O Conto de Lucien e Jesminda

By feyrhysie

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Como pode ter acontecido. (Personagens pertencem a Sarah J. Maas) More

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Epílogo

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By feyrhysie

  Aos dezoito anos, Lucien passou por ela na praça. 

  Ele estava com Denn, que fora buscá-lo em sua cabana de caça na floresta, e, quando Jesminda viu quem o acompanhava, fechou o rosto e continuou seu caminho.

  Denn cutucou-o para que ele andasse; Lucien nem percebeu que tinha parado. 

  - O pai está com pressa para te ver e eu não quero ser punido por sua causa - resmungou o irmão. - Trate de andar logo. - Eles não podiam atravessar ali no meio do comércio; haviam feitiços contra. E, em todos os cinco minutos que levaram para que eles saíssem da proteção da magia, ele pensou nela.

  Fazia quatro anos que eles não conversavam. Desde aquele incidente horrível no Equinócio.

  Primeiro, porque Lucien fora covarde demais para encará-la depois de ter mentido sobre quem era. Mesmo... Mesmo que alguém tivesse lhe contado sobre uma feérica inferior rondando os arredores da Casa da Floresta por um mês e meio depois. E então, quando ela desistira, ele também. 

  Às vezes, ele passava pela propriedade da família dela e a via; então sempre tentava se esconder. Com o tempo, as memórias do tempo em que os dois eram amigos foram se enevoando. Ele fizera outros amigos, de muitas cortes, e tivera amantes também. Mas, em dias assim, quando eles sem querer se encontravam, ele sentia muito a falta dela.

  Suspirou. Não adiantava nada.

  O escritório do seu pai era todo decorado em tons de cinza e castanho-avermelhado. Beron estava recostado em sua cadeira usual, mexendo em papéis, quando ele chegou.

  Era impossível - impossível não se sentir como uma criança de novo, quando o pai erguia os olhos com tédio e o encarava como se ele fosse uma cachorro muito feio e pulguento que não valia a sua atenção. E então com um ódio amargurado. 

  Quando era mais novo, achava que o pai só era mal-humorado, e que quando ele crescesse, Beron o trataria melhor, como tratava os outros. Mas não fora assim que acontecera. A cada dia, Beron por algum motivo parecia detestá-lo mais; e os seus seis irmãos o seguiam. Apenas Eris ainda o considerava um pouco. Lucien não entendia realmente o porquê de tanto ressentimento, mas dissera a si mesmo que não se importava. 

  - Você está atrasado - disse o pai, fazendo sinal para que ele sentasse. Lucien obedeceu e cruzou os braços. - Recebi seu... pedido. - Seus lábios se curvaram para baixo. - Finalmente se cansou de ficar recluso na floresta, como um selvagem?

  - O senhor disse que não me queria aqui - retrucou Lucien com raiva, meio murmurando. Acontecera quatro semanas atrás; ele fizera amizade com o novo Grão-Senhor da Corte Primaveril em sua visita aos Vanserra, e Tamlin, sem muita diplomacia, não se importara em esconder seu desgosto a Beron quando ele fora grosseiro com o filho mais novo à mesa. Toda vez que lembrava daquela situação e a briga que se desenrolara depois, ele tinha vontade de revirar os olhos. 

  - Não me importo se você dorme num castelo ou no esgoto - cortou o pai, ríspido. - Mas me importo quando meu povo me olha diferente por acharem que enfiei meu filho naquele cafofo.

  Não adiantava discutir com Beron. Lucien apenas cerrou os dentes e tentou controlar seu temperamento.

