 - O delírio
Capítulo 8 - Razão contra Sandice
Capítulo 9 - Transição
Capítulo 10 - Naquele dia
Capítulo 11 - O menino é pai do homem
Capítulo 13 - Um salto
Capítulo 14 - Primeiro beijo
Capítulo 15 - Marcela
Capítulo 16 - Uma Reflexão Imoral
Capítulo 17 - Do trapézio e outras coisas
Capítulo 18 - Visão do corredor
Capítulo 19 - A bordo
Capítulo 20 - Bacharelo-me
Capítulo 21 - O almocreve
Capítulo 22 - Volta ao Rio
Capítulo 23 - Triste, mas curto
Capítulo 24 - Curto, mas alegre
Capítulo 25 - Na Tijuca
Capítulo 26 - O autor hesita
Capítulo 27 - Virgília?
Capítulo 28 - Contanto que...
Capítulo 29 - A visita
Capítulo 30 - A flor da moita
Capítulo 31 - A borboleta preta
Capítulo 32 - Coxa de nascença
Capítulo 33 - Bem-aventurados os que não descem
Capítulo 34 - A uma alma sensível
Capítulo 35 - O caminho de damasco
Capítulo 36 - A propósito de botas
Capítulo 37 - Enfim!
Capítulo 38 - A quarta edição
Capítulo 39 - O vizinho
Capítulo 40 - Na sege
Capítulo 41 - A alucinação
Capítulo 42 - Que escapou a Aristóteles
Capítulo 43 - Marquesa, porque eu serei marquês
Capítulo 44 - Um Cubas!
Capítulo 45 - Notas
Capítulo 46 - A herança
Capítulo 47 - O recluso
Capítulo 48 - Um primo de Virgília
Capítulo 49 - A ponta do nariz
Capítulo 50 - Virgília casada
Capítulo 51 - É minha!
Capítulo 52 - O embrulho misterioso
Capítulo 53 - . . . . . . . . .
Capítulo 54 - A pêndula
Capítulo 55 - O velho diálogo de Adão e Eva
Capítulo 56 - O momento oportuno
Capítulo 57 - Destino
Capítulo 58 - Confidência
Capítulo 59 - Um encontro
Capítulo 60 - O abraço
Capítulo 61 - Um projeto
Capítulo 62 - O travesseiro
Capítulo 63 - Fujamos!
Capítulo 64 - A transação
Capítulo 65 - Olheiros e Escutas
Capítulo 66 - As pernas
Capítulo 67 - A casinha
Capítulo 68 - O vergalho
Capítulo 69 - Um grão de sandice
Capítulo 70 - Dona Plácida
Capítulo 71 - O senão do livro
Capítulo 72 - O bibliômano
Capítulo 73 - O luncheon
Capítulo 74 - História de Dona Plácida
Capítulo 75 - Comigo
Capítulo 76 - O estrume
Capítulo 77 - Entrevista
Capítulo 78 - A presidência
Capítulo 79 - Compromisso
Capítulo 80 - De secretário
Capítulo 81 - A reconciliação
Capítulo 82 - Questão de botânica
Capítulo 83 - 13
Capítulo 84 - O conflito
Capítulo 85 - O cimo da montanha
Capítulo 86 - O mistério
Capítulo 87 - Geologia
Capítulo 88 - O enfermo
Capítulo 89 - In extremis
Capítulo 90 - O velho colóquio de Adão e Caim
Capítulo 91 - Uma carta extraordinária
Capítulo 92 - Um homem extraordinário
Capítulo 93 - O jantar
Capítulo 94 - A causa secreta
Capítulo 95 - Flores de antanho
Capítulo 96 - A carta anônima
Capítulo 97 - Entre a boca e a testa
Capítulo 98 - Suprimido
Capítulo 99 - Na platéia
Capítulo 100 - O caso provável
Capítulo 101 - A Revolução Dálmata
Capítulo 102 - De repouso
Capítulo 103 - Distração
Capítulo 104 - Era ele!
Capítulo 105 - Equivalência das janelas
Capítulo 106 - Jogo perigoso
Capítulo 107 - Bilhete
Capítulo 108 - Que se não entende
Capítulo 109 - O filósofo
Capítulo 110 - 31
Capítulo 111 - O muro
Capítulo 112 - A opinião
Capítulo 113 - A Solda
Capítulo 114 - Fim de um diálogo
Capítulo 115 - O almoço
Capítulo 116 - Filosofia das folhas velhas
Capítulo 117 - O Humanitismo
Capítulo 118 - A terceira força
Capítulo 119 - Parêntesis
Capítulo 120 - Compele intrare
Capítulo 121 - Morro abaixo
Capítulo 122 - Uma intenção mui fina
Capítulo 123 - O Verdadeiro Cotrim
Capítulo 124 - Vá de intermédio
Capítulo 125 - Epitáfio
Capítulo 126 - Desconsolação
Capítulo 127 - Formalidade
Capítulo 128 - Na câmara
Capítulo 129 - Sem remorsos
Capítulo 130 - Para intercalar no capítulo 129
Capítulo 131 - De uma calúnia
Capítulo 132 - Que não é sério
Capítulo 133 - O princípio de Helvetius
Capítulo 134 - Cinqüenta anos
Capítulo 135 - Oblivion
Capítulo 136 - Inutilidade
Capítulo 137 - A barretina
Capítulo 139 - Aum crítico
Capítulo 139 - De como não fui ministro d'Estado
Capítulo 140 - Que explica o anterior
Capítulo 141 - Os cães
Capítulo 142 - O pedido secreto
Capítulo 143 - Não Vou
Capítulo 144 - Utilidade Relativa
Capítulo 145 - Simples Repetição
Capítulo 146 - O programa
Capítulo 147 - O desatino
Capítulo 148 - O problema insolúvel
Capítulo 149 - Teoria do benefício
Capítulo 150 - Rotação e translação
Capítulo 151 - Filosofia dos epitáfios
Capítulo 152 - A Moeda de Vespasiano
Capítulo 153 - O alienista
Capítulo 154 - Os navios do Pireu
Capítulo 155 - Reflexão cordial
Capítulo 156 - Orgulho da servilidade
Capítulo 157 - Fase brilhante
Capítulo 158 - Dois Encontros
Capítulo 159 - A semidemência
Capítulo 160 - Das negativas

