A Cidade Invertida

Av chimeriane

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Conto. Prólogo de um futuro projeto meu de fantasia urbana. Escrito para Marcela no Amigo Segreto do Chimeria... Mer

Capítulo Único

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Av chimeriane

Aquele dia quente de verão seria um dos melhores das minhas férias se não fosse por um problema: eu morri. De novo.

Dessa vez, foi um carro. Eu não o vi chegando, é claro, mais pelo fato de que a rua estava vazia quando eu comecei a atravessá-la do que por qualquer outra coisa. Mas ali estava ele, um sedã qualquer prateado saído do nada no momento exato em que eu me aproximava da calçada, vindo com velocidade em minha direção. Não deu tempo de desviar ou gritar por socorro, e para falar a verdade eu nem tentei; a essa altura do campeonato eu já sabia muito bem que aquilo não servia para muita coisa.

O carro me atingiu com força e me jogou para trás. Quase pude perceber o momento em que meus ossos estalaram e rangeram, uma adorável adição da minha imaginação que já gosta de colocar alguns elementos extras em toda morte minha. Mas, ah, eu senti dor, com toda certeza. Irradiando da área da minha cintura e alcançando todo o meu tronco, tão intensa que me fez arquejar, sem fôlego. Deus, por que tinha que doer tanto toda vez?

Deus não me respondeu, é claro. Os Encarregados não vinham tentando se comunicar com ele por tanto tempo por nada. Deus aparentemente não gosta de bater papo com ninguém, e muito menos com uma garota qualquer morrendo pela sabe-se lá qual vez.

Mas eu não pude evitar a sensação de frustração. E, quase escondida sob ela, a de medo.

E se eu morresse de verdade dessa vez?

Deixei o pensamento de lado porque, bem, eu não morri. E nem senti o impacto do meu corpo contra o chão. Quando dei por mim de novo, estava deitada em um colchão nada confortável e uma luz branca muito forte me cumprimentou quando abri os olhos. Quase sorri ao vê-la, mas meu humor não estava lá essas coisas, então me contentei em franzir a testa. Da primeira vez que eu morrera e encontrara aquela luz, achei que havia chegado ao além. Eu estava certa, claro. Aqui era o além. Só não era o além que eu tinha imaginado.

Uma voz aguda interrompeu meus pensamentos. "Valentina!"

Suspirei e encarei a luz branca da lâmpada acima da minha cabeça. Meu corpo formigava. "Olá, Jasmim."

"Vamos, se levante," a voz estridente de Jasmim continuou e senti suas mãos pequenas me segurando pelos ombros e me sentando com um puxão. Ali estava ela, pequena e magra, com um terninho azul-escuro com saia e os cabelos curtos pintados de uma mistura caótica de rosa e verde água. A maldita prancheta estava debaixo de seu braço direito e ela sorria. Claro que ela sorria. "Temos uma missão nova para você, e essa é bem simples, então você a fará sozinha. Uma chance de provar suas habilidades!"

Como se eu não estivesse provando minhas habilidades há mais de cinco anos, claro.

Soltei outro suspiro e me ajeitei no colchão, dando uma olhada rápida em volta. O quarto onde estávamos era enorme, eu sabia, mas havia uma cortina em volta da cama que o escondia de mim. Eu só conseguia ver as outras lâmpadas espalhadas pelo cômodo por cima dela e de vez em quando uma voz se fazia ouvir, vinda da direção das outras camas.

Aquele era o Dormitório. Onde, aliás, ninguém dormia.

"Quem dessa vez?" perguntei, jogando minhas pernas para fora da cama e pulando para o chão. Jasmim ainda sorria. Não consegui impedir uma careta. "Por que tão cedo, aliás? Vocês me chamaram aqui há menos de um mês. Eu tenho mais o que fazer do que ficar correndo atrás de mortos para vocês."