  - Mas - cedeu o pai. - Reconheço que agora que atingiu a maturidade, você pode finalmente deixar de ser inútil. Todos os outros têm responsabilidades, menos você. - O desprezo era evidente em sua voz quando ele disse a última palavra. - Então vou lhe dar carta branca. Gaste o meu dinheiro, já que é o que sempre faz. Viaje, se quer tanto. - Lucien havia pedido ao pai que o deixasse viajar por Prynthian e estudar há meses; ele estava surpreso pela carta de requerimento ter demorado tanto tempo assim para chegar até Beron, e mais surpreso ainda por ele ter deixado. - Mas faça algo pelo bem da Corte. Você é um príncipe, não ralé, por mais que às vezes pareça. Ganhe aliados para mim. Use essa língua de prata e a sua educação. Faça isso, e posso reconsiderar seu outro pedido.

  O outro pedido: uma propriedade ao norte que fosse sua e somente sua, para ter paz. 

  - Obrigado. - Ele disse, antes que Beron tivesse tempo de mudar de ideia. - Farei isso.

  O pai o dispensou com outro gesto de mão. Lá fora, Denn e Jace esperavam recostados na parede.

  Jace mostrou os dentes.

  - Então quer dizer que vai nos deixar, irmãozinho?

  Lucien devolveu o sorriso felino antes de ir embora.

  - Não podia suportar mais olhar para as caras de vocês. E podem ficar com as minhas coisas, se quiserem. Não planejo voltar tão cedo. 

  🍁

  Ele não voltou por vinte e sete anos, na verdade. Ao menos não por mais de alguns meses, de vez em quando.

  Passou um bom tempo na Invernal. Toda primavera, ficava alguns meses na Diurna, na casa de um antigo conhecido com acesso às bibliotecas reais. Na Crepuscular, aprendeu a arte da cura com uma amiga por quatro anos. Na Estival, serviu no exército por quase uma década, quando começou a ficar entediado. E, no resto do tempo, ele ficava da Primaveril ajudando Tamlin. O novo Grão-Senhor era péssimo com politicagem, área em que Lucien era realmente bom. Durante tudo isso, ele fez o que o pai pedira: negociações, sorrisos, flertes, tudo para conseguir aliados. 

  Quando, enfim, sua mãe lhe enviou uma carta pedindo para que ele voltasse intemporariamente, Lucien deu por si aceitando. Verdade seja dita, ele sentia saudade de viver mais tranquilamente, por mais festeiro que tivesse descoberto ser. E tinha saudade de casa. O tempo esvanecera um pouco sua raiva.

  Enquanto caminhava pelo mercado perto da Casa da Floresta, pessoas vinham cumprimenta-lo e fazer reverências. Clay foi encontra-lo. Lucien ficou feliz por não ter sido Tohnr ou Areas, porque não suportava falar com eles desde que os pegara tentando se aproveitar de uma garota no Equinócio. A prima de... Ele enrijeceu. Jesminda. Uma fêmea por quem um dia talvez tivesse uma paixão de infância. Se perguntou como ela estaria hoje. 

  - Quer dizer que voltou de verdade? - perguntou seu irmão, curioso.

  Lucien deu de ombros.

  - Por um tempo.

  Eles não conversaram muito no caminho até a casa da família, nem quando seus outros irmãos o cumprimentaram, meio desgostosos. Ele abraçou sua mãe e acenou para o pai. Se sentia um estranho no meio deles, mais do que antes. 

  Antes, ele era um garoto tentando se enturmar com os irmãos mais velhos. Agora, era um macho adulto tão vivido quanto eles, até mais. Ele tinha visto demais, aprendido demais. Não havia porque tentar uma aproximação. Ele não se rebaixaria tanto. 

  Eris se sentou ao seu lado no banquete em comemoração à sua volta. Enquanto os nobres da corte gargalhavam e se esfregavam uns nos outros, ele comentou:

  - Está diferente, irmãozinho.

  Lucien tomou um longo gole de vinho.

  - Estou?

  Eris girou uma faca na mão antes de usá-la para cortar o faisão em seu prato.

  - Muito calmo. Muito quieto. Nada como o garotinho que sentava nos meus joelhos às vezes, sempre tão ansioso para agradar.