Capítulo 12 - Um episódio de 1814

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By ProfMariBeneti


Mas eu não quero passar adiante, sem contar sumariamente um galante episódio de 1814; tinha nove anos.

Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o esplendor da glória e do poder; era imperador e granjeara inteiramente a admiração dos homens. Meu pai, que à força de persuadir os outros da nossa nobreza acabara persuadindo-se a si próprio, nutria contra ele um ódio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espírito de classe e simpatia de oficio, perdoava no déspota o que admirava no general, meu tio padre era inflexível contra o corso, os outros parentes dividiam-se; daí as controvérsias e as rusgas.

Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão, houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo público, julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te Deum, cortejo e aclamações. Figurei nesses dias com um espadim novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio; e, francamente, interessava-me mais o espadim do que a queda de Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca mais deixei de pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li muita página rumorosa de grandes idéias e maiores palavras, mas não sei por que, no fundo dos aplausos que me arrancavam da boca, lá ecoava alguma vez este conceito de experimentado:

— Vai-te embora, tu só cuidas do espadim.

Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público; entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos, de seus ministros. Dito e feito.Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres da Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico.

Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade seleta, o juiz de fora, três ou quatro oficiais militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração, uns com suas mulheres e filhas, outros sem elas, mas todos comungando no desejo de atolar a memória de Bonaparte no papo de um peru. Não era um jantar, mas um Te Deum, foi o que pouco mais ou menos disse um dos letrados presentes, o Doutor Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três; depois jurou aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote, davam-lho, ele glosava-o prontamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto que uma das senhoras presentes não pôde calar a sua grande admiração.

— A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Imenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, há dias, a Senhora duquesa de Cadaval...

E estas três palavras últimas, expressas com muita ênfase, produziram em toda a assembléia um frêmito de admiração e pasmo. Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas, discreteava com duquesas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contato de tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-no com respeito, alguns com inveja, não raros com incredulidade. Ele, entretanto, ia caminho, a acumular adjetivo sobre adjetivo, advérbio sobre advérbio, a desfiar todas as rimas de tirano e de usurpador. Era à sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de estômagos satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema, — ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravidade política do banquete. No meio do interesse grande e comum, agitavam-se também os pequenos e particulares. As moças falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do minuete e do solo inglês; nem faltava matrona que prometesse bailar um oitavado de compasso, só para mostrar como folgara nos seus bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que...Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos.

— Trás... trás... trás... fazia o Vilaça batendo com as mãos uma na outra. O rumor cessava de súbito, como um estacado de orquestra, e todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe aconcheava a mão atrás da orelha para não perder palavra; a mor parte, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplauso, trivial e cândido.

Quanto a mim, lá estava, solitário e deslembrado, a namorar uma certa compota da minha paixão. No fim de cada glosa ficava muito contente, esperando que fosse a última, mas não era, e a sobremesa continuava intacta. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz. Meu pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas, mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade travada entre os mais distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota, como a pedir-lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse, chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e repelões.

Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança, qualquer que fosse, mas grande e exemplar, coisa que de alguma maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o Doutor Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser coisa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo, na chácara aonde todos desceram a passear. Vio-o conversando com Dona Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona, que se não era bonita, também não era feia.

— Estou muito zangada com o senhor, dizia ela.

— Por quê?

— Porque... não sei por quê... porque é a minha sina...creio às vezes que é melhor morrer...

Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fusco; eu segui-os. O Vilaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volúpia.

— Deixe-me, disse ela.

— Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias são essas! Você sabe que eu morrerei também... que digo?... morro todos os dias, de paixão, de saudades...

Dona Eusébia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na memória algum pedaço literário e achou este, que mais tarde verifiquei ser de uma das óperas do Judeu:

— Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas auroras.

Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir; uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o mais medroso dos beijos.

— O Doutor Vilaça deu um beijo em Dona Eusébia! bradei eu correndo pela chácara.

Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado deveras com a indiscrição; mas, no dia seguinte, ao almoço, lembrando o caso, sacudiu-me o nariz, a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!

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