O Conto de Lucien e Jesminda

By feyrhysie

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Como pode ter acontecido. (Personagens pertencem a Sarah J. Maas) More

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Epílogo

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By feyrhysie

  Ele tinha 11 anos de idade quando a viu pela primeira vez.

  Sua família resolvera tirar o dia para pescar no lago da floresta perto de casa. Normalmente, Lucien inventaria uma desculpa para não ter de acompanhar o pai e os irmãos, mas, dessa vez, as coisas pareciam tranquilas como quase nunca ficavam: Beron estava de bom-humor, o que era extremamente raro, e a mãe de Lucien, Resilla, havia sorrido para o marido mais cedo. Lucien podia ser novo, mas sabia que não devia arriscar que algo mudasse.

  Embora... Às vezes o menino não sabia o que incomodava mais o pai: que ele fizesse algo ruim ou simplesmente não fizesse nada. Parecia que até o som de sua respiração o irritava. 

  Não, ele balançou a cabeça para si mesmo. Não pense nessas coisas agora. Que a Mãe o livrasse se o pai o visse fazer uma careta para o nada!

  Apesar de tudo, ele ainda estava de mau-humor, e sentou na beira do rio de cara fechada. Seu pai e todos os seus seis irmãos mais velhos estavam nadando e provocando um ao outro na água, mas Lucien tivera de ficar de fora.

  - Não queremos um bebê chorão perto de nós - dissera Tohrn, e seu irmão gêmeo, Areas, ria tanto que um pouco de baba caíra no rosto de Lucien. Isso era muito injusto, porque ele nunca chorava. Quer dizer, só quando estava sozinho. - Sai daqui, xô.

  Eles o enxotaram como se fosse um cachorro, mas Lucien tivera dignidade para fingir que não se importara e marchar até onde sua mãe tomava sol. Sem dizer nada, ele sentara na terra ao lado dela e começara a esculpir formas na argila, xingando Tohrn e Areas em pensamento (se fosse em pensamento, mamãe dissera, então podia).

  - Minha luz - Resilla chamou, e Lucien se virou rapidamente. Ela sempre o chamava assim, e podia ser coisa de criancinha, mas ele gostava. - Está tudo bem?

  Ela falava de um jeito tão carinhoso que de repente os olhos dele se encheram de lágrimas, exatamente como um bebê chorão.

  - Tudo bem - ele resmungou, desviando o olhar.

  As sobrancelhas dela se curvaram para dentro e então para cima.

  - Pobrezinho, você queria estar com eles, não queria? 

  - Não - disse Lucien, embora não fosse verdade. - Eu não quero ficar com eles. Eles me odeiam. 

  Ela pousou a mão no cabelo ruivo do menino, que chegara até as orelhas e andava precisando de um corte.

  - Eles não te odeiam. - Ela sussurrou. Ele sabia que provavelmente era uma mentira para que ele se sentisse melhor, mas, apesar de fingir não se importar, ele acreditou só um pouquinho. A mãe se abaixou e sussurrou em tom de segredo: - Talvez isso te anime: sabia que daqui uns 400 metros pra direita, dentro de uma caverna, tem uma cachoeira secreta? 

  O menino arregalou os olhos.

  - Eu posso ir? Posso ir, mamãe? - Implorou, dando pulinhos animados e sorrindo de verdade agora. 

  - Pode - ela sorriu. Os sorrisos de sua mãe, os verdadeiros - que, para o seu orgulho, ela sempre abria quando eles estavam sozinhos - eram os mais bonitos do mundo. Seus irmãos quase nunca viam esses, mas Lucien sim. - Mas lembre que você tem que voltar antes do anoitecer, ou seu pai ficará bravo. E não conte para ninguém... só eu conheço esse lugar. Vai ser nosso segredinho, entendeu?

  - Entendi - ele disse com grande seriedade. Mamãe lhe deu um beijo na bochecha, e então ele partiu correndo para o meio da mata.

  O garoto ficou com o orgulho inflado em todo o caminho, enquanto procurava a tal caverna. Agora ele teria um segredo só dele com sua mãe. Isso significava que ela confiava nele. Seus irmãos podiam ter uns aos outros e ao pai, mas a mãe era dele. Talvez ela o achasse mais confiável, inteligente e esperto do que... Ai! Ele tropeçou num galho e caiu de cara no chão. 