  Lucien lançou um olhar inexpressivo ao mais velho de seus irmãos. Não seria mais humilhado, correndo de um lado para o outro tentando ganhar o apreço de todos. Não fora para isso que viera.

  - Vocês não gostam de mim. Eu não gosto de vocês. É o suficiente, não acha, irmão? Voltei pela nossa mãe, e apenas ela.

  Eris deu um risinho de escárnio, depois ficou em silêncio por um tempo.

  - Continua o mesmo tolo. Eu gosto de você, Lucien. - Dito isso, saiu. Lucien apenas encarou as costas dele, atônito.

  Antes de dormir, deitado em sua antiga cama, Lucien fez uma careta. Eris não dissera que os outros tinham algum apreço por ele. Mas, aparentemente, Eris sim. Merda, ali estava ele de novo, surtando por qualquer tipo de afeto. Idiota e tolo, de fato.

  Mas... Se ele apenas fizesse um esforço... Um só, e era tudo que seu orgulho permitiria. Talvez as coisas pudessem ser diferentes.

  Foi por isso que, no dia seguinte, ele aceitou ir a uma taverna beber com todos os seus seis irmãos. O lugar estava movimentado, a comida era gordurosa, mas gostosa, e o vinho, delicioso. Ele os observou conversando asneiras entre si e gargalhando como se estivesse vendo tudo de uma janela. Ao menos, ser ignorado era melhor do que ser humilhado. E ele nem sabia se queria realmente fazer parte daquilo.

  Quando o assunto morreu, lhe perguntaram sobre as outras Cortes. Ele desviou dos assuntos com piadas lascivas, o que os fez encará-lo com surpresa. Mas Lucien foi embora cedo. Deu por si chutando pedras nas calçadas escuras com a noite avançando, as mãos nos bolsos.

  O sentimento era o mesmo de quando pedira para ir ao lago com eles, aos onze anos. Acontecera tudo exatamente como ele queria, e mesmo assim só ficara mais incomodado.

  O lago... Ele parou, se lembrando. Costumava adorar aquele lugar. Por que não visitá-lo agora?

  Afinal, tinha todo o tempo do mundo. E muito tédio.

  Sem pensar muito, atravessou para perto da entrada da caverna, que eles - Lucien e Jesminda, o nome dela estranhamente vivo em sua mente mesmo depois de todo aquele tempo - haviam enfeitiçado para proibir atravessamentos. Então se abaixou e fez o caminho no corredor estreito de pedra, já ouvindo a cachoeira. Ele não era mais um adolescente que cabia lá perfeitamente, então estava meio apertado. 

  Sentiu o cheiro de terra molhada antes de ver o interior; e uma borboleta azul brilhante voou ao redor da sua cabeça, como se lhe dando boas vindas. O ambiente era solitário e leve do jeito que ele gostava. Sorriu um pouco. E então pensou, por que não nadar? Arrancou as roupas e mergulhou no pequeno lago. 

  Poderia ter passado horas ou apenas alguns minutos. A cada mergulho, ficava um pouco mais longe da Casa da Floresta e de todos os seus problemas. Lucien estava considerando seriamente acampar ali por algumas semanas quando emergiu da água e notou pés delicados, marrons e com garras negras.

  🍁

  Ele sabia quem era a dona daqueles pés antes mesmo de dirigir o olhar para cima. Mas, quando fez isso, esqueceu-se de respirar. 

  Jesminda sempre fora uma menina bonita, mas o tempo que eles tinham passado sem se ver a havia tornado - e não havia outra palavra para isso - inesquecível. Ele encarou o vestido branco, os olhos castanho-escuros arregalados, os chifres no meio do cabelo encaracolado que tinham crescido e se enrolado como os de um bode, a boca larga que se abriu e...

  - AAAAAAA! - A última coisa que ele viu foi o pé dela subindo na direção da sua cara.