"Francisco Martins, 65 anos," respondeu Jasmim prontamente, checando em sua prancheta como se não tivesse ouvido nada além da minha primeira pergunta. "Morreu ontem de noite. Infarto. Desaparecido desde então, provavelmente se escondendo em alguma ruela por aí." Seu sorriso se alargou ainda mais. "Não faça caretas, Val! Essa será rápida, prometo. Estará de volta no Real antes que perceba que saiu de lá!"

A dor, agora bem mais fraca mas ainda presente em todo o meu tronco, discordava veementemente daquela afirmação.

Mas não havia saída, havia? Claro que não.

"Certo, certo," resmunguei. "Onde estão minhas coisas? Rápido, quero terminar logo com isso."

Jasmim escapuliu para o outro lado da cortina e continuou tagarelando, mas não prestei atenção. Aproveitei para tirar os tênis e me alonguei enquanto os últimos vestígios da dor finalmente desapareciam. Fiz mais uma careta. Eu teria que falar com alguém – não Jasmim, alguém acima dela – sobre as chamadas. Quem quer que coordenasse minhas mortes estava ficando cada vez mais criativo e eu não gostava nem um pouco disso.

Jasmim voltou pouco depois com as roupas e desapareceu logo em seguida. Calcei as botas e calça de couro e coloquei um casaco do mesmo tecido sobre a blusa branca que eu estivera usando no Real quando fui chamada. A cidade-sombra de Salvador era sempre fria, ao contrário da cidade-real de que era reflexo.

O Dormitório além das cortinas da minha cama era como eu bem me lembrava. Circular, com mais camas escondidas por mais cortinas ao longo de toda a parede e com as cinco cápsulas, cada uma dentro de um tubo transparente que desaparecia através do chão, bem no centro. A mesa com as armas e outros utilitários ficava em frente às cápsulas e para minha surpresa havia bem mais gente rondando por ali do que era normal. Não eram apenas duas ou três pessoas, mas quase dez.

Em cinco anos trabalhando no Além, eu nunca tinha visto o Dormitório da Torre tão cheio.

Desconfiada, me encaminhei para onde Jasmim me esperava ao lado da mesa de armas com o mesmo sorriso hediondo, parecendo quase flutuar sobre o nada graças ao chão transparente. Mantive meus olhos nela enquanto passava do mármore para o de vidro, mas não pude evitar uma olhadela para a cidade lá embaixo, da qual me arrependi imediatamente. Salvador-sombra não era nada além de formas cinzentas presas ao solo centenas de metros abaixo. Pensar naquela altura toda me deixava enojada. "Suas coisas estão prontas," disse Jasmim quando me aproximei. Ela apontou para uma mochila verde-escuro em cima da mesa, ao lado da prancheta que ela carregava para todo lado. "Está tudo aí; cordas, kit de primeiros socorros, blá blá blá. Conseguimos a aliança do fantasma, está no bolso da frente. Viu? Com ela será bem mais fácil achar o Sr. Martins e você estará em casa em pouco tempo."

"Por que aqui está tão cheio?"

Foi apenas por um segundo, mas o sorriso de Jasmim fraquejou de leve. Franzi o cenho novamente. "Nada, é claro. Mais fantasmas foragidos do que o normal, claro, mas de vez em quando temos umas coincidências infelizes, não é mesmo?"

Não, não tínhamos. Olhei para onde dois caras vestidos de modo semelhante a mim estavam, analisando a mesa lotada dos mais variados tipos de facas e adagas. Eu nunca os tinha visto antes, o que era estranho. Conheço quase todos os Rastreadores da Torre.

Dei de ombros. Bem, aquilo não era problema meu (ainda), certo?

Peguei a mochila e algumas das facas da mesa, colocando-as no cinto, e me dirigi até uma das cápsulas com Jasmim na minha sombra. As portas de vidro da estrutura cilíndrica de metal se abriram assim que me aproximei e se fecharam automaticamente após minha entrada. Jasmim acenou alegremente através do vidro e eu me esforcei para dar um sorriso, mas a verdade é que meu estômago estava dando voltas. As cápsulas estavam bem longe de serem meus lugares preferidos no Além. Ou em qualquer outro lugar, para falar a verdade.

