O Legado de Avalon: O Garoto...

Av Goldfield

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Quando a lenda termina... a aventura começa. Desde que a feiticeira Morgana Le Fay passou a perseguir e aniq... Mer

Capítulo 1: O futuro e eterno rei do futebol de botão
Capítulo 2: Aquela tarde medonha

Prólogo

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Av Goldfield

O Legado de Avalon

Livro I: O Garoto, O Velho e A Espada


Prólogo

O céu cinzento ocultava praticamente toda a luz do sol, as nuvens percorrendo rápido o firmamento como se, horrorizadas, não quisessem contemplar o triste cenário desenhado em terra. Sobre o solo, uma neblina um tanto espessa também flutuava – as brumas parecendo ter pressa em esconder o que ali acontecera de quem quer que fosse, como se formasse um lençol de vapor.

A verdade era que, se aquela neblina fosse mesmo um lençol, então ele logo estaria todo manchado de vermelho...

A planície de Camlann estava repleta de corpos, milhares de homens tendo ali tombado sem que suas armaduras e escudos de metal pudessem valer por eles. Cavalos também se encontravam caídos imóveis aqui e ali, os pobres animais perdendo a vida em meio ao confronto violento daqueles que os haviam cavalgado. Entre espadas partidas ao meio e lanças destroçadas, alguns guerreiros à beira da morte ainda erguiam seus braços ou tentavam levantar a cabeça para descobrir qual lado vencera – o espírito da luta prevalecendo apesar de tudo. Os símbolos que traziam em seus escudos e flâmulas, como era costume, representavam o exército pelo qual haviam lutado: naquele caso, a silhueta de um feroz dragão vermelho costurado sobre fundo branco em alguns; e uma balança dourada sobre fundo rubro nos outros.

Foi num escudo oval que possuía esse último emblema que o pé revestido de aço do cavaleiro, caminhando pelo cenário devastado, pisou naquele momento, fazendo o leve som da batida ecoar feito a marcha de um exército devido ao silêncio que predominava na planície. Olhando para o símbolo, o soldado sentiu nojo e cuspiu. Aquele desenho conseguia lhe ser mais repugnante que todo aquele massacre – o qual já atraía os primeiros corvos, voando em torno do cenário metros acima enquanto aguardavam o momento de se banquetear. Tratava-se do brasão do Usurpador, o traidor que causara tudo aquilo. O cavaleiro rogava tanto aos antigos deuses dos celtas quanto ao novo deus dos romanos para que o infeliz houvesse encontrado seu castigo, mas não era pelo corpo dele que ele procurava naquele momento. Entre outros possíveis sobreviventes – seus amigos, companheiros juramentados da Távola Redonda – Bedivere buscava acima de tudo seu rei.

Os cavaleiros de Camelot haviam chegado unidos e em formação a Camlann; porém era sabido desde os tempos mais antigos ser difícil manter consciência do que acontece ao redor durante a agitação de uma batalha. Bedivere se lançara contra os inimigos ombro a ombro com Percival e Bors, o Jovem, no entanto perdera os companheiros de vista ao ser cercado pelos homens do Usurpador – tendo de abrir caminho entre eles com sua espada enquanto via vários guerreiros de ambos os lados caírem. Tinha agora a armadura toda suja de sangue, o corpo dolorido e um corte um tanto profundo num dos braços, que não latejava tanto quanto a triste descoberta de ter sido um dos poucos cavaleiros da Távola Redonda sobreviventes. Mas, se não tinha como objetivo primordial encontrar mais de seus colegas que haviam sido igualmente poupados, não queria da mesma forma tropeçar em seus cadáveres. Se existia alguma palavra que o forçava a continuar se movendo pela terrível paisagem, naquele momento, era apenas uma...

– Arthur!

Gritou pelo rei, na esperança de que fosse respondido com outra exclamação, no mínimo um aceno. Sua voz cheia de penúria, porém, ecoou solitária pela imensidão da planície; sendo ouvida, além dos poucos ainda vivos, apenas pelos fantasmas dos que haviam partido. Porém não desistiu. Bedivere não estivera entre aqueles cavaleiros que anos antes haviam encontrado o Santo Graal – artefato sagrado tão importante – depois de desafios e mais desafios, mas não era por isso que se mostrava alguém capaz de abrir mão facilmente do que buscava. Continuou andando, pisando em escudos, elmos, peitorais. Momentos se passaram em meio à bruma, e o fato de o bravo cavaleiro nada encontrar fez com que fosse tomado por algo que estava longe de querer: o desespero. Seus passos se tornaram mais apressados, pesados, e por pouco não caiu duas vezes ao enroscar os pés em estandartes arruinados. Rogou de novo aos deuses, pedindo para que o grande Rei Arthur houvesse sido resguardado da terrível sombra da morte...