  Lucien acordou com a cabeça latejando, piscando várias vezes. Havia uma coisa que se parecia com uma fêmea na sua frente, mas estava triplicada e embaçada...

  - AH! - Ele gritou. Ela gritou de volta. Ele xingou e tentou sentar, ainda confuso. - Você é a maluca que chutou a minha cara?

  Ela se encolheu.

  - Desculpe, é que eu levei um susto! Faz anos que não vejo mais ninguém aqui, sabe... - Ele semicerrou os olhos para ela. - E então eu chego normalmente e do nada sobe uma cabeça da água!

  - Sabe, Jesminda, às vezes o diálogo é uma boa solução - grunhiu Lucien, cruzando os braços.

  Seu rosto ficou surpreso.

  - Como sabe o meu nome?

  Para isso, ele não teve resposta. Apenas ficou parado enquanto ela franzia a testa.

  - Você... É o Lucien? - Eles se encararam nos olhos. O rosto dela ficou mais relaxado quando ela sorriu, e o coração dele errou uma batida. - Faz muito tempo, não?

  Ele abriu um sorriso pequeno.

  - Faz, sim.

  Eles passaram vários minutos em silêncio, apenas examinando um ao outro. Então, finalmente, ele pigarreou.

  - Sobre o que eu disse naquela noite...

  - Eu sei que era mentira - Jesminda interrompeu. - Pelo Caldeirão, passamos quatro anos sendo amigos escondido e do nada você vira a casaca? Claro que seria fingimento, e eu entendi... Só não entendi por quê você não me procurou depois - terminou, uma nota de mágoa em sua voz.

  Lucien não podia acreditar. Então em todo aquele tempo em que ele se escondera dela, envergonhado, ela não estava brava? Ele havia feito tudo aquilo por nada? O macho balançou a cabeça, arrependimento corroendo seu estômago.

  - Eu não te procurei porque estava morrendo de vergonha - confessou. - Menti para você.

  - Sobre ser um Vanserra? É verdade. Mas eu te aceitaria de qualquer jeito, você deveria saber disso! - Deu um tapa no seu braço. Lucien abriu um sorriso malicioso.

  - Parece que você desenvolveu um gosto pela violência nesses últimos anos?

  Ela respondeu com outro tapa, sorrindo.

  - Parece que você desperta o pior em mim.

  - Então tudo de que precisávamos era uma conversa? - Ele perguntou, quando seus sorrisos haviam ido embora. Jesminda encolheu os ombros.

  - Ao que parece, sim. - Ela hesitou. - Então... Amigos novamente?

  Lucien apertou a mão estendida dela.

  - Sempre fomos, Jes.

  Ela concordou, e sentou-se ao lado dele, com os pés balançando na água como quando eles eram crianças. 

  - Por que veio aqui agora? Bem, não que eu ache que você não devesse...

  Ele olhou para a chama azulada embaixo da água corrente.

  - Eu estive viajando nos últimos vinte e sete anos.

  - Eu ouvi isso. Por onde? - Perguntou, curiosa. Ela sempre quisera ver o mundo, Lucien lembrou. Sempre fora livre e selvagem demais para uma vida pacata no campo. Então ele resolveu lhe contar tudo; todas as cortes por que passara, as coisas que fizera, as pessoas que conhecera. As comidas, músicas e culturas diferentes. Espécies feéricas das quais nunca ouvira falar na Corte Outonal, como os sereianos alados da Corte Estival, pelos quais ela ficou especialmente curiosa. Ele contou que haviam cortes em que a linha de separação entre grão-feéricos e feéricos inferiores não era tão fortemente demarcada, ou mesmo nem um pouco. Onde todos podiam ser livres para se relacionarem com quem quisessem, de qualquer forma.

  Quando ele acabou, já devia ser madrugada. Jesminda havia se recostado na parede enquanto escutava com os lábios puxados para cima, olhando para o nada enquanto visualizava as coisas que ele dizia. Lucien se viu sentindo falta daquela vida também. Era diferente de toda a monotonia cinzenta da Corte Outonal. 

