As ondas batiam furiosas nas paredes rochosas de Montanhalta. Mesmo na torre real, a mais alta das sete do castelo, ela podia ouvir a maré brava e o som poderoso da água contra a pedra ecoando eternamente no horizonte.
O dia estava ensolarado, aquecendo o frescor do outono. Contemplando aquela bela vista e com o rosto confortado pelo calor, era quase como se ainda fosse verão e suas preocupações fossem coisas de um dia que viria. De olhos fechados, a princesa inalou profundamente o forte cheiro de maresia tão característico e depois expirou devagar. Abrindo os olhos escuros como jabuticabas, ela avistou um grupo de pássaros brancos no céu azul, planando em suas asas estendidas rentes ao mar para depois alçarem vôo nas alturas. Eram livres como ela já não se sentia a muito tempo. A princesa desviou os olhos da janela aberta para a bandeira que estava pendurada na parede atrás dela. Se destacava diante das tantas peles de animais que recobriam as paredes do quarto, toda preta, estampada com o perfil da cabeça de uma águia bordada em vermelho sangue.
Era o animal que representava sua família, o emblema que carregava no broche de ouro em seu vestido e nos estandartes. Voando mais alto, diziam as palavras de sua casa, mas não sentia como se pudesse voar livre como aquelas míseras gaivotas faziam. Melancólica pelos sintomas de sua angústia, a mulher voltou sua atenção ao chá que fazia. Ela pegou a chaleira de água quente trazida pelos servos mais cedo e despejou o líquido com cuidado dentro da xícara de porcelana. Preparou uma pequena peneira de pano, enchendo-a de flores brancas poligonais e afundou-a na água fervida. Logo o doce cheiro do chá de artemísia subiu, o vapor aromatizado forte tomando conta do quarto.
Quando a água ficou esbranquiçada e turva, a princesa retirou a peneira, deixando que escorresse para depois colocá-la em cima de uma bandeja de prata na mesa diante da janela. Ela tateou a xícara, averiguando a temperatura e depois levou-a para os lábios rosados. O gosto era doce como o cheiro, delicado e açucarado com sutileza. Era o preferido de Isandra, mas nem mesmo ele conseguia tirar o amargor de sua boca. Ela deu as costas para o dia, contemplando o interior do quarto, e se viu desolada no silêncio absoluto de sua companhia muda. Aquele era o terceiro dia desde que seu pai dormira, um corpo magro e estático afundado em um amontoado de cobertores em uma cama imensa para ele. Lembrava-se dele como um homem grandioso e de punho, mas a cada lua que iluminava o céu, ela percebia o quão mais fraco o pai ficava.
O segundo gole do chá já não era mais doce. Ele desceu quente e áspero, difícil de engolir, como tudo o mais que tentava comer ou beber. Ela deixou a xícara na mesa, indisposta, e foi até a cama do pai no centro do quarto. Era um grande móvel retângular esculpido em madeira escura, com quatro pilares, um em cada ponta, onde se estendia uma grande cortina de seda que descia pelas laterais. O lado que dava para a janela tinha a cortina presa no momento, permitindo que o ar matinal entrasse, numa tola tentativa de dar cor ao pálido rosto do homem em coma.
Isandra sentou na borda da cama com delicadeza, pousando a mão sobre o peito do pai coberto e contemplou seu rosto branco. Ele já não era mais o jovem Rei que fora alguns anos atrás, com seu rosto marcado por rugas de expressão e tempo em diversas partes, os olhos fundos e com bolsas. Suas sobrancelhas, antes dois grandes amontoados de pelos pretos, eram agora grisalhas, tinha a barba feita por praticidade e até seus cabelos já eram ralos e acinzentados se comparados a antigamente. O estado de saúde precário havia acelerado o envelhecimento e fragilizado o corpo, como o maege havia dito que seria, e a veracidade daquelas palavras estava bem diante dos olhos da princesa. Ela percebia as nuances da palidez do pai toda nova manhã, como o quão escuras se tornavam diariamente as manchas abaixo dos olhos, e os quilos que perdia por sua invalidez.
Quando acordado, o homem sofria de febres intensas e alucinações. Já naquele estado era apenas um corpo inanimado que ainda estava vivo. A expressão cadavérica e a respiração fraca eram um presságio de que não viveria por muitas outras manhãs, Isandra sabia.
E sentia muito medo sobre o que a aguardava. Perder o pai era mais do que parecia ser, era perder também o homem que sentava no trono há trinta e três anos. Um reinado longo para o que se via. Lembrava-se de histórias incríveis de quando o Rei ainda era o príncipe Solidor, um jovem corajoso que bradava sua espada como se fosse seu braço. Diziam que ele havia vencido muitos dos selvagens sozinho durante a quinta invasão deles ao Portão das Aves, o castelo da família Hugh, mas ninguém sabia o número exato.
Pregada na parede ao lado da bandeira estava a armadura que ele havia usado naquele dia e que, desde então, era seu mais precioso traje. Feita de metal fundido como todas as armaduras eram, ela só se diferenciava das outras pela sua exótica coloração preta. No peito, o símbolo da Casa Heiral reluzia em vermelho, cravejado em rubi. As ombreiras eram grandes formas ovais repletas de ferros pontiagudos e o capacete, logo em cima, ostentava uma grande fileira de penas de araras vermelhas. Isandra podia ver seu pai usando-a quando fechava os olhos, como na última vez, no torneio de comemoração ao seu quadragésimo sétimo dia. Ainda era um homem de energia e calor, que bebia com seus homens e compartilhava memoráveis momentos de batalha com seus irmãos de guerra. Mas o Rei de seus pensamentos era muito diferente do que estava deitado naquela cama. Queria se lembrar daquelas histórias quando olhava para o pai doente todas as manhãs, mas não havia nada ali além do cheiro fúnebre de alguém acamado.
A tristeza que sentia em seu coração transparecia nas salgadas lágrimas que escorriam de seu rosto quando bateram na porta do quarto. Ela limpou com pressa os vestígios com as costas da mão direita, levantando-se silenciosamente da cama. Ajeitou o longo vestido bordô que usava e se aproximou da porta.
"Princesa Isandra", uma voz rouca ecoou do outro lado. Ela reconhecia a voz de um dos guardas-reais, Theobald Magrace.
"Quem deseja?", ela questionou. As visitas ao quarto do pai eram controladas por ela com muito cuidado.
"O capitão da guarda-real, sor Edamor Heiral", o guarda respondeu.