Jasmim acenou mais uma vez e apertou um dos botões no tubo. E então eu desci.

***

Descer centenas de metros em uma cápsula minúscula literalmente no meio do nada não é o que posso chamar de aconselhável para uma pessoa que tem medo de altura como eu.

Não há muita escolha, óbvio. Os Encarregados não deixam Rastreadores descerem por nenhum caminho que não as cápsulas. Aliás, os Encarregados não deixam que ninguém além dos Silenciadores entrem na Torre de fato. Nós, pobres criaturas quase na base da cadeia alimentar do Além, descemos nos tubos, com a Torre do nosso lado o tempo inteiro.

Às vezes me pergunto se arranjariam um modo de me mandar lá para baixo se eu admitisse esse pequeno segredo, mas acho que jamais saberei. Prefiro manter meu medo de altura o mais desconhecido o possível, o que no início não era lá coisa fácil. Nas primeiras vezes em que desci pelo tubo na cápsula até Salvador-sombra pensei que morreria – dessa vez de verdade – antes de chegar ao chão graças ao bater desesperado (e horrorizado) do meu coração, mas a descida se provou tão longa que com o passar dos minutos acabei me acostumando com a ideia de que eu estava a centenas de metros de altura, descendo até uma cidade invertida no céu do Mundo Real. Demorou um pouco (ou muito, certo), mas me acostumei. O medo ainda estava presente, claro, mas agora pelo menos eu era capaz de aproveitar um pouco a viagem.

Que, por Deus, demorava muito.

Salvador-sombra ocupava a mesma área que a Salvador do Real, mas dali de cima eu podia notar a clara diferença entre as duas. Onde Salvador era colorida, Salvador-sombra era cinzenta, e onde uma era cheia, a outra era vazia, mas o pior de tudo era a sujeira. Sim, Salvador provavelmente passa longe de ser uma cidade limpa, mas Salvador-sombra é simplesmente imunda. E tudo é terrivelmente desbotado.

Tudo, é claro, menos os portais, com suas colunas de luz azul se erguendo em direção ao céu. Ali da cápsula eu os conseguia ver com clareza, faixas de cor desafiando o cinza a sua volta, espalhados por todos bairros da cidade-sombra. Eram o único caminho para a Salvador do Real além, é claro, do "caminho" usado pela Torre. Também eram um ótimo modo de ter sua alma vaporizada, e por isso todos que não queriam uma morte dolorosa (de novo) ou não queriam desaparecer completamente da existência os evitavam como a praga. Mas eram a única coisa bonita em Salvador-sombra, e observá-los de longe valia a pena.

Depois de um tempo a cápsula finalmente desacelerou e eu olhei para baixo, ignorando os saltos do meu estômago. O teto da Central se aproximava rapidamente, o tubo atravessando-o em direção ao que eu sabia ser o salão principal. Enquanto eu observava, o teto se aproximou mais e então ultrapassou a cápsula. A escuridão foi breve; quando abri os olhos novamente, o salão da Central se estendia à minha frente.

E Alexandre estava de braços cruzados na frente da cápsula, com uma das mãos apoiadas no tubo e sorrindo abertamente.

"Olá, Val," disse ele alegremente enquanto a porta transparente deslizava para o lado. Soltei um suspiro aliviado e saltei para o chão ao seu lado. Alexandre era uns bons dez centímetros mais alto do que eu, fato que ele não se esquecia de mencionar nunca. "Pensei que escaparia, mas aparentemente não."

Franzi o cenho. "Escapar de quê?"