  - Você é sortudo por poder ver tudo isso - ela disse. 

  - Acho que sim - concordou, com uma risada. - Ainda não acredito que meu pai me deu toda essa liberdade. Mas ele provavelmente preferia se ver livre de mim.

  Jesminda fez uma careta.

  - Ainda não consigo entender o que ele tem contra você. 

  Lucien deu de ombros. Não adiantava tentar - e ele realmente não sabia se queria. As coisas simplesmente eram como eram.

  - Mas e você? O que tem feito? - Quis saber.

  - Eu? - Jesminda soltou um risinho cabisbaixo, traçando uma linha com o dedo na água. - O normal de todo mundo. Todo mundo que não nasceu com um penico ouro - corrigiu, ao que Lucien lhe deu uma cotovelada. - Trabalho a semana toda em um bar. Estou tentando juntar dinheiro para ir para outro lugar.

  - Onde?

  - Não muito longe, com o tanto que ganho. Eu não sei. Algo diferente, para dar uma espairecida. Só respirar um ar novo já seria bom. Além disso tem o Mylos...

  Ele parou, analisando as palavras. Mylos. Talvez ela tivesse alguém. Era perfeitamente possível, na verdade. Talvez fosse casada e tivesse filhos. Lucien se sentiu o cara mais idiota de Prynthian, porque seu corpo inteiro paralisou e, de repente, a ideia de que aquela fêmea pudesse ser comprometida lhe pareceu muito ruim. Não fazia sentido - eles haviam acabado de se ver pela primeira vez em vinte e sete anos.

  De todo jeito, ele escondeu sua bobagem interna e perguntou num tom que esperava ser amigável:

  - Quem é Mylos? 

  Mas Jesminda não pareceu muito contente ou realizada ao responder:

  - É o macho com quem meus pais querem que eu me case. Faz dois anos que estão insistindo nisso, e agora esse cara resolveu vir atrás de mim. Aparentemente, nossas famílias querem se unir e decidiram que esse é o único jeito. - Seu rosto ficou franzido com irritação. - Mas não vou me casar com ele, nem que a própria Mãe em pessoa venha me convencer disso. Pode acreditar.

  - Eu acredito - replicou Lucien de bom humor. - Consigo facilmente imaginá-la atirando as flores do buquê de casamento na cara do pobre coitado.

  Ela o fuzilou com o olhar.

  - Bem, não vou me casar com Mylos, mas isso não significa que uma união comigo não seria feliz para ele!

  - Ah, não, Jes, qualquer união com você seria demais para qualquer macho.

  - Você não teria como saber - retrucou ela.

  Lucien sorriu.

  - Eu quis dizer que seria boa demais. - Ele tocou o próprio coração. - Uma fêmea bonita como você? Eles não teriam nem chance.

  A contragosto, ela acabou sorrindo, em seguida cruzando os braços.

  - Eu não me lembrava de você ser tão galanteador, Lucien Vanserra. 

  Lucien piscou um olho.

  - Quando nos conhecemos, eu era só um garoto tolo.

  Eles se encararam por longos momentos. Jesminda suspirou, e então falou:

  - Se somos amigos, devemos sair juntos. Para recuperar o tempo perdido. Eu... tenho um lugar que acho que você pode gostar.

  🍁

  A festa estava em seu ápice, tambores tocando alto, flautas emitindo a melodia alta e bela que vibrava nos ossos de Lucien, corpos suados de feéricos de todas as raças dançando juntos, rindo, beijando-se e... Ele apertou os olhos para enxergar melhor na noite iluminada apenas por poucas tochas. Aquilo era um casal tranzando?

  Lucien não se aproximou do povo, mas também não estava muito longe. Apenas ficou parado, observando tudo curiosamente. 