Seu tio. Aliviada, mas temerosa em demonstrar suas fraquezas, Isandra ajeitou a postura, conteve seus sentimentos e respirou profundamente antes de destrancar a porta. O som do ato foi o suficiente para que os guardas entendessem e abrissem a porta do lado de fora do quarto, permitindo a passagem do convidado.
Seus passos rangiam conforme ele andava. Ele vestia uma grande e completa armadura de metal bem polido e trabalhado, e no peitoral havia uma grande coroa dourada, esculpida no metal em alto relevo pelo mais habilidoso dos ferreiros. Descia de suas costas uma longa capa branca e dourada, símbolo da guarda-real. A única peça da armadura que não usava era o capacete, seu rosto à mostra, todo rígido e queixo largo. Suas sobrancelhas eram escuras e cheias, sua barba e um cabelo pretos começavam a clarear pela idade. Ninguém em todo o reino poderia negar seu parentesco com o Rei, e a própria Isandra via seu pai no tio, tantas eram as semelhanças.
Quando entrou no quarto, Edamor cumprimentou a princesa com um movimento de cabeça curto e rápido. Tinha pressa em reverenciar o Rei, e foi o que fez logo em seguida. Ele se ajoelhou diante da cama, os olhos fechados em respeito, ficando assim por alguns instantes. Só depois de se levantar ele finalmente falou.
"Peço desculpas por interrompê-la, Vossa Alteza."
"Você é meu tio, irmão do Rei e capitão da guarda-real", a princesa respondeu com carinho. "Não me interrompeu e sabe que pode vir aqui quando desejar estar com ele. Quem mais poderia assegurar-lhe melhor?"
"Eu bem sei", concordou, voltando os olhos escuros para o Rei. "Mas cuidar dos feridos é uma tarefa para o maege. Eu prefiro manter a imagem do grande homem que Solidor foi em minha memória", e desviou-os logo em seguida.
"É difícil", ela lamentou, piscando os olhos com força para evitar que chorasse de novo. Ela dedicou sua atenção mais uma vez para a armadura. "E pensar que não o verei mais usando sua armadura."
O homem contemplou a peça na parede com encanto nos olhos. Em passos curtos, foi em direção a ela para observá-la mais de perto.
"Nosso pai mandou que fizessem armaduras para nós quando completamos nosso treinamento. É uma tradição real. Como o irmão mais velho e herdeiro do trono, ganhou a sua primeiro", ele deu um riso abafado, lembrando-se daqueles anos. "Ele tinha escutado alguma conversa do maege sobre outros minérios que poderiam fazer uma armadura melhor e mais resistente. Com seus dez anos, o garoto não parou até encontrar um ferreiro no reino que fosse capaz de fazer isso."
"É mesmo?", ela perguntou, curiosa e ansiosa por momentos queridos de seu pai. "Ele é um homem decidido, parece que desde pequeno. Que minério escolheu?"
"Cabeça-dura", Edamor a corrigiu com sutileza. "Obsidiana, por isso a cor. Mas não fez diferença alguma. Solidor gostou mesmo assim, disse que o destacava dos outros comuns, como haveria de ser com um príncipe. Me lembro como se fosse ontem da nossa primeira batalha, a quinta invasão dos selvagens ao Portão das Aves, e de como ele parecia um borrão preto com sua nova armadura no meio do caos que eram aqueles selvagens", sua voz mudou, como se pensasse em um futuro que poderia ter acontecido. "Havíamos subestimado os números inimigos, mas o Carniceiro sorriu para nós aquele dia e nos deu a vitória. Perdemos muitos dos nossos, mas graças aos deuses seu pai nasceu valendo como muitos homens."
As palavras dele eram comoventes. Sabia da grande amizade e respeito que Edamor nutria pelo seu pai e a história de irmandade que tinham.
"Ele deve muito a você, tio."
"E eu à ele. Mais que minha vida", respondeu com a voz séria.
"Com a sua espada em mãos, lutou para salvar seu Rei e irmãos", Isandra recitou, cantarolando.
"O bardo fez um bom trabalho", ele admitiu. "A canção do Cavaleiro Negro faz jus ao feito do seu pai. Quem sabe o que teria se tornado a Terra Alta se tivéssemos perdido naquele dia?"
"Não posso imaginar o terrível fim que as crianças e mulheres do Portão das Aves teriam nas mãos dos selvagens. É horrível demais até para pensar."
"Solidor foi mais que um Rei. Foi um herói durante toda a sua vida, reinando com sabedoria e honra. Cuidou do reino e tudo o que fez desde que conheceu sua mãe foi para mantê-lo em paz. Infelizmente não posso dizer que ele vai continuar fazendo isso. Os lordes querem as respostas para seus pedidos, o povo de Montanhalta precisa ser ouvido em audiência e temos assuntos urgentes a serem tratados na corte, princesa."
"Nós temos o senhor da lei para isso. Ele pode resolver esses assuntos por enquanto", respondeu com a voz desgostosa, sem compreender a súbita mudança na conversa.
"Lorde Undo tem estado presente nos compromissos reais desde que a doença chegou. Ainda assim, a corte pergunta sobre o Rei todos os dias. Eles querem notícias e alguém para sentar no trono. Meu irmão não acordará, sobrinha", ele respondeu, aproximando-se dela. Seus olhos eram opacos de tristeza, mas convencidos da verdade. "Alguém precisa reger o reino até que tudo se acerte."
Ela não conseguia ver como tudo poderia se acertar. A doença acabaria com a vida do pai em breve e não havia nenhum homem que pudesse receber sua coroa, pois não havia tido filhos homens e seu único irmão vivo tinha sua vida juramentada para a guarda-real. Edamor nunca poderia ter títulos ou terras.
"Você quer dizer até que meu pai morra e meu marido volte para ser coroado o novo Rei."
"O primeiro Rei que não pertence à Casa Heiral desde a queda do Império. Como você disse, será difícil, mas o reino precisa de alguém. E agora. Você é filha única e herdeira legítima do trono, a futura rainha de Terra Alta. A távola a nomeou princesa regente."
Surpresa com as palavras do tio, Isandra permaneceu imóvel e sem resposta. Nunca imaginou que aquela conversa aconteceria. Ouvira falar sobre rainhas regentes, quando seus Reis morriam e seus filhos eram pequenos demais para assumir, mas nunca de alguma princesa regente. Não sabia sinceramente se conseguiria tomar decisões como regente do reino, quaisquer que fossem, especialmente naquelas circunstâncias. Não conseguia pensar em nada além do pai, nos momentos que tivera com ele e no estado de sua saúde. Controlar o reino e lidar com lordes e suas excentricidades típicas da nobreza não era o que ela tinha em mente para viver em seu luto.