Ele gesticulou para o resto do salão retangular. A Central também estava mais cheia do que de costume; todos os cubículos de atendimento dos dois lados estavam ocupados por Encarregados de status menor, e Rastreadores zanzavam de um lado para o outro, apressados. Eu o encarei, sem entender, e ele sorriu. "Fantasmas escaparam aos montes nos últimos dias. Acho que todos ou quase todos foram chamados em um momento ou outro. Mas pensei que eles te deixariam em paz, já que veio pra cá há pouco tempo."

Revirei os olhos. "Não tenho essa sorte toda."

Ele sorriu e eu lhe dei um tapa brincalhão no ombro antes de voltar a caminhar. Alexandre me seguiu.

Atravessamos a sala rapidamente. O chão e as paredes eram feitos de pedra escura e velha no maior estilo masmorra de castelo abandonado, o que contrastava de modo gritante com as portas e janelas de vidro e metal, e também com os laptops, smartphones e tablets espalhados pelo local. Mesmo já estando acostumada com o lugar, a ideia de eletrônicos no Além ainda me soava bizarra. Mas bem, talvez um Além estagnado nada Idade Média fosse ainda mais sem sentido.

As portas também de vidro no lado oposto do salão demoraram um pouco para se abrirem quando nos aproximados, e por um momento pude ver nossos reflexos na superfície semitransparente. Muitos dos outros Rastreadores dizem que eu e Alexandre poderíamos ser irmãos, e feliz ou infelizmente, eles estão certos. Sim, Alex pode ser um tanto mais alto, mas ambos temos cabelos escuros e pele de um tom de marrom bronzeado. Nossos olhos também tinham a mesma cor – castanho –, mas os dele eram significativamente mais escuros. Até o formato de nossos rostos era semelhante; oval e fino, com as maçãs do rosto bem altas.

E bem, Alex era frequentemente considerado bonito por literalmente todo mundo, então eu não me incomodava muito com as comparações não.

"Como andam as coisas no Real?" perguntou Alex quando as portas finalmente se abriram. O corredor adiante terminava em mais um par de portas, estas completamente de metal. Rosa estava lá, como sempre, guardando a entrada.

Lancei um olhar rápido para Alex, que, é claro, permaneceu impassível. Eu sabia exatamente do que ele estava falando. Minha mãe. "O mesmo de sempre. Mas estamos bem," respondi. Alex não pareceu muito convencido, mas não disse mais nada. Ninguém no Além falava muito de suas vidas no Real. Essa era uma regra que todo mundo seguia, embora eu duvidasse que alguém soubesse exatamente o porquê. Sempre fora assim e provavelmente sempre seria; eu mesma não fazia ideia do que Alex fazia ou como ele vivia no Real.

"Boa sorte," ele disse por fim quando chegamos perto da porta. Eu assenti e ele se virou, voltando para o salão. Observei-o ir por um instante, cumprimentei Rosa e finalmente pisei em Salvador-sombra.

***

Com a aliança do Sr. Martins em mãos, ativei a segunda visão imediatamente.

E quando digo ativar, quero na verdade dizer me concentrar no nada com tanta vontade que uma dor de cabeça não é só possível como provável. Mas a aliança ficou quente contra minha pele e a fumaça azul surgiu, serpenteando por entre os prédios, então deixei o incômodo de lado e a segui.

As ruas cinzentas de Salvador-sombra estavam vazias, como sempre. Não se podia ouvir ou ver nada além dos prédios; meus passos eram o único som a quebrar o silêncio, e eu preferia que continuasse assim. A perturbante estagnação da cidade morta ainda era melhor do que um encontro com antigos Rastreadores, Silenciadores e Encarregados que agora não passavam de rebeldes. Veterana ou não, os rebeldes são sempre uma ameaça que eu prefiro evitar.

A fumaça azul me levou para um dos bairros mais distantes, quase na saída de Salvador-sombra e no caminho que levaria para a versão do Além de Lauro de Freitas. Uma vez, o fantasma de um garotinho me fez percorrer todo o caminho entre as duas cidades-sombra, caminho que no Real praticamente não existe e que aqui no Além é, assim como toda área entre cidades-sombra, muito perigoso. Fantasmas poderosos e velhos – os Anciões – que nenhum Rastreador foi capaz de capturar habitam essas passagens, e confie em mim quando digo que um Ancião é a última coisa que você quer encontrar.