  - Ou não - gemeu.

  Depois que ele pensou ter andado mais ou menos 400 metros, parou bem silenciosamente, igual fazia nas caçadas, para tentar encontrar o som de água corrente. Mais para a direita um pouco... Para frente... Mais alguns passos, apenas... Estava ali. Como o lugar parecia ser secreto, ao invés de subir a pequena elevação na terra, Lucien foi direto para a área mais funda e retirou folhas e galhos secos do caminho, à procura de uma abertura. Dito e feito! Ele sorriu, satisfeito. Ali estava.

  A primeira parte do caminho foi escura e tenebrosa e apertada, mas ele fingiu que seu coração não estava acelerado e que suas mãos não estavam suadas e seguiu em frente corajosamente, até que...

  - AH! - Ele berrou quando alguma coisa viva passou por cima do seu pé. Seria um monstro? Um feérico cheio de garras e dentes afiados que estava morrendo de fome? Ele suspirou. Seus irmãos ririam dele, e teriam razão.

  Mais um pouco, e então ele viu uma luz azulada. O barulho da cachoeira estava mais alto. Havia uma grande abertura logo à frente, e Lucien resolveu correr até ela... só para que um enxame de alguma coisa brilhante voasse direto até seu rosto. 

  Ele gritou e cobriu o rosto com as mãos, se abaixando. E então ouviu uma gargalhada alta.

  Quando tudo acabou, ele olhou para cima e viu uma fêmea mais ou menos da sua idade. Ela parecia estar achando sua situação muito divertida, porque segurava a barriga de tanto rir.

  - O que era aquilo? - Lucien perguntou, na defensiva. Para começar, ele achou que sua mãe fosse a única que conhecia aquele lugar, e ele não gostava que rissem dele.

  Ela sorriu, e seus dentes da frente eram separados. Ela tinha orelhas mais compridas do que as de grão-feéricos, como ele, pequeninos chifres despontando do cabelo castanho cacheado e garras nos pés descalços... e seu nariz era bem empinado, lembrando um focinho. É uma feérica inferior, ele concluiu, surpreso.

  - Eram borboletas, seu medroso - disse a menina. - Borboletinhas de Cachoeira.

  Ele se levantou, examinando o lugar. A cachoeira vazava de algum lugar nas pedras, e, dentro do pequeno lago em volta, era como se uma lanterna gigante estivesse acendida. Brilhava com a luz azul que iluminava toda a caverna.

  - Não sou medroso. Não sabia que tinha borboletas aqui - ele disse humildemente.

  Ela inclinou a cabeça para o lado, não mais rindo, só... alegre.

  - Você nunca veio aqui? - Perguntou com curiosidade.

  - Nunca. Minha mãe me disse para achar esse lugar agora. Ela disse que era a única que conhecia - acrescentou, desconfiado.

  A menina deu de ombros.

  - Bem, eu venho aqui já faz quase um ano. É o meu canto secreto. - Ela franziu a testa. - E você invadiu...

  - Não invadi! 

  - Mas tudo bem - ela juntou as mãos. - Quer ver as borboletas ou não?

  Lucien concordou, ainda meio ressabiado, e então ela pulou na água de vestido e tudo. Ele balançou a cabeça e começou a tirar os sapatos, as calças e então a camisa, fingindo não estar envergonhado (suas roupas teriam que estar secas, ou o pai brigaria com ele por molhar as coisas na volta), antes de pular também.

  Ela disse a ele que eles precisavam atravessar a cortina de água para o outro lado. Lucien a seguiu até lá e recusou sua ajuda para subir na pedra negra e molhada de trás, ao que ela revirou os olhos e resmungou: "machos...".

  Ela lhe mostrou uma abertura pequena da altura exata dos olhos deles, e, de dentro... Ele emitiu um "ahh" maravilhado. Dezenas de borboletas lindas e brilhantes, cheias de uma luz azul igual à do lago, moravam ali. Eles trocaram um olhar de compreensão, quando ele admitiu que eram muito bonitas.

  - São espíritos - ela explicou. - Do meu povo.

  - Por quê? - Questionou Lucien, curioso, e então reformulou rapidamente: - Por que eles escolheriam ficar aqui, ao invés de ir para o paraíso?

  O rosto dela ficou repentinamente triste, e ele percebeu que não queria deixá-la triste.

  - Porque os grão-feéricos não deixaram que eles entrassem.