Até que avistou.

Havia uma área mais exposta da planície destruída que lembrava a clareira de uma floresta, os corpos mais próximos tendo formado uma espécie de círculo de alguns metros de diâmetro em torno do local – revelando que em vida aqueles soldados haviam aberto espaço para que os líderes dos dois exércitos ali se enfrentassem sem a interferência de seus comandados. Bedivere viu primeiro Mordred, o vil Usurpador, estatelado junto ao solo, braços cobrindo o peito que provavelmente havia sido ferido mortalmente por Arthur. Sua pele estava pálida e os cabelos loiros encaracolados, agora expostos após o elmo ter caído, haviam perdido todo o brilho ao tocarem a terra suja. O Rei de Camelot, por sua vez, encontrava-se bem próximo ao inimigo derrotado... também estirado no chão e com sangue a lhe escorrer pela armadura, embora o leve movimento de seu peito gerado pela respiração revelasse que ainda vivia.

Bedivere apressou-se, esperançoso de que o ferimento não fosse grave. A verdade era que, mesmo após a hedionda Morgana ter roubado a bainha mágica que curava instantaneamente as feridas de seu senhor, este se mostrara forte e resistente quanto aos danos recebidos em batalha. Naquele caso não seria diferente, e o dragão da Bretanha mais uma vez tornaria a se erguer... Mas, conforme se aproximou e se abaixou junto a seu amado rei, Bedivere percebeu que naquela ocasião a fortuna se revelava amarga.

Arthur tinha o peitoral da armadura em pedaços, a cota de malha que vestia por baixo falhando em esconder a gravidade da ferida que tinha no peito: um grande corte diagonal que parecia bem profundo. Bedivere estremeceu, abaixando a cabeça enquanto apoiava os braços na própria espada. A lágrima mais salgada de sua vida rolou por seu rosto quando concluiu que o rei estava morrendo.

– Sir Bedivere...

A voz enfraquecida, porém sempre majestosa, de Arthur, o estava chamando. O cavaleiro enxugou a face com as costas da mão revestida de ferro e fitou seu soberano. Sabia que aquela poderia ser a última vez em que contemplaria o semblante de cabelos e barba loiros do rei, figura que tanto aprendera a admirar. O moribundo observava-o com um olhar firme, as pupilas azuis quase fazendo Bedivere congelar, enquanto pedia:

– Pegue Excalibur... Leve-a de volta... ao lago. Esse foi o acordo. Assim deve ser feito.

O soldado tornou a estremecer. Excalibur, a espada mágica do Rei Arthur – arma sublime que tanta inveja causara entre seus inimigos, incluindo Morgana e sua mais terrível cria, o Usurpador. Nem mesmo os próprios cavaleiros da Távola Redonda sabiam com certeza qual era a origem de tal dádiva, embora alguns especulassem – talvez por intriga – ter sido dada a Arthur – com intermédio do sábio mago Merlin, então desaparecido – pela entidade das águas a quem os celtas chamavam "Nimueh", a Dama do Lago. Agora, em seus últimos momentos, Arthur confirmava a veracidade da história justamente a Bedivere, pedindo inclusive que ele devolvesse a espada à sua verdadeira dona.

– Meu rei, eu não sei se... – começou a responder o inseguro cavaleiro.

– Você deve – e Arthur, mesmo estando em suas últimas forças, frisou bem a palavra. – Pegue Excalibur. Tome um cavalo e siga até o lago que eu indicar... Ela precisa ser devolvida.