  Jesminda o havia convidado para a festa, que aparentemente ocorria quase todos os dias da semana na floresta, dois dias atrás, naquela caverna, mas ele não a via em lugar nenhum. Lucien nunca tivera problemas em se misturar onde quer que fosse - na verdade, era nisso em que ele era bom - mas dessa vez preferira esperar por ela.

  De alguma forma, aquela parte dele que possibilitava seu talento como cortezão sabia que entrar lá agora só o faria parecer um intruso.

  De repente, alguém tocou seu ombro. Ele se virou rapidamente, encontrando um macho um pouco mais baixo, de cabelo e olhos verdes.

  - É novo aqui? - Perguntou o estranho, mas não parecia muito simpático.

  - Sim - Lucien respondeu, tentando soar agradável. - Estou esperando alguém, na verdade. Você a conhece? Ela se chama Jes...

  - Você! - Exclamou a dita cuja, aparecendo do nada ao seu lado. Lucien levou um susto. Jesminda tinha os olhos arregalados. - Que bom te ver aqui, querido! Eu estava à sua espera. - Então ela se virou para o macho de cabelo verde. - Ah, olá, Mylos.

  Lucien ergueu uma sobrancelha. Aquele feérico baixinho de cara emburrada era o homem que queria se casar com ela?

  - Boa noite, Jesminda - retrucou Mylos. - Você está aqui. Como sempre.

  - E, como sempre, você também. É incrível - ela disse a Lucien. - Em todo lugar que eu vou, ele aparece também. Uma baita coincidência.

  O feérico semicerrou os olhos.

  - Vim buscá-la porque uma fêmea comprometida não deveria sair por aí em lugares como este - deu uma boa olhada no casal fazendo sexo naquele canto.

  Jesminda abriu um sorriso enorme.

  - Mas o macho com quem estou está aqui agora mesmo - respondeu, começando a puxar Lucien para onde todos estavam dançando. - Não é, querido?

  Lucien resolveu entrar no jogo, passando o braço pela cintura dela.

  - Bom te conhecer, Mylos. - Sorriu, acenando.

  Logo em seguida, enquanto dançavam, ele finalmente conseguiu perguntar:

  - O que foi isso?

  Jesminda emitiu um longo suspiro.

  - Ele está me seguindo por todos os lugares agora. Dá pra acreditar?!

  Lucien olhou para Mylos por cima da cabeça dela; o macho os fuzilava de um canto.

  - Dá - disse secamente. Ele levantou a mão para que ela girasse, o vestido verde rodopiando ao redor das belas pernas. - Eu poderia fazer algo sobre isso, sabe. 

  - Tipo o quê? Queimar o cabelo dele?

  Ele abriu um sorriso malandro.

  - As calças também. Ou os cabelos de baixo.

  Jesminda cobriu a boca com as mãos.

  - Isso seria ótimo de ver. Talvez eu seja horrível por isso, mas ah, como seria.

  - Então tenho seu aval? 

  - Infelizmente não podemos fazer isso, ou seríamos fugitivos procurados. Mas... Poderíamos... Tentar convencê-lo a desistir, não acha? - Lucien observou seu rosto cuidadosamente. - Se você concordar.

  Lucien apenas deu de ombros e ergueu um dedo em chamas.

  - Pelo menos me diga que envolve fogo.

  - Não envolve fogo - retrucou ela, e ele soltou uma queixa muito dramática. - Mas envolve algo muito melhor.

  - Afogamentos?

  - Passar tempo comigo. Sua amiga. - Ela acrescentou, um pouco insegura: - Se Mylos me ver com outra pessoa por vários dias seguidos, vai finalmente entender que nunca vou me interessar por ele. Ou assim espero. E, enquanto isso, recuperamos o tempo perdido. Quero nossa amizade de volta, Lucien. Significaria muito para mim.

  Ele não poderia nega-la isso - mal sabia que nunca seria capaz de negar qualquer coisa a ela.