  - Mas... Por quê?

  A menina baixou a cabeça. Seu rosto marrom cheio de sardas era muito bonito.

  - Minha mamãe disse que vocês não gostam de nós.

  Lucien pensou.

  - Bem, eu não conheço vocês, como poderia não gostar? 

  - Isso... até que faz sentido, garotinho. Então não vou dizer o meu nome, assim você nunca vai me conhecer e poder me odiar. 

  - Não é assim que funciona - retrucou Lucien, mas se viu sorrindo pequeno, porque os olhos castanho-escuros dela tinham um brilho sapeca. 

  🍁

  Na semana seguinte, no café da manhã, Lucien perguntou a Eris se eles iriam ao lago de novo.

  - Por quê quer saber? - Indagou o mais velho de seus irmãos, com um sorrisinho. - Você nem nadou.

  Lucien afundou na cadeira.

  - Porque Tohrn não deixou - murmurou para dentro.

  - O que disse?

  Ele já sabia que não adiantava falar com os irmãos... Mas, às vezes... Eris era mais compreensivo do que os outros.

  Ele respirou fundo.

  - Eu queria nadar, mas Tohnr não deixou. De qualquer forma, nem quero mais, mesmo - falou rápido. - É que gostei de andar na floresta.

  - A floresta é perigosa - comentou Eris, erguendo uma sobrancelha. - Tem monstros alados, bestas sanguinárias, feéricos inferiores... - Para o último, Lucien franziu a testa, mas não disse nada.

  - Então é para lá mesmo que o Lucien devia ir - intrometeu-se Clay, de bom-humor.

  Lucien cerrou os punhos e olhou para o resto de bolo no seu prato.

  - Se eu morrer, vai ser melhor para vocês mesmo. Então por quê não podemos ir?

  Seus irmãos pensaram no assunto por alguns momentos, e então esqueceram. Mas, na manhã seguinte, a ama de Lucien entrou no seu quarto e se pôs a arrumar suas coisas.

  - O Lorde Eris vai levar o senhor para viajar junto com seus irmãos por alguns dias - explicou ela, feliz. - Era tudo que o senhor queria, não é? Que seus irmãos te levassem junto nas coisas?

  Ele encolheu os ombros, incerto.

  - É...

  Na verdade, costumava ser, mas ele não era mais tão burro. Normalmente, quando os irmãos lhe davam uma chance, na verdade era uma pegadinha. De modo que quando Eris atravessou com ele para o lago e lhe mandou montar acampamento sozinho para que ele pudesse pescar, Lucien nem reclamou. Passou todo o tempo em silêncio rebelde, até quando seus outros irmãos atravessaram também e praticamente o fizeram de servo, pedindo a ele que arrumasse isso, e lavasse aquilo, e refizesse aquele nó... Mas, no jantar, ele agradeceu com toda a sua educação quando lhe passaram seu espeto de peixe defumado.

  Seus seis irmãos eram uma bagunça quando estavam juntos. Bebiam vinho, conversavam atropeladamente, um em cima do outro, riam, contavam histórias perversas, e até se davam uns tapas de vez em quando. Mas não eram tapas ruins. Era coisa de irmão.

  Coisas de irmão, das quais ele não fazia parte e nunca fizera. Por alguma razão, apesar de tudo ter acontecido exatamente como ele queria, Lucien ficou deprimido a maior parte da noite. 

  Não importa, ele disse para si mesmo. Logo estarei longe daqui. Quando eles fossem dormir.

  - Ei, o que ele tem? - Quis saber Denn, certa hora.

  Todos olharam para o pequeno Lucien, sentado atrás de Eris, como se só agora lembrassem que ele estava ali.

  - Deve estar chateado porque não entrou na água na última vez - disse Jace.

  Lucien cruzou os braços e ergueu a cabeça fazendo sua cara mais rabugenta.

  - Não ligo para esse lago sujo - exclamou, e logo depois marchou para a própria barraca.

  Ele mal conseguiu esperar a hora certa para sair furtivamente do acampamento. Na última vez, tinha dito à menina que se ela fosse à caverna três horas antes do amanhecer sempre, em alguma vez haveria de encontrá-lo. É que ele sabia, por experiências passadas, que esse era o melhor horário - quando seus irmãos estavam caídos de bêbados e não perceberiam sua saída. Lucien estremeceu