Ou talvez essa última coisa seja um demônio, mas aí já era problema dos Silenciadores, e felizmente não meu.

A fumaça azul fez uma curva súbita, me tirando dos meus pensamentos, e eu me virei. Um portal se erguia atrás da loja em que ela entrava, desaparecendo em direção ao céu como uma lança gigante fincada no solo. Estando concentrada no rastreamento – e com a aliança do fantasma cada vez mais quente em minha mão –, consegui vislumbrar por um instante a Salvador verdadeira, desbotada contra o firmamento cinzento de sua sombra, quase como se estivesse prestes a cair. Um calafrio me percorreu e minha cabeça latejou com mais força. Sacudindo a cabeça, deixei a Salvador do Real escapar da minha visão e entrei na loja.

Lá no Real essa loja seria apenas mais uma vendendo roupas na avenida. As blusas, vestidos e calças ainda estavam ali, nos cabides, mas como tudo mais no Além eram desbotadas e frágeis. O que era uma pena, em minha opinião. Minha vida seria um tanto mais fácil se eu pudesse escolher (e pegar) roupas no Além toda vez que precisasse.

Segui a fumaça até atrás do balcão e então por uma escada estreita até o andar de cima, que se revelou uma espécie de depósito. Havia roupas empilhadas por todos os lados, embaladas em plástico ou dentro de caixas. O aposento era estreito e não tinha janelas, mas os montes de roupa eram iluminados por uma suave luz azul. A parede mais distante desaparecera, e o portal que eu vira do lado de fora brilhava com força além da cratera. Portais costumavam destruir tudo o que havia pela frente quando surgiam, então eu não estava muito surpresa com aquela visão; meus olhos focaram, portanto, no fantasma parado ali, tão próximo do portal que dois passos para trás o mandariam para sua morte – dessa vez uma que acabaria de vez com sua existência.

Ele me viu imediatamente, mas não se moveu. Seus lábios sem cor tremiam e suas mãos velhas apertavam as barras do terno caro, mas desgastado que ele usava. Eu quase podia ver a luz do portal através de sua figura franzina; a única prova de que ele era um fantasma que eu precisava.

"Preciso voltar," ele disse, sua voz tão baixa que mal pude ouvi-la. Revirei os olhos. Eu já tinha escutado aquilo vezes demais para ser afetada agora.

"Desculpe, mas não vai dar," respondi sem hesitar. "Você morreu, e agora tem que ir para o plano dos mortos e blá blá blá. Tenho certeza de que sabe disso."

Os olhos do fantasma – Martins? – brilharam, mas eu não pude dizer exatamente com o quê. Medo? Raiva? "Minha família precisa de mim," ele murmurou, sua cabeça quase totalmente livre de cabelos brancos refletindo a luz do portal. Seria engraçado se a situação não fosse a velha bizarrice a que eu pensava, erroneamente, estar acostumada. "Eu tenho que voltar."

Também já haviam me tido aquilo vezes demais. Era provavelmente verdade, mas bem, o que eu poderia fazer?

"Reclame com o chefe," retruquei, tirando a faca coletora do cinto.

Sr. Martins não pareceu perceber. Ele franziu a testa. "Chefe?"

Revirei os olhos de novo e dei um passo em direção, escondendo a faca às minhas costas. "Deus," falei. "Ou deuses, dependendo do que você acredita. Tanto faz. Mas tenho que te levar agora."

Os olhos dele se arregalaram ainda mais, e dessa vez eu tive certeza que era de medo. "Não se aproxime." Ele deu um passo para trás. Mais dois ou três centímetros e ele cairia no portal. Obviamente me aproximei. "Se der mais um passo," ele balbuciou, e eu percebi que havia lágrimas em seu rosto. Senti uma dor incômoda no peito, que prontamente ignorei. "Se der mais um passo," Martins repetiu, "eu vou pular."