"Não sirvo para isso, tio. Fui ensinada a ser rainha, não a comandar. O que poderia fazer?"
"O que desejar fazer. Eu temo que não haja outra opção por enquanto."
Os passarinhos voam, as águias governam os céus, seu pai dizia às vezes. Aquelas palavras pareciam besteiras quando era mais jovem, apenas ditados antigos de uma família tradicional, mas o peso delas caíram em seus ombros, mais verdadeiras naquele instante do que jamais pôde imaginar. No fundo ela sabia que em algum momento teriam de tomar aquela medida, especialmente por seu marido estar ausente, mas não esperava que fosse chegar antes mesmo do corpo de seu pai esfriar.
"O que é tão urgente assim?"
"Uma terrível notícia", disse com pesar. "A profetisa foi assassinada no Templo Laranja esta manhã."
Horrorizada, Isandra arregalou os olhos.
"Quem poderia cometer tamanha barbárie?", a princesa questionou.
"Direi palavras malditas agora, que os deuses me perdoem, mas a assassina foi uma de suas próprias servas."
"Pelos deuses", ela lamentou profundamente, pensando em sua antiga amiga, filha da profetisa. "E Omira já sabe?"
"Lady Omira aguarda sua chegada junto aos outros na távola, princesa. Por coincidência ela havia recém chegado em Montanhalta para visitar a mãe em pessoa. Viu o corpo com os próprios olhos."
Mesmo a mãe tendo sido assassinada, Omira estava lá embaixo, presente e cumprindo seus deveres em honra ao nome de sua família. Perceber aquilo deixou Isandra frustrada consigo mesma, como uma gaivota, fraca e miserável diante de uma águia. Enchendo-se de coragem, ela deixou o tio para trás, caminhando calmamente até a cama onde o pai dormia. Olhou para ele uma última vez, tocando delicadamente com os magros dedos o rosto ressecado e enrugado em uma carícia íntima. Sabia que precisava ser forte naquele momento e tomar alguma atitude, mas toda despedida que tinham era dolorosa. Não tentou segurar a lágrima que caiu solitária de seu olho.
Pode ser a última, lembrava-se sempre
"Me leve até eles", pediu quando terminou.
Edamor concordou em silêncio, respeitando o momento de sua sobrinha. Ele foi até a porta, batendo na madeira dela uma vez em sinal para os guardas. Rapidamente ela se abriu diante deles, revelando uma grande escadaria em espiral guardada por dois altos homens vestidos de armadura completa e uma longa capa branca e dourada. Os guardas-reais abaixaram as cabeças em respeito à princesa e ao seu capitão quando eles passaram. Quando fecharam a porta do quarto, o som ecoou por toda torre, reverberando no quarto da latrina e na grande escadaria em espiral.
O caminho era difícil para os desatentos, mas a princesa descia os degraus com extrema facilidade. Havia nascido e crescido naquele castelo e o conhecia como a palma de sua própria mão. Nem mesmo os cortantes ventos gelados que se infiltravam no castelo pelas frestas das grandes pedras cinzas que formavam as paredes a incomodavam. Ela observava os feixes de luz que entravam pelas estreitas janelas verticais quando a luz foi bloqueada pelos cumes das mais altas montanhas da cordilheira. Logo depois os degraus acabaram em um corredor iluminado pelas mesmas pequenas janelas que culminou em um cômodo circular com outros seis corredores. Sem esperar o tio, a mulher abriu a porta fechada que dava acesso à sala do Rei, o cômodo particular de seu pai e onde estava a távola.
Era uma grande sala retangular dividida em três por paredes vazadas de madeira com trepadeiras entrelaçadas em seus espaços, a própria porta como ponto central. A mesa do Rei diante da princesa estava impecável, principalmente porque ninguém se sentava ali faziam dias, mas além da grande poltrona de madeira não se via mais nada senão a saída do lado oposto. As vozes, entretanto, denunciavam a presença de outras pessoas. Conhecendo o caminho, Isandra se dirigiu até a pequena passagem à esquerda, onde encontrou um amplo espaço ocupado por uma grande mesa redonda.
A távola era feita de um pedaço de rocha das próprias montanhas esculpida, seu tom arenoso e avermelhado tão característico que olhando do ângulo em que a princesa estava ela quase se camuflava entre as próprias montanhas, visíveis da grande janela que ia quase de ponta a ponta da sala. Sete cadeiras formavam o círculo, mas só quatro delas estavam ocupadas. O homem que ocupava a cadeira à esquerda da que pertencia ao Rei tinha um corpo enorme, seus músculos definidos pelos anos de treinamento. Seu nome era Avaro Hugh, o senhor da guerra, e seu rosto era marcado por uma extensa cicatriz avermelhada e carnuda que subia de sua bochecha esquerda para o meio de sua cabeça sem cabelo, como uma lembrança explícita de uma batalha que quase o levou a morte. Os olhos eram esbugalhados e no peito ele tinha um colar com um pingente de duas espadas cruzadas. Ele se levantou logo que a princesa chegou, fechando os olhos e abaixando a cabeça em respeito.
O gesto foi copiado pelo que se sentava ao lado, lorde Raydon Highwind, o senhor da moeda. Era um homem mais baixo e de rosto redondo com um bigode marrom abaixo do nariz gordo. Vestia uma toga caramelo toda bordada de linha e três grossas correntes de ouro caiam de seu pescoço, uma delas com uma grande moeda redonda pendura do tamanho de cinco polegares. Era um homem com marcas dos anos, cabelo castanho opaco molhado do seu suor e olhos que pareciam sempre alerta. Ele conversava com lorde Undo Dermon, o senhor da lei que usava uma longa camisa de seda branca com bordados pretos, uma calça do mesmo tecido escuro e uma corrente de ouro com uma balança em equilíbrio como pingente. Tinha o mais refinado dos gestos, um homem de visível classe.
Na cadeira vazia que dava de frente para a janela estava uma mulher já de pé que contemplava a vista. De costas para Isandra, a princesa via que o cabelo da mulher era caramelo e chegava em sua cintura, arrumado em uma bela trança da grossura de seu antebraço. Ela usava um belo vestido bege com lindos bordados em laranja, digno da nobreza, mas quando se virou para a chegada da princesa o seu rosto era devastado. Os olhos eram vermelhos ainda, mas sua postura era impecável diante da presença real.
"Minha amiga", a princesa disse com lamento enquanto ia até a mulher para abraçá-la. Não a via há mais de oito verões.