Tentando esticar um dos braços, gesto do qual logo desistiu devido a uma pontada de dor, o rei apontou para a arma, caída perto de si. Ao contrário do que muitos pensavam, Excalibur não era uma espada luxuosa ou rica – ao menos não dentro do conceito de "riqueza" que a maioria dos homens tinha, principalmente naqueles tempos de dificuldade. A lâmina de puro aço, que devido à magia antiga jamais perdia o corte, brilhava mesmo sob o céu nublado... mas, se não fosse por sua propriedade mística, nada mais seria senão aço. A guarda era simples, de metal singelo e sem qualquer tipo de adorno ou figura esculpida, compondo apenas base firme para ser brandida; o cabo também austero terminando num pequeno rubi de escuro tom vermelho – a única pedra preciosa presente na arma, remetendo ao imponente dragão dos Pendragon: linhagem de Arthur, herdada de seu pai Uther.

Bedivere, entretanto, conhecia bem ao menos um dos segredos daquele sabre, e já há algum tempo. Muitas vezes, quando acompanhara Arthur em suas batalhas, vira-o brandir Excalibur sob a luz do sol ou do luar; e, banhada pelos raios celestes, a lâmina exibia aos olhos atentos inscrições gravadas no aço, certamente por mágica, em antigas runas celtas – o cavaleiro tendo sido informado pelo próprio Mordred, antes de sua traição, sobre o que significavam...

"Leve-me".

O fato de a espada em si, além de Arthur, dar a ordem, forçou Bedivere a pegá-la, e os símbolos na lâmina brilharam justamente nesse momento, enquanto a erguia do solo com extremo cuidado. O peso era o de uma espada normal, mas sentia como se fosse tão custoso erguê-la quanto tirar do chão mil lâminas, devido à incrível responsabilidade – e poder – que aquela arma trazia.

O guerreiro voltou em seguida a contemplar seu rei... E ouviu, atentamente, as instruções que lhe foram por ele dadas.

X – X – X

Por mais incrível que parecesse, não foi difícil encontrar um cavalo vivo perto de onde Arthur se encontrava – o universo parecendo conspirar para que o último desejo do rei fosse atendido, e fazendo com que Bedivere acreditasse cada vez mais na forte magia que diziam predominar naquelas terras. Ainda vivo, porém não por muito tempo, o rei recusara o pedido do comandado para que o acompanhasse na jornada até o lago – e o guerreiro decidiu respeitar a escolha de seu senhor por morrer em silêncio e em paz. Tomando a montaria, pôs-se a cavalgar na direção indicada por Arthur, levando Excalibur embrulhada num pedaço de tecido vermelho que um dia compusera parte de uma bandeira com o emblema do Usurpador.

Por horas Bedivere cavalgou, atravessando pradarias, montes, florestas e riachos – todas as paisagens da Bretanha parecendo se alternar pelo caminho do cavaleiro, como um simbolismo da bela terra pela qual Arthur dera a vida. Por fim, no meio da tarde ainda nublada, chegou ao lago que o rei indicara, as águas cristalinas ondulando cálidas ao serem roçadas por uma brisa leve e reconfortante, bem diferente da atmosfera de morte que predominava em Camlann. Ciente de seu dever, Bedivere retirou a espada mágica do tecido que a envolvia, preparando-se para atirá-la, pelo cabo, dentro das águas...

Quando a lâmina brilhou mesmo sem luz, fenômeno que o guerreiro já concluía ser fruto de pura magia, mostrando o mesmo conjunto de runas que conhecia na superfície da espada... mas numa organização diferente, revelando o que até então falhara em perceber: havia duas mensagens distintas, uma de cada lado da lâmina. E aquela nova, em especial, dava seguimento às instruções do Rei Arthur, como um memorando ao inseguro cavaleiro:

"Deixe-me".

Era o que deveria fazer, atirá-la ao lago, para Nimueh. Mas...

Não poderia se desfazer assim daquele artefato tão perfeito. Durante as décadas em que a possuíra, Arthur unificara a Bretanha, repelira os brutais invasores saxões, protegera os fracos, fizera justiça contra os tiranos, guiara seus cavaleiros na busca pelo Graal... Seria mesmo destino aceitável que aquela espada agora repousasse, para sempre, nas profundezas daquele lago, destinada aos caprichos de uma incerta divindade? Bedivere já se perguntava o que seria da Bretanha, de Camelot, sem seu rei. Se aquela arma, verdadeiro prodígio, fosse perdida, então não haveria mais esperanças para o povo que ali habitava.