Parei imediatamente. Quê?

"Está ameaçando se matar?" exclamei. "Você é um fantasma."

"Não se aproxime," ele disse, sua voz estremecendo.

A situação era tão absurda que quase caí na gargalhada, mas a (segunda) morte daquele fantasma me custaria um naco do meu salário e uma mancha no meu histórico perfeito, então não. Meio que não dava para rir agora.

"Olha, eu sinto muito," comecei. "Mas você está morto. Nem mesmo se eu quisesse seria possível te mandar de volta."

Os olhos dela faiscaram, e seus lábios sem cor se torceram em um sorriso de escárnio. "Você não sabe de nada."

Aquelas palavras fizeram meu estômago revirar, e foi só aí que percebi algo. Como ele sabia do que o portal era capaz?

"Do que você está falando?" perguntei, meu coração batendo acelerado contra o peito, mas Martins não me respondeu. "Como sabe do que o portal é capaz?"

Ele me encarou por um momento, o sorriso ainda em seu rosto. E pulou.

Meu corpo se moveu antes que eu pudesse processar o que estava acontecendo; me lancei para frente e consegui segurar seu pulso com uma das minhas mãos, a outra ainda segurando a faca coletora. Puxei-o para cima com facilidade – fantasmas são extremamente leves, pelo que sou grata – e por um momento saboreei a ideia de conseguir salvá-lo, mas então o fantasma chutou o chão e se impulsionou para trás. E assim nós dois caímos no portal.

***

Antes de tudo: não fui vaporizada.

Ao invés disso, eu e o Sr. Martins fomos jogados para cima, quase como se portal abaixo de nós fosse um ventilador gigante. Eu mal conseguia enxergar; tudo à minha volta era a luz azul, movendo-se e ondulando como água, e um vendo estupidamente frio que sacudia meus cabelos.

Mas eu não estava morta, e no  momento essa era a única coisa que importava.

Algo grande e cinzento se chocou contra mim. Era o Sr. Martins. Agarrei suas roupas sem pensar duas vezes e ele se debateu, gritando, enquanto o portal continuava a nos empurrar para cima. Pensei nos Rastreadores espalhados pela cidade e me perguntei o que eles pensariam ao assistir a cena. Mais uma vez quase caí na gargalhada, mas o vento era tão forte o máximo que fiz foi provar meu próprio cabelo.

O Sr. Martins tentou me chutar para longe de novo, mas me segurei com firmeza a ele e o girei enquanto ele esperneava. Seus olhos encontraram os meus e neles vi apenas uma coisa: triunfo.

Aquele tinha sido seu plano o tempo todo, percebi. Desde o início. Trazer um Rastreador para um portal... Mas por quê? Aquilo não fazia sentido.

Sr. Martins se debateu novamente, arreganhando os dentes e sacudindo a cabeça em minha direção. Estava tentando me acertar.

Meu sangue ferveu em minhas veias. Filho da mãe.

Sem hesitar e sem desviar o olhar dele, cravei a faca coletora em seu coração com um movimento rápido. 

A lâmina de vidro, construída em forma de diamante, se quebrou de imediato. O rosto do Sr. Martins empalideceu, seus olhos congelados naquela expressão de triunfo enquanto seu corpo inteiro ia rapidamente desaparecendo e sendo sugado para o pequeno compartimento no punho da faca. Ele se desfez como fumaça nas minhas mãos e então eu estava sozinha, disparando pelo céu de Salvador-sombra.

Mas não por muito tempo.

Um zumbido surgiu em meus ouvidos. O mundo pareceu encolher e depois esticar, e um estampido se fez ouvir. E então eu não estava mais subindo – eu estava caindo.

Abaixo de mim se estendia Salvador – a real, cheia de cores e sons, mas dali de cima nada se movia. A cidade parecia uma pintura estupidamente realista, e igualmente sem som.