Omira demorou um instante para reagir, mas envolveu a princesa em seus trêmulos braços. Isandra sentiu-se reconfortada como acreditou que a outra ficaria, ciente de que dividiam a mesma dor e o mesmo sentimento de perda há tanto tempo. O suspiro que escapou dos pulmões foi como um grande peso deixado para trás.
"Me parte o coração reencontrá-la nessas circunstâncias. Eu sinto muito", ela finalmente disse, voltando os olhos para Omira. "A profetisa foi a voz dos deuses para os homens, trazendo as verdades divinas e nos guiando por seus caminhos. Ajudou meu pai a reinar com sabedoria e respeito perante os deuses. Agora que sua vida entre nós acabou, que eles a guiem até suas irmãs de dever, onde terá a verdadeira paz."
"Assim será, pois minha mãe cumpriu com o seu destino na terra", respondeu com olhos úmidos de cumplicidade, mas também havia alguma força neles. "E agora cabe ao conselho cumprir o destino da culpada por este crime."
Ao lado da cadeira da profetisa o homem que a ocupava se levantou por último, mais devagar que os outros. Ele usava uma máscara de madeira no rosto que o cobria por inteiro, deixando apenas seus olhos à mostra. Reverenciando a princesa com respeito, a mão enluvada sob o peito coberto pela longa toga preta que geralmente usava, ele tombou o corpo para frente com dificuldade. Sua idade há muito atrapalhava seus reflexos.
"Vossa alteza", o maege Baltazar disse, sua voz abafada pela máscara, rouca e seca. "A garota foi capturada e está no calabouço do castelo neste exato momento, princesa. Estamos aqui para fazer como você ordenar, conforme a távola decidiu."
Olhando o rosto de um por um, Isandra se lembrou do que já havia ouvido falar de cada um daqueles homens antes nas conversas pessoais que tinha com seu pai. Eram deveras diferentes uns dos outros, com suas peculiaridades e suas áreas, mas são apenas lordes, passarinhos que mal podem alcançar o vôo das águias.
"Deixe-me ao menos me sentar primeiro", ela pediu, passando pelo maege para contornar a mesa.
Só parou quando chegou do outro lado, onde estava a cadeira do pai. Ela era maior que as demais, esculpida em madeira e estofada com couro e lã de ovelha para parecer um trono mais confortável. Nos encostos subiam duas águias, uma de cada lado, suas asas abertas riscadas pena por pena e seus bicos afiados apontados para cima. Quando Isandra se sentou ali, ela se sentiu pequena e apagada entre aquelas grandes aves. Não parecia adequado que ela estivesse ali e até o vento que entrava pela janela aberta arrepiava sua nuca. Mas quando olhou para frente e viu sua grande amiga sentada ali, de repente as coisas começaram a fazer mais sentido daquele ponto de vista.
Para ocupar a última cadeira vazia, Edamor se sentou, sua armadura parecendo extremamente desconfortável para aquilo. Agora, com o conselho formado diante de si, Isandra percebeu que ocupar o lugar de seu pai era como decretar sua morte. Tomada pela dor em silêncio, foi chamada pelo tio.
"Se me permite seguir adiante, vossa alteza, não vejo outra saída a não ser execução pública", disse o tio.
"Como podemos nós decidir o destino de uma serva escolhida pela própria deusa laranja?", disse o lorde Raydon. "Isso seria terrível."
"Ela assassinou a sangue frio a profetisa, lorde Raydon!", lorde Avaro gritou enquanto batia com sua mão fechada na mesa. Sua raiva era estampada em sua expressão de desprazer. "Um ato abominável até mesmo se vindo dos nossos piores inimigos. É um crime contra o deuses! Não há perdão para isso entre os homens."
"Talvez nem mesmo entre os deuses, mas isso é o Senhor quem dirá. Seu crime a tornou indigna de andar entre os homens" disse maege Baltazar, a voz abafada pela máscara.
"Nunca antes uma profetisa foi assassinada. Ninguém em sã consciência cometeria tamanho sacrilégio. Quem não teme a ira dos deuses?", lorde Undo disse, a voz grave e eloquente.
"Vivemos um momento único", o maege concordou. "Sem Rei, sem Profetisa, servos se rebelando contra seus deuses e selvagens que cercam nossas muralhas com sua sede por matança."
"Isso é obra da bruxaria que mancha nossa terra", Avaro se alarmou, o rosto já avermelhado. "Essa carne imunda apodrecerá nosso solo e contaminará nossa água. Que seja queimada para refrescar a memória do povo sobre o perigo que sempre nos espreitou. Que seu espírito arda até que não sobre resquícios de sua profanidade."
"Nós não sentenciamos alguém à fogueira desde o reinado de meu avô, o Rei Adamor", Edamor argumentou. "As bruxas foram caçadas até que não sobrasse uma delas sequer. Me diga como uma simples garota teria escapado da Armada Cinzenta."
"Não me pergunte como bruxas fazem seus truques medonhos, mas é um tolo se acha que as crias que pariram ainda não pisam no mesmo chão que você e eu. Elas podem estar em qualquer lugar, profanando contra os deuses com seus cultos e atrocidades que fazem em nome da criatura demoníaca que veneram para invocar o mal. Eu não posso acreditar que de repente o Rei está doente! Eu conheço Solidor, ele foi meu irmão de batalha, o vi matando homens até mesmo sem nenhuma arma na mão. O que poderia tê-lo adoecido senão a praga? É o nosso castigo por termos permitido que essas criaturas pisassem em nosso reino livremente!"
"A praga?", Raydon repetiu, boquiaberto. "Você enlouqueceu. Ela acabou faz centenas de anos."
"Não sabia que era um homem tão supersticioso, lorde Avaro. Percebo que fez pouco uso da sua razão", o maege disse com visível deboche, mesmo que seu rosto não tivesse expressão alguma. "A ignorância pode matar todos nós, mas não a praga. O último caso foi há centenas de anos, antes mesmo de Terra Alta se tornar um reino independente. O que todo esse tempo nos ensinou foi que a doença não vive sem um hospedeiro. Está extinta."
"Se é tão inteligente, e não é a praga o que mata nosso Rei, por que não consegue curá-lo? Não é essa a sua função, maege? Salvar pessoas com o conhecimento do deus verde?", ele perguntou, bufando ar pelas narinas como um animal raivoso.
Quando o maege voltou a falar, era perceptível que sua voz não tinha mais o tom de deboche. Era pesada e baixa, como se envergonhasse-o dizer o que iria dizer. Ele olhava diretamente nos olhos de Isandra, grandes orbes escuras que flutuavam na madeira. "Eu sou um homem como qualquer um, incapaz de ultrapassar meus limites da carne. Só os deuses podem ajudar agora."