Atormentado, virou a lâmina do sabre em suas mãos, deparando-se com a mensagem oposta...

"Leve-me".

Decidiu-se. Não poderia cometer aquele crime. Tinha de levar a espada de volta a Arthur. Dando meia-volta com o cavalo, iniciou o caminho de regresso a Camlann, sentindo como se um peso enorme – bem maior que o da espada – houvesse sido retirado de suas costas.

X – X – X

Bedivere sentiu grande desconforto ao voltar a se deparar com o cenário do campo de batalha, porém procurou ignorar tudo e rumar diretamente ao pobre Arthur. O rei continuava deitado no solo, inspirando seus últimos ares, e lançou a ele novamente seus gélidos olhos azuis assim que se aproximou. As sobrancelhas se franziram e a boca se torceu, porém, tão logo o soberano viu que o embrulho com Excalibur ainda estava preso às costas do cavaleiro.

– Por que não respeitou minha vontade, Sir Bedivere? – indagou o rei, com toda raiva que sua condição permitia exprimir. – Deve devolver Excalibur ao lago. Este é meu último pedido!

– Mas meu senhor... – tentou argumentar o soldado. – Esta espada... ela é muito poderosa para...

– Por isso mesmo deve ser retornada ao local de onde veio – cortou Arthur. – Excalibur não pode cair em mãos erradas, ficar sob o poder de alguém que traga sofrimento à Bretanha. Ela estará segura com Nimueh, até que surja um guerreiro digno de recebê-la e liderar Camelot em meu lugar. Vá. Cumpra meu pedido, ou arrisque-se a permitir que meu fantasma o persiga pela eternidade!

Um pouco trêmulo, principalmente diante da ameaça, Bedivere concordou com a cabeça, regressando de imediato ao cavalo. Lançando um último olhar a Arthur e à desolação do campo de batalha, pôs-se a galopar mais uma vez em direção ao lago místico onde Excalibur deveria repousar.

X – X – X

Por mais horas Bedivere cavalgou, a tarde já findando, quando atingiu o lago novamente. Dessa vez desceu da montaria, seguindo com a espada às costas até a beira da água. Fitou mais uma vez as tranquilas ondulações em sua superfície, para então levar uma mão ao embrulho e puxar Excalibur novamente. A arma tornou a reluzir diante de si, e o lado da lâmina voltado para seus olhos manifestou o que queria:

"Deixe-me".

Contraiu os lábios e, fazendo-se de surdo para a voz interior que insistia para que fizesse o contrário, ergueu a arma pelo cabo... em seguida, com o máximo de força que conseguiu, arremessando-a para dentro do lago.

A espada rodopiou no ar, sua lâmina brilhando a cada giro como uma estrela cadente. Por fim, quando estava a um metro de afundar na água... foi apanhada pelo cabo, num pouso perfeito, por um braço feminino que emergiu repentinamente do lago. Revelando-se até o cotovelo, era revestido pela manga do que parecia ser um vestido semitransparente, o pulso adornado com um bracelete que aparentava ser feito de ouro puro. Segurando firme Excalibur, os dedos mantendo-a erguida reta como se o próprio Arthur a empunhasse para inspirar seus homens antes da batalha, a mão então tornou a mergulhar, levando-a.

– Nimueh...

Bedivere ficou alguns instantes, imóvel e em silêncio, contemplando o lago vazio... ao mesmo tempo ponderando tanto sobre o destino da espada quanto sobre aqueles mistérios mágicos que falhava em compreender. Tomando as rédeas, já virava o cavalo para regressar a Camlann... quando o inconfundível som de algo saindo das águas fez-se ouvir atrás de si.

Retornou a atenção ao lago. Dele viu sair, subindo aos poucos pela margem e assim se revelando de cima para baixo, uma figura humana. Ou melhor, mais que humana. A lindíssima jovem de olhos verdes e longos cabelos castanhos – ensopados pela água e pingando agora que a deixava – era claramente a mesma pessoa responsável por apanhar Excalibur, o que poderia ser concluído por seu traje: um longo vestido branco de corte único enfeitado com rendas e inscrições de runas em algumas partes, as mangas sendo semitransparentes e havendo detalhes dourados por toda sua extensão. Caminhando descalça até Bedivere, enquanto o mirava nos olhos e assim o deixava praticamente hipnotizado, a Dama do Lago, porém, não tinha a espada do Rei Arthur em mãos. Trazia ao invés disso, no colo, um embrulho branco como seu vestido, que se mexia. O cavaleiro, abismado, notou sem demora se tratar de um bebê, agitando os bracinhos – embora calmo – junto ao peito da entidade.