Resolvi o problema imediatamente: comecei a gritar.

A luz do portal ainda brilhava com força à minha volta, e o vento fustigava meus cabelos com violência. Eu estava caindo rápido demais, tão rápido que eu já conseguia ver com clareza onde eu aterrissaria. A mesma loja do Além, em cujo teto eu me espatifaria em segundos.

Que jeito patético de morrer. 

Mas bem, eu já estava quase acostumada a morrer pateticamente de qualquer jeito.

Sufoquei mais uma risada, essa decididamente histérica, e fechei os olhos, me preparando para a colisão. Mas quando ela veio... Bem, não doeu muito. Na verdade, não doeu quase nada. A superfície com que colidi era surpreendentemente macia, e também estranhamente móvel. Franzi a testa e abri os olhos.

O teto da loja me encarou de volta, a luz do portal não mais podendo ser vista em lugar algum. Ao meu redor, pilhas e mais pilhas de roupa se encontravam jogadas para todos os lados graças ao impacto da minha queda. Abaixo de mim estava o monte de pano que havia salvado minha pele. Inspirei fundo, sem acreditar. Como diabos eu tinha atravessado o teto?

Um sibilo ecoou pelo aposento, interrompendo meus pensamentos. Com cuidado, eu me virei, meu corpo dolorido latejando. O que vi fez meu alívio desaparecer mais rápido do que fumaça.

Uma aranha. Não uma aranha qualquer, infelizmente; aquela tinha aproximadamente o tamanho de um cachorro grande, e era tão feia quanto uma aranha tinha o direito de ser, toda olhos e pernas. Estava encolhida em um dos cantos do aposento, entre as roupas, mas enquanto eu observava ela avançou, vindo lentamente em minha direção.

Era um Ancião, eu soube instintivamente. Alexandre já tinha me falado de Anciões que assumiam a forma de animais ou monstros, e principalmente de aranhas tão grandes que fariam Shelob se esconder de vergonha. Mas aquela não era tão grande assim. O que realmente fez meu sangue gelar nas veias foi o fato de que ela estava ali, na minha frente, no Real.

Fantasmas não podiam tomar forma física no Real, e aquela aranha era a coisa mais real que eu tinha visto desde que eu morrera naquela tarde.

Me levantei, notando pela primeira vez que a faca coletora que agora abrigava a alma do Sr. Martins ainda estava em minha mão. Guardei-a no cinto e puxei outras duas, uma coletora e outra comum, mas mais fina e comprida. A aranha ainda se aproximava aos poucos, seus olhos fixos em mim. Minhas mãos tremiam, mas não esperei por ela; antes que pudesse perder a coragem, chutei a pilha de roupas à minha frente com toda a força. Ela caiu em cheio em cima do Ancião, que grunhiu de raiva, sacudindo as pernas.

Avancei novamente, uma faca em cada mão. A aranha já estava conseguindo se livrar das roupas, cambaleando em minha direção como cachorro trôpego com pernas demais. Ela pulou, visando segurar-se em minhas pernas, e eu me desviei, mas ainda assim a aranha conseguiu agarrar-se a mim. Tentei recuar, mas o aposento era pequeno demais, e as pilhas de roupa só dificultavam a situação.

Uma onda de nojo e medo me percorreu, e sem pensar eu a ataquei com a faca comum, mirando em seus olhos. Sangue negro e fedorento espirrou, ensopando minha mão e minhas roupas. A aranha guinchou e se jogou contra mim de novo, e dessa vez não consegui me equilibrar. Caí entre as roupas com o monstro em cima de mim, mas aproveitei a oportunidade (e ignorei a necessidade cada vez maior de gritar) e cravei a faca coletora em seu ventre. A lâmina de vidro explodiu e mais sangue negro jorrou. O Ancião guinchou mais uma vez antes de desbotar e desaparecer em uma nuvem de fumaça, quase como se nunca tivesse existido.