O peso daquele olhar deixou a princesa incomodada. Ela desviou rapidamente a visão, focando-os no senhor da guerra, vermelho de fúria. Ela sabia que Avaro era um homem de fibra e gênio forte, mas sua cabeça começava a doer com o rumo que o conselho tomava.
"Meu tio me chamou porque disse que a távola precisava de mim para compor o conselho, não para discutir contos de terror que as mães contam para os filhos."
Impactado pelas repentinas palavras da princesa, o homem se ajeitou em sua cadeira e manteve-se em silêncio, respondendo com um único gesto positivo e incomodado de cabeça. Satisfeita, Isandra voltou sua atenção para a única que não tinha falado nada, a filha da profetisa. Ela fitava a mesa, vaga em seus pensamentos como a princesa já estivera tanto nos últimos dias.
"O que você acha, Omira?", finalmente continuou a falar.
Erguendo subitamente a cabeça, a outra respondeu.
"Seria impossível que uma bruxa vivesse no templo ao lado de minha mãe. Ninguém é capaz de esconder sua verdadeira face para a profetisa, mesmo que ela nada veja."
"A profetisa traz a verdade divina", a princesa concordou. "E os deuses te disseram alguma coisa?"
A mulher negou com a cabeça, visivelmente abalada.
"Nada ainda", admitiu. "Mas sei o que vi com meus próprios olhos. Era minha mãe já sem vida, uma adaga cravada em sua barriga e a serva com suas mãos manchadas de sangue. Eu garanto que não havia bruxaria nisso. Que ela pague pelo que fez, mas como todo homem e mulher que viveu na fé dos deuses verdadeiros já pagou."
"Lady Omira não é a Profetisa ainda", Avaro resmungou novamente, a voz rude. "Então por que ocupa essa cadeira e opina sobre as decisões do conselho?"
"Tem sido assim por gerações", o maege interrompeu, respondendo antes que outro fizesse. "Como a mãe de lady Gennady foi Profetisa antes dela, e a mãe de sua mãe ainda antes disso."
"Como podemos ter certeza que é ela que vai receber o dom da Mensageira?", ele insistiu, desafiador.
"Está questionando a hierarquia das Profetisas? O desejo dos deuses?! Quem mais ocuparia a cadeira senão sua primogênita?", Undo questionou, começando a ficar nervoso também.
"Eu entendo a preocupação de lorde Avaro", Omira garantiu. "O dom é dado para a sucessora quando assim deve ser, mas minha mãe foi assassinada e o ciclo foi quebrado", ela parou por um instante, desviando momentaneamente os olhos para a janela. "As coisas serão diferentes. Será quando os deuses tiverem algo para dizer aos homens."
"Como sempre foi. Os deuses sabem o que fazem. Omira ocupará o lugar de sua mãe no conselho porque é seu direito", declarou Isandra. Ela olhava diretamente para lorde Avaro enquanto seguia falando. "A serva será sentenciada a cair até a morte como mandam nossas tradições ao pôr-do-sol. Lorde Undo, convoque todos os lordes da corte de Montanhalta para que testemunhem a justiça do deus azul sendo feita. Tendo sido nomeada princesa regente pela távola, é o que eu ordeno."
Suas palavras foram firmes e decididas. Embora o rosto de Avaro fosse de descontentamento, testa enrugada e olhos carrancudos, ele abaixou a cabeça para a princesa. "Como ordena, vossa alteza."
"Serão poucos", disse Undo, dedicando olhos atentos para a princesa. "Muitos deles partiram com seus homens juntos da caravana do príncipe Rojo para o Portão das Aves. Os que continuam aqui podem não receber a mensagem a tempo. O sol já começa a descer."
"Que suas ladies façam em seus nomes então", ela argumentou. "Eu tenho duas crianças e obrigações de uma mãe. Perdemos hoje nosso contato direto com os deuses, mas também a lady Gennady, uma mulher nobre e honrada da Casa Magrace. Não faremos disso um circo para nosso povo. O dia está claro hoje, mas a noite será fria e repleta de tristeza. Que seja rápido para que possamos viver o luto em paz."
De testa enrugada de preocupação, lorde Undo Dermon concordou. "Como ordena."
"Só há um problema", observou o maege. "Todos sabemos que aquele que dá a sentença é quem brande a espada. Assim como fez o Cavaleiro. Temo que... é com respeito, eu sinto em dizer, mas vossa alteza não tem uma espada."
Porque era uma mulher, não um homem. Uma princesa, não um príncipe. Ela nunca havia sido ensinada sobre guerra ou espadas.
"Minha espada serve à princesa legítima de Montanhalta, assim como devem servir todas as outras espadas do reino", disse sor Edamor. Se virando para a sobrinha ele colocou a mão no peito em juramento.
Agradecida, a princesa frisou os lábios em um pequeno e vazio sorriso. "Obrigada, tio."
Depois disso se levantou, exausta da conversa e ciente da pressa que deveria ter em se arrumar se queria estar presente no Penhasco Ecoante na hora que determinou. Todos os membros do conselho se levantaram logo em seguida, e ela olhou para o rosto de cada um deles mais uma vez.
"Isso é tudo que discutiremos hoje. Precisamos nos apressar", disse ela.
"Vossa alteza", as vozes ecoaram na sala da távola.
Dedicou um último olhar para Omira enquanto os membros do conselho deixavam a sala. Poderiam trocar seus lamentos depois.
Antes que Edamor também o fizesse, a princesa se aproximou dele. "Há um favor que preciso de você, tio."
Esperaram que os demais saíssem pela porta, deixando-os sozinhos uma segunda vez.
"Diga-me", ele respondeu.
"Me envergonha dizê-lo", admitiu.
"Minha sobrinha", ele disse, abandonando as formalidades. Foi como se ele rompesse a barreira que a própria Isandra havia rompido antes. Um guerreiro dando lugar a um pai que ela nunca tinha visto no homem. "Somos família."
"Sim", concordou, embora ainda estivesse desconfortável. "É mesmo sobre família. Eu não gostaria que Sodan assistisse a tudo. Se o menino ficar sabendo estará lá antes de todos nós. Sabe como ele é sorrateiro como um rato e esperto como dois", disse preocupada, embora achasse graça e orgulho na esperteza do filho. "Ele deve estar na biblioteca com Marya. Pode encontrá-la e dizer que entre no castelo com Sodan e fique com ele até o jantar?"