  Então, como um príncipe galante e idiota, ele se viu girando-a na valsa para que ela caísse nos seus braços; e sua voz estava muito sincera quando respondeu:

  - Será um prazer.

  🍁

  Eles passaram as próximas semanas lentamente reconstruindo a antiga amizade de novo. No começo, se encontravam apenas na caverna e em festas noturnas como aquela, mas, depois, arriscaram ir a outros lugares também - nos quais Lucien usava um pequeno glamour como disfarce para não ser reconhecido. 

  Assim como quando era pré-adolescente, Lucien parou de se importar com o quão ruim eram as coisas em casa com a família. Passar o tempo com Jesminda era um sonho, uma droga inebriante, e sempre que eles se despediam, ele mal podia esperar para vê-la de novo. 

  Eles entraram em um acordo silencioso na relação, onde Lucien agia como o idiota paquerador e ela, como a donzela desentendida. Às vezes, ele sentia um aperto no estômago ou no coração ao simplesmente olhar para ela, tão livre e linda quanto uma borboleta. Ele sabia que o que quer que estivesse sentindo não adiantava de nada. Ela não gostava dele como mais do que um amigo, e, mesmo se gostasse... Os dois nunca poderiam ter uma vida normal. Não com a família de Lucien existindo.

  Na noite do Equinócio daquele ano, ele se livrou dos compromissos como sétimo filho o mais rápido possível na corte; então, ficou andando como quem não quer nada até ser esquecido no meio dos irmãos. Só depois ele sentiu segurança o suficiente para atravessar até o mais perto possível da propriedade da família de Jesminda, por onde passara tantas vezes antes. 

  Ela o encontrou matando o tempo atrás de uma árvore grossa.

  - Aí está você - sorriu, as mãos na cintura. Quando ele não se moveu, ela brincou: - Está planejando ficar por aí a noite toda?

  Lucien disfarçou a engolida em seco das vistas dela.

  - Eu não... Você tem certeza? Sua família deve me odiar. E eu não os culparia por isso.

  As feições de Jesminda se suavizaram.

  - Eles nunca te odiaram, Lucien. Você foi meu amigo por anos antes do que aconteceu com seus irmãos e Catra. Além disso, foi culpa deles - apontou. - Não sua.

  Ele começava a sentir um pouco de esperança clareá-lo.

  - Mas o que eu falei... O modo como me referi a vocês... - ele balançou a cabeça. Nenhuma ofensa era mais grave para não-grão-feéricos do que lixo. Significava que a raça de Lucien os considerava inferiores, nada mais do que ralé selvagem. - Eles devem ter ficado com raiva.

  - Bem... No começo, sim, é claro - concordou Jesminda. - Mas eu os convenci de que o que você disse era a única maneira de não arranjar problemas para nós. - Ela parou. - Na verdade, tem algo que me incomoda desde aquele dia. O que isso custou a você? - Foi a vez dele hesitar, surpreso. Jesminda buscou seus olhos com os dela e disse timidamente: - Me preocupo com você, Lucien. Sempre. O jeito que a sua família te trata... É como se você não fosse como eles. Como se você fosse como eu. E você passava tanto tempo desviando do assunto com piadinhas, enrolando e perguntando sobre a minha vida, mas nunca falava sobre a sua. Merda, você ainda é assim. Então, eu quero que saiba que, mesmo se achar que ninguém se importa... Eu me importo. 

  Lucien não sabia o que responder à aquilo. Ele desviou o olhar e pôs as mãos nos bolsos. Por fim, deu de ombros.

  - Eu não me importo. Estou acostumado.

  Ela apertou a mão dele, sem desistir, mas sem insistir. 

  - Eu... - ele começou, devagar, mais porque não queria decepcioná-la do que qualquer coisa. - Talvez possamos conversar depois? Essa é uma noite para se divertir - sorriu torto. Ela fez que sim com a cabeça, um canto da boca puxado para cima, e de alguma forma Lucien sentiu que aquele momento era importante. Como se algo estivesse mudando entre os dois. Então Jesminda, com o mesmo brilho sapeca que tivera na infância e ainda segurando sua mão, se virou e rebolou até perto das fogueiras. 