– Sir Bedivere... – ela o chamou, com uma voz que se assemelhava a mil dos mais sublimes pássaros cantando. – Aquele que retornou Excalibur deve agora cuidar do legado de Arthur. Tome-o. Como conhece o segredo da espada e seu local de repouso, deverá cuidar para que no futuro a linhagem Pendragon volte a brandi-la.

Estendeu em seguida a criança ao guerreiro, o qual, extremamente confuso, julgou não compreender palavra alguma dita por Nimueh, talvez por medo.

– O que quer dizer? – replicou inseguro.

– Meu filho me trouxe esta criança, deixando-a sob meus cuidados como provável maneira de se redimir da traição que perpetrou contra seu senhor. O pobre Rei Arthur deixará este mundo sem saber que gerou um herdeiro legítimo, de seu próprio sangue, além do maligno Mordred. Trata-se desta criança pura e inocente.

Um traidor desejando se redimir? Referindo-se a Camelot, Bedivere só conhecia dois traidores. O Usurpador, que agora jazia morto em Camlann e que todos sabiam ser filho de Morgana... e Sir Lancelot du Lac, antes o melhor dentre os cavaleiros da Távola Redonda, até ter se apaixonado pela Rainha Guinevere, esposa de Arthur, que junto a ele mergulhou o reino em profunda desgraça quando o adultério foi descoberto, levando à cadeia de eventos que resultara na tomada do trono por Mordred e o confronto final com o legítimo rei. Após ter matado alguns de seus próprios companheiros de Távola enviados para prendê-lo, Lancelot fugira com Guinevere e o casal estava já há meses desaparecido, deixando Camelot e seu rei à própria sorte. Era uma surpresa encontrar daquela maneira a mãe do dito cavaleiro, ainda mais sendo ela uma ninfa das águas.

– Mãe de Lancelot, Sir Lancelot du Lac? – quis confirmar Bedivere, ainda achando a história no mínimo perturbadora.

– Sim, sou mãe de Lancelot, mas de criação. Criei-o desde muito jovem, quando seus verdadeiros pais foram mortos a mando do terrível rei Claudas, do outro lado do canal.

De qualquer modo, ouvir falar mais uma vez sobre o outro traidor da corte de Arthur, ainda mais no momento de sua morte, encheu Bedivere de desgosto:

– Não posso aceitar nada que venha de Lancelot. Tudo que ele pode oferecer é mentira e traição.

– Nem mesmo o herdeiro de seu amado rei? – a voz da Dama do Lago se intensificou ligeiramente, embora seu tom continuasse harmonioso. – Escute, nobre cavaleiro. Lancelot errou, sim, em dar vazão à sua paixão proibida pela Rainha Guinevere. Mas está arrependido, isso posso lhe garantir, como a pessoa que melhor o conhece. Ele me procurou, disposto a se tornar monge pelo resto da vida numa forma de redimir-se de seus pecados, mas antes de se fechar no claustro quis me trazer este menino. Arthur também errou ao expulsar Guinevere de Camelot, cego pelo ódio que sentia por sua traição, sem dar chances de ela lhe contar estar grávida de um filho seu. O bebê nasceu no exílio, e Lancelot não poderia simplesmente assumi-lo. É preciso que a criança seja criada por alguém capaz de garantir que ela assuma o trono do pai tão logo atinja idade, e que a traga aqui para reaver a espada que lhe é de direito. Como Arthur o encarregou de Excalibur, Sir Bedivere, então eu o também encarrego do menino. Vá, leve-o e proteja-o. Seria a vontade de seu rei.

O cavaleiro hesitou por um ou dois instantes, mas acabou tomando o bebê em seus braços. Admirou-o em toda sua graça pueril, o rostinho abrindo um sorriso para si enquanto o guerreiro percebia que o pequeno herdara os penetrantes olhos azuis do pai.

– A criança ao menos tem nome? – perguntou a Nimueh.

– Tem sim, dado pela própria mãe, quando a teve pela primeira vez em seus braços: Amr.