"Marya adora o garoto. Me alegra vê-las tão próximas. Há muito que devem compartilhar uma com a outra", pensou nas duas sobrinhas com carinho, mas tinha olhos cuidadosos e pesados. "Ainda assim o príncipe já está na idade de começar a entender como as coisas são. Um dia será Rei, daqui muitas e muitas estações, mas faltam poucas para que comece seu treinamento para se tornar um guerreiro."
"Não hoje. Por favor. Deixemos a criança ser só uma criança enquanto ainda pode."
Num suspiro pesado, ele concordou. "Farei como pede, sobrinha, mas chegará um dia em que não poderei mais."
"Será quando fizer seu oitavo dia de nascimento. Até lá você tem minha gratidão por mantê-lo longe dos assuntos dos homens grandes. Obrigada. Agora preciso subir para ver como Wanda está com Siele antes de me aprontar para o momento diante da corte."
"Não se esqueça que o tempo passa depressa, assim como passou para aquela velha. Não sei como ainda consegue segurar um bebê no colo. Quando era sua ama seu cabelo já era cinza de tanta poeira", comentou com indignação. Ele dedicou mais um olhar de carinho para a princesa antes de dizer: "Mas vá. Nos despedimos por enquanto."
Ele abaixou a cabeça sutilmente em respeito e saiu pela porta.
Apressada, a princesa passou pela mesa do pai e entrou novamente no hall dos corredores, pegando o último deles e caminhou por ele como fez antes. Daquele ângulo, distante no horizonte, ela via a grande campina que se estendia depois da cordilheira, tão distante e extensa que não se via nada além de um mar castanho do trigo seco pelo clima do outono. Sem dedicar muita atenção, ela alcançou os degraus e os subiu. A torre era idêntica a do Rei, com uma latrina e uma porta que dava para o quarto no final, mas nenhum guarda protegia aquela. Ela estava destrancada quando Isandra a empurrou para frente.
O quarto da princesa era espaçoso e suas paredes também eram todas cobertas por peles grossas de urso e outros animais para que o vento não entrasse. Suas mobílias tinham tons mais escuros, mesmo que também fossem todas de madeira trabalhada. Ao lado da grande cama de casal que ela costumava dividir com seu marido estava o pequeno berço de sua filha mais nova. Ela percebeu da porta que ele estava vazio e procurou pela velha ama pelo quarto. Encontrou-a de pé diante da única janela do quarto, aproveitando os resquícios do calor da luz do sol. Ela se virou quando ouviu a porta se abrindo, seu rosto enrugado e suas costas curvadas pelos muitos anos vividos. Tinha os cabelos brancos e tão finos e ralos que pareciam pequenas linhas de algodão. Nos seus braços moles ela ninava Siele, uma coisa pequena para um bebê de três meses, já com muitos fios de cabelo escuro e dedos do pé tão minúsculos que lembravam grãos de feijão. Seus olhos estavam fechados e espremidos como se estivesse brava, com marcas das lágrimas que chorou em suas bochechas rosadas.
A velha Wanda sorriu com carinho para a princesa. "Chegou em boa hora. Ela acaba de cair do sono."
"Chorou novamente?", perguntou a princesa.
"A manhã foi calma, mas desde que esse passarinho procurou com a boca o seio a primeira vez e não encontrou, a manteve aberta para chorar", disse a senhora. "É esfomeada a princesinha. Ela olhava pra mim quando acordada, com seus grandes olhos brancos, e sabia que eu não era sua mãe."
Obstinada a permanecer ao lado do pai desde que ele não havia acordado mais, Isandra passava pouco tempo se dedicando aos filhos nos últimos dias. Sua prima Marya a estava ajudando com isso, como também a velha serva da família que ajudava-a com os cuidados de Siele desde o seu nascimento. Pensar que poderia ter deixado a filha ter fome, algo que nunca havia se passado na sua cabeça ocupada com o intenso pensamento de luto, a deixou desnorteada. Estava ali para se vestir e sair novamente, deixando sua filha aos cuidados de uma mãe provisória. Lembrava-se dos dias a fio que passava sem estar mais de alguns minutos na presença do pai, que vivia ocupado com seus deveres reais.
Com olhos distantes, ela se perdeu de repente no rosto adormecido da filha.
"Se olharmos demais para o horizonte podemos nos afogar nele. A maioria de nós faz isso. Os anos passam e nós almejamos o horizonte. Sempre olhando. Nunca chegamos lá."
A princesa dedicou um olhar confuso mas profundamente tocado para a velha ama. "E o que isso quer dizer?"
"Não sei. São palavras sábias que já ouvi pelas estações que passei. Te ensinaram alguma coisa?"
"Acho que você começa a ficar avoada demais pela idade, minha ama", ela respondeu com carinho e certo desviar de conversa. "Eu pensava em Siele e como a deixei tão sozinha nestes dias, se é isso que quer saber."
A senhora deixou que um riso seco saísse de sua garganta enrugada e repleta de pintas. "Sozinha? Ela esteve comigo, como você também por muito tempo. Eu acho que sou companhia o suficiente. Por acaso se sente solitária, minha querida?"
Mais uma vez as dóceis palavras da velha a deixaram muda.
Sim, quis responder, mas o que ela disse foi: "Não posso me demorar muito. Preciso que me ajude a trocar este vestido. Apresentarei-me para a corte ao cair do sol."
"Para a corte? Então parece importante."
Atendendo ao pedido, Wanda caminhou em passos curtos até o pequeno berço. Ela esticou os braços flácidos e trêmulos e desceu a princesa Siele com cuidado, colocando-a sob o colchão de penas pequeno que preenchia o móvel e depois cobriu seu corpo que vestia apenas uma pequena camisola de tecido com uma pesada pele de cervo caramelo. A pequena bebê resmungou inicialmente, movendo seus braços e pernas rechonchudas e grunhindo de desconforto, mas logo sumiu entre a pele, se embrulhando nela. Isandra a olhou com deleite, metade de paixão e metade de encanto. Mas o peso de suas funções recaía com mais importância.
"Qual vai querer usar?", Wanda perguntou com sua frágil voz.
"O marrom com os rubis", pediu a princesa.
Era um vestido que fora de sua mãe no passado. Seu pai havia guardado com carinho e lhe dado de presente anos atrás. Talvez ele a ajudasse a ter coragem e a parecer uma rainha que nunca havia se sentido diante de todos.