  Ela olhou por sobre o ombro e mexeu as sobrancelhas sugestivamente. Lucien gargalhou, a risada saindo de um lugar lá dentro onde estivera escondida por muito tempo. Ela o reapresentou à sua família, e ele quase abriu um buraco no chão e se enterrou ali mesmo, mas no final deu tudo certo. Depois, eles dançaram e flertaram e comeram e beberam, e o coração dele apertou.

  Talvez fosse a bebida agindo, mas ele decidiu algo sobre sua vida naquela noite.

  Quando estavam muito cansados para fazer qualquer coisa além de sentarem perto um do outro, Lucien os atravessou para um cantinho escondido na floresta, onde a luz da fogueira iluminava fracamente, e a pôs sentada em um tronco caído. Se ajoelhou na frente de uma Jesminda surpresa e pigarreou.

  - Usei mangas compridas em dias quentes minha infância e adolescência inteira sem reclamar. Porque me acostumei a apanhar por qualquer coisa, tipo derrubar um lápis quando meu pai estivesse concentrado. Teve uns dias que eu deveria te encontrar, mas estava com um olho roxo, e é por isso que te dei tantos bolos com as desculpas mais ridículas. Mas o pior era quando esses machucados não eram visíveis. - Era mais difícil do que ele imaginara confessar essas coisas depois de tanto tempo. Mas ele se forçou. Por ela. Por si mesmo. - Meu pai me odiou assim que pôs os olhos em mim, e convenceu meus irmãos a fazerem o mesmo. Cresci me sentindo um lixo e achando que eu nunca seria suficiente. Pensando que estava amaldiçoado a ser infeliz para sempre. - Lágrimas silenciosas desciam pelo rosto de Jesminda sem que ela tentasse controlá-las. - Mas isso começou a mudar quando conheci você. Posso ter viajado por Prynthian inteira, mas foi ao seu lado que entendi que o mundo era maior que a minha casa. Que eu não precisava ser daquele jeito e que eu merecia algo bom na vida. Eu estou te contando essas coisas porque nunca contei a ninguém. E estou cansado disso. De viver sob as regras deles. Você não merece isso de mim, e eu também não. Então estou abrindo o meu coração pela primeira vez, e dando ele a você. Sempre foi seu, na verdade. - Ele corou, mas continuou encarando-a. - Há... Há alguma chance de que você sinta o mesmo?

  A resposta dela foi abraçá-lo bem forte. E só quando estava nos braços dela que ele percebeu que não havia volta. Ele estivera perdido assim que a vira pela primeira vez. E de alguma forma eles acabavam voltando um ao outro toda vez, porque se pertenciam desde sempre. 

  Talvez fossem parceiros, como nas lendas sobre pessoas que nasciam ligadas umas às outras. 

  E agora que estava lá, não iria embora nunca mais. Quando se afastaram, uma eternidade quente e maravilhosa e triste e dolorida depois, Lucien pegou o lindo rosto de Jesminda com as mãos e a beijou profundamente, como sonhava desde que era menino. 

  - O meu também é seu - ela sussurrou emocionada quando seus lábios se separaram, com um sorrisinho. - Desde aquele dia em que você invadiu minha caverna. 

  - A caverna que era da minha mãe, e, consequentemente, minha, seu príncipe. Então, tecnicamente, foi você que invadiu... - provocou. Jesminda revirou os olhos.

  - Parece que você está fadado a ser um príncipe tolo, arrogante e pomposo para sempre.

  Ele lhe dirigiu um sorriso que era a síntese de todos esses adjetivos.

  - Posso ser um príncipe tolo, arrogante e pomposo, mas você ama isso, não?

  Ela suspirou.

  - Amo, sim.
 


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