"Amr". Um nome forte, adequado ao herdeiro daquele que Bedivere considerava o maior dentre os reis que um dia já reinaram entre os homens. Contemplou o bebê por mais algum tempo, chegando a brincar com uma de suas mãozinhas, e quando ergueu a cabeça para perguntar à Dama do Lago até onde exatamente deveria ir com a criança... a divindade das águas já havia desaparecido, deixando no ar apenas um leve aroma de flores misturado a pequenos pontos brilhantes, que num piscar de olhos se dissiparam.

Em silêncio, continuando a fitar o menino e se deixando envolver pela brisa do lago, Bedivere refletiu sobre as palavras de Nimueh. "O pobre Rei Arthur deixará este mundo sem saber que gerou um herdeiro legítimo"... Teria afirmado a mulher que o soberano de Camelot já havia morrido? Uma terrível dúvida tomou o soldado, unida à angústia de pensar que o rei poderia mesmo partir sem tomar conhecimento do filho que gerara. Apressado, o cavaleiro, com a criança nos braços, tornou a subir no cavalo, decidido a galopar mais uma vez de volta a Camlann. A probabilidade de obter êxito era baixa, mas... tinha de tentar mostrar a seu senhor o herdeiro que desconhecia, nem se fosse a última coisa que ele visse em vida.

X – X – X

Quando atingiu o limite da planície, a tarde terminava – as nuvens só então tendo se dispersado enquanto, em meio a um céu vermelho, davam espaço para que o sol, como uma esfera do mais puro ouro, se pusesse atrás do horizonte.

Bedivere avançou pelos corpos dos dois exércitos, agradecendo aos deuses pelo bebê ainda ser muito pequeno para entender o triste acontecimento que se desenrolara ali. Procurou durante algum tempo, julgando que o cansaço afetava seus sentidos... porém sem demora concluiu que o corpo do Rei Arthur, por algum mistério, não mais se encontrava ali. Durante um momento o coração do guerreiro se encheu de esperança, acreditando que o soberano, indomável como era, teria se recuperado do ferimento e se erguido sozinho do solo, retornando a Camelot junto com outros cavaleiros sobreviventes. A hipótese, no entanto, era forçada demais por sua mente atordoada com a miséria do rei, e provavelmente falsa.

Mas quando, junto do bebê, cavalgou para o braço de mar que se estendia terra adentro perto da planície, Bedivere teve uma visão mais maravilhosa do que poderia jamais prever... e arriscaria até dizer que, o que vislumbrou, conseguiu deixar seu coração mais acalentado e tranquilo do que ver Arthur vivo.

Distanciando-se sobre as ondas e iluminado pelos últimos raios de sol do dia, que lhe davam um aspecto vermelho-dourado, um pequeno barco de madeira portando uma imponente flâmula com o símbolo de Camelot carregava o corpo do Rei Arthur para longe. Apesar da crescente distância, Bedivere pôde perceber que o corpo do soberano fora limpo e colocado numa armadura intacta, suas mãos unidas pousadas sobre o peito e a viseira do elmo fechada – dando uma aura mística ao bravo comandante que unificara toda a Bretanha. Junto dele, de pé, também a bordo da embarcação, havia três mulheres em trajes alvos resplandecentes, revoando ao vento, em vigília em torno do rei. Uma loira, uma morena e uma ruiva, e Bedivere jurou conseguir identificar, por um breve instante, a própria Nimueh como uma delas.

Lentamente o bote desapareceu na linha do horizonte, como de encontro ao astro-rei em seu crepúsculo, recolhendo-se do mundo junto com ele. Estupefato pelo glorioso momento, Bedivere demorou a se recordar das lendas celtas e das inúmeras profecias em torno da figura de Arthur. Se estivessem corretas, o soberano estava sendo levado a Avalon, a Ilha dos Abençoados, para um dia retornar, majestoso, e retomar a liderança de seu amado reino.

– Até lá... – suspirou o cavaleiro, tornando a olhar para a criança em seu colo. – Camelot será sua, meu pequeno Amr. Sua e daqueles que vierem depois de você, enquanto seu heroico pai não retornar. És aquele com direito a brandir a divina Excalibur... e, enquanto não puder sustentá-la com o próprio punho, eu o protegerei com minha própria vida.

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