Enquanto a ama se afastou do berço para ir até o enorme guarda-roupas que a princesa tinha no canto do quarto, Isandra se dirigiu até o outro lado, um pequeno espaço dividido por uma grande cortina carmesim que cortava o cômodo. Lá dentro ela se deparou com um espelho que começava no chão e terminava acima da cabeça. Deveria medir dois metros de altura ou próximo a isso. Era um móvel impecável em seus detalhes, emoldurado por grandes esculturas de madeira, grossos galhos de árvore desenhados à mão por talentosos artesãos do reino, que davam vida para lindas folhas amarelas e reluzentes feitas de madeira mergulhada em ouro derretido.
No reflexo do espelho ela viu uma mulher adulta com longos cabelos pretos como a noite, escorridos e brilhantes como se estivessem molhados. Seus olhos se destacavam como duas orbes negras, tão opostas ao tom da sua pele pálido como a neve. A beleza física nunca havia sido uma questão para a princesa, mas podia ver na impecabilidade daquele espelho que seu rosto já não era mais tão jovial e belo como era conhecida pelo reino. A maternidade havia lhe cansado como também havia feito o seu casamento. Não parecia mais uma princesa a flor da idade, uma garota nobre com uma vida toda pela frente. O que mais poderia viver de jovial? O Conselho a chamava, seu dever estava acima de sua família e era exigido que estivesse bem-vestida para todos.
Ao fundo do reflexo do espelho a ama apareceu com um longo vestido castanho nas mãos. "Aqui está", disse enquanto colocava-o com delicadeza em cima de uma poltrona acolchoada que ficava ao lado. "Vamos tirar esse."
Em silêncio a princesa concordou, estendendo os braços e esperando que Wanda a ajudasse. A serva desabotoou botão por botão da costas do vestido, desnudando os ombros pálidos de Isandra. Retirando as longas mangas, ela deixou que o vestido caísse no chão, cobrindo-o com o caro tecido. Não a envergonhava ficar nua diante da velha pois a tinha com muito carinho no coração. Desde o falecimento da sua mãe de sangue em seu parto, a serva Wanda que estava grávida na época, serviu como ama de leite para amamentar a princesa quando era recém-nascida. A tinha como da família e dividiu muitos de seus momentos com a mulher, confiando nela como confiaria em sua própria mãe se estivesse viva.
Ajudada pela mulher, ela começou a colocar o vestido marrom. Ele era longo como o anterior, mas tinha uma cauda ainda maior que se arrastava por mais dois pés de comprimento depois que chegava ao chão. Ele era todo fechado até o pescoço, um tecido pesado com lindos bordados em linha vermelha na região dos seios que se misturavam em alguns pontos para dar forma à lírios de sangue. As linhas ainda subiam para a gola alta, onde completavam as grandes pedras de rubis que ornamentavam aquela parte do vestido. Suas mangas eram longas, cobriam até seus pulsos e eram perfeitamente justas, já que o vestido havia sido ajustado anteriormente.
Depois de Wanda terminar de abotoar as costas, fechando o vestido por completo, a princesa se virou para uma pequena mesa que continha alguns de seus objetos pessoais. Em cima dela, repousando em uma almofada, estava sua coroa. Ela era feita de ouro como todos os demais objetos reais de grande valor. Seu aro era levemente retorcido, ondulado e talhado, e no meio dela havia uma águia de asas abertas que parecia querer alçar vôo. Suas asas eram perfeitamente alinhadas, uma de cada lado, e seus olhos feitos das mesmas pedras que o vestido tinha, pequenas esferas brilhantes e rubras. Isandra pegou a coroa em mãos e colocou-a na própria cabeça. Se olhando no espelho mais uma vez, mesmo que a coroa se encaixasse perfeitamente, a princesa ainda sentia que faltava algo.
"A capa da minha família", pediu para a ama.
Wanda concordou com a cabeça, indo até o guarda-roupas. Ela trouxe a capa dobrada, mas em seguida deixou que o tecido se soltasse, longo como uma coberta, e pregou-a com cuidado por cima dos ombros do vestido. A capa descia e se arrastava no chão tal como o vestido, mas era completamente preta senão pelo símbolo dos Heiral no meio, uma poderosa águia em vermelho. Era pesada nos ombros, mas ela se viu finalmente pronta para se apresentar para os lordes de Montanhalta. Se sentia mais forte vestindo o símbolo real, mas não sabia se forte o suficiente para que os homens a escutassem com a clareza que escutariam a um Rei.
Sempre perspicaz, a ama se aproximou da princesa, colocando sua enrugada mão sobre a jovial dela. "O que tanto aflige sua cabeça, minha águia?"
"Como sempre sabe?", ela desabou, os ombros encolhendo em um suspiro.
"Está claro para mim assim como céu estava hoje cedo. Meu sangue não é puro como o seu, mas conheço seu coração muito bem. Ele está nublado por sentimentos ruins que estão deixando-a triste. Se olhe mais uma vez no espelho e diga-me o que vê."
De lábios crispados, a princesa se olhou no espelho novamente. Poderia dizer muitas coisas, mas nenhuma delas resumiria melhor o que sabia que a definia nos papéis políticos. "Uma mulher", respondeu de imediato.
"A futura rainha", Wanda disse. Mesmo que seu dedo tremesse, ele apontava nitidamente para a coroa que recobria a cabeça de Isandra.
"Ainda assim uma mulher em um mundo de homens."
"Não só uma mulher. A verdadeira e única águia que sentará no trono."
O peso daquelas palavras era grande para a princesa. Ela ouviu-as e permaneceu em silêncio, digerindo seu significado. Ela sabia que com a morte de seu pai o trono seria passado para seu marido, Rojo Garbando. Sem um herdeiro homem legítimo para assumir o trono, a linha de sucessão levava a própria Isandra a se tornar rainha e seu marido, por consequência, o novo Rei. Seria a primeira vez desde o surgimento do reino, já que a casa Heiral reinava há gerações a fio. Ela se recusava a pensar nisso com profundidade, mesmo que aquela ideia insistisse em dominar sua mente. Uma coisa de cada vez, se obrigava naquela limitação.
O sangue de meu pai ainda está quente e querem que eu viva como se ele estivesse morto.
"Obrigada pelos seus conselhos, mas o dever me espera. Estarei de volta para amamentar Siele antes do jantar."
"Eu imagino que tenha muito a fazer. Não sairei daqui. Que os deuses lhe guiem, minha querida."
Ela agradeceu silenciosamente mas não se demorou em deixar para trás o quarto, a ama e a filha.