O quarto ficou em silêncio por um instante. "Bem," falei para o teto, ainda ofegante. "Até que não foi tão difícil, certo?"

Eu mal havia terminado de falar quando uma explosão de energia azul sacudiu o quarto, mandando roupas para todos os lados. Atônita, eu me levantei. Havia uma figura no centro do aposento e fumaça azul a rodeava, movendo-se lentamente e brilhando no ambiente escuro. Era um fantasma. E, percebi com mais um calafrio, eu o conhecia.

Ele estava vestido como eu o vira pela última vez, usando pijamas folgados e velhos de um tom de azul claro. Pequeno e franzino para o garoto de oito anos que ele fora, o menino tinha olhos castanhos e pele morena como a minha. Seus cabelos eram encaracolados e escuros, como os dos anjos que costumávamos observar quando íamos para a Igreja. Ele me olhava fixamente, seu rosto mais sério do que eu jamais tinha visto.

Era meu irmão.

"Gabriel," murmurei, hesitante. Minhas mãos sujas de sangue de aranha tremiam. Ele continuou me olhando e não disse nada.

Engoli em seco. Aquilo não fazia sentido. Quando eu me juntei aos Rastreadores, a primeira coisa que eu procurei saber foi o destino de meu irmão, e Jasmim havia sido clara. O fantasma de Gabriel não havia tentado escapar, e seguira em frente em paz. Não tinha como ele ainda estar no Além e muito menos aqui no Real.

E a aparência dele não estava certa. No seu enterro não pudemos abrir o caixão por causa do que o fogo havia feito com seu rosto e corpo. Mas o Gabriel à minha frente estava perfeito. Saudável.

Quase vivo.

Joguei as roupas caídas para o lado e corri para ele, ajoelhando-me à sua frente. "Gabriel?" perguntei, esticando as mãos em sua direção, mas sem ter coragem para realmente tocá-lo. Meus olhos ardiam com tanta força que eu mal podia enxergá-lo. Ele não respondeu. "Como chegou aqui?"

Ainda sem falar nada, Gabriel ergueu uma de suas mãos, oferecendo sua palma para mim. Eu hesitei por um segundo e a apertei. Uma corrente de eletricidade passou por meu corpo, sendo seguida de perto por uma onde dor que me fez arfar. Gabriel não se mexeu, e eu encarei seus olhos castanhos sem entender. Enquanto eu observava, eles se tornaram negros como piche, e então eles eram tudo o que eu conseguia ver.

Uma única cena se desenrolou em seus olhos escuros, mas o fez tantas vezes que semanas depois eu poderia descrevê-la como se tivesse acabado de presenciá-la. Eu vi o Real, e então o Além flutuando acima dele de cabeça para baixo, Salvador e Salvador-sombra, invertidas como o reflexo em um espelho. Também vi quando ambas se encontraram, e as duas cidades – a verdadeira e sua sombra – arderam.

***

Quando voltei a mim mesma, o fantasma de Gabriel havia desaparecido. Fiquei parada no meio do quarto arruinado, ofegante, por minutos – ou horas – até que Alexandre e outros Rastreadores e Silenciadores apareceram e me guiarem para o lado de fora. A família dona da loja havia sido assassinada, Alexandre me disse, e a polícia estava para chegar.

O céu de fim de tarde se estendia acima de minha cabeça enquanto carros zuniam na avenida, e eu o observei com atenção, quase esperando ver o Além de cabeça para baixo entre as nuvens. Tudo estava normal, mas agora eu sabia.

Salvador-sombra cairia em breve. O Além e o Real se encontrariam em fogo e fumaça, exatamente como todos temiam. Mas não era com isso que eu estava preocupada.

Eu ainda conseguia ouvir sua voz, repetindo uma única frase enquanto o mundo que eu conhecia ardia em frente aos meus olhos. E era ela que me importava.

Estou esperando por você, irmã.

Fortsett å les

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