Todos faziam-na crer que já era rainha, que governava e o faria desde então. Começava a lhe atormentar aquela ideia. O pai ainda respirava e mesmo que não o fizesse mais jamais seria ela a governar Terra Alta. Um mundo governado por mulheres não era tolerado há incontáveis anos, sinônimo de uma má era, e os homens ouviam apenas seus irmãos de batalha. Rojo seria o verdadeiro governante, mesmo que não carregasse consigo o nome Heiral, e à ele os lordes escutarão. Se deu conta de que realizar uma execução no Penhasco diante da corte do reino talvez fosse o máximo que chegaria a fazer.
Secando a mão fria e suada pelo nervosismo repentino no próprio vestido, ela terminou de percorrer o corredor até a sala central do Rei e saiu pela porta, deixando para trás as sete torres do castelo de Montanhalta. Diante da princesa se estendia uma grande ponte coberta toda aberta pelas laterais, protegida por pequenos parapeitos de pedras. O vento e a luz do sol entravam em abundância, mas estavam tão acima do nível do mar que nem mesmo o calor daquele dia ensolarado era capaz de neutralizar a friagem do vento cortante e rápido que dançava em volta das montanhas. Eram altos e estridentes, ora lembravam uivos de lobos ora gritos de agonia. Ainda assim, Isandra seguiu seu caminho pela ponte sem se incomodar, focando-se em manter seus cabelos escuros o mais arrumados possíveis pelo percurso.
Na ponte das torres era impossível não olhar a paisagem. Se observava quase que todo o horizonte, tanto do litoral quanto do continente. Do lado esquerdo ela podia ver ao canto a cordilheira que se estendia por muitos quilômetros adiante, enquanto que logo embaixo começava o grande campo de trigo. Do outro lado estava o mar, todo cortado e fatiado pelas montanhas. A água brilhava intensamente, azul no começo mas dourada onde o olho já não enxergava mais. O astro já começava a descer, dando-lhe noção da hora, então chegou até o final da ponte e entrou rapidamente na parte principal do castelo.
Passou por corredores, pelo Salão dos Guerreiros e por mais corredores, mas o Penhasco Ecoante ficava na parte externa do castelo, então parou de andar só quando chegou na porta da Sala do Trono. Percebia-se que não havia movimento há alguns dias, o silêncio quebrado pelo eco dos sons dos passos de Isandra. Dois soldados do reino estavam de guarda do lado de dentro, ambos imóveis e olhando para as altas paredes. Quando viram a princesa, ergueram seus rostos de surpresa, depois os abaixaram em respeito. Ela nada disse, mantendo passos lentos na direção da saída. Os homens bateram na porta e depois cada um empurrou-a de um lado, abrindo-a no meio. Era uma pesada e rígida porta de ferro e conforme o metal se arrastou no chão de pedra, o ruído ecoou pela sala. Do lado de fora outros dois soldados do reino também estavam de guarda e ajudavam a abri-la.
"Vossa Alteza!", todos disseram de cabeça baixa, mas a princesa nada conseguiu dizer, se contendo em dedicar-lhes olhares silenciosos.
Diante da entrada do castelo o jardim real se estendia. Um grande caminho de terra batida e cercado de montanhas. Dos dois lados ele era circulado pelas rochas e por enormes abetos que subiam metros do chão. Além das grandes árvores, a grama era rala e pequena, brotando em alguns pontos onde a terra não era tão seca ou rochosa. Depois que Isandra passou pelo caminho de árvores um grande chafariz se estendeu na sua frente, sua água jorrando como uma fonte, mas ela o ignorou para continuar o caminho pela direita. Ele a levou por entre grandes amontoados rocha e grupos de montanhas por onde o sol, baixo como estava, já não conseguia mais passar. As montanhas projetavam sombras grandes que cobriam tudo o que se podia ver, mesmo que fosse pouca coisa, uma vez que o percurso era turvo e repleto de obstáculos de pedra. Os anos de trabalho árduo transformaram as montanhas habitáveis, mas ainda assim era um ambiente ríspido e de difícil acesso.
Conforme se entrava nas montanhas a vegetação sumia. Não havia nem mesmo mato seco e o chão não era mais forrado por areia. Depois que a cordilheira se abriu no horizonte, se pisava já na própria montanha, uma grande rocha esculpida pela natureza e seus ventos que se abria em uma grande área mais nivelada. Haviam bancos feitos de pedra, grandes blocos de rocha colocados de forma organizada e direcionados para o fim da montanha. Construído ali, na beira do precipício, havia um deck de madeira que se prolongava além do limite do penhasco, se erguendo em cima do próprio mar e do céu. O som do mar nada era daquela distância, especialmente competindo contra a estridente presença do vento.
Tinha sido a primeira a chegar. Naquele imenso espaço aberto se conseguia ver perfeitamente o fim do continente no grande mar dourado de tamanho imensurável que se estendia diante dos olhos da princesa. Ela viu o sol já bem baixo, começando a desaparecer nas águas salgadas, e sabia que logo os membros do Conselho e os lordes da corte chegariam. Isandra inalou profundamente o ar frio, indo para o deck onde aguardaria a chegada de todos e cumpriria seu dever ao ter sentenciado a prisioneira pelo assassinato de profetisa.
Subiu os dois degraus e pisou nas madeiras, que rangeram abaixo de seus pés, um estridente som de algo que já era velho demais. Olhando para baixo ela conseguia ver a imensa queda até o mar pelas frestas das tábuas e a sensação era aterrorizante. Com o corpo rígido de medo repentino, a princesa se apoiou no parapeito de madeira, concentrando para vencer principalmente o forte vento que batia em seu corpo. Ignorando o seu instinto que a dizia para sair dali Isandra foi até a extremidade do deck e se segurou com força antes de encarar o abismo sem fim do Penhasco Ecoante. Aquele era o melhor lugar para se ver com clareza qual era a forma da cordilheira e como ela cortava o mar, e o penhasco era um grande círculo quase completo. Descia feito uma garganta direto para o mar e não à toa esse foi o nome que os selvagens deram para o lugar muito tempo atrás.
Era por aquele incomum formato também que o vento parecia tão vivo. Ele subia moldado pelas rochas e ecoava por toda a cordilheira, trazendo os lamentos lá de baixo. Eram sons agudos e graves, uma mistura de entonações que se distorciam constantemente em uma grande orquestra de barulhos. Parecia metal às vezes, como de uma espada subjugando outra, mas com razoável frequência parecia que a princesa conseguia até mesmo distinguir palavras de verdade entre os sons distintos. Eram vozes femininas, outrora masculinas e neutras. Não conseguia entender o que o vento poderia dizer, mas mesmo assim se permitiu fechar os olhos enquanto ainda estava na completa solidão para ouvi-lo.
Foi como estar em paz por um momento que fosse. Uma paz que ela sabia que duraria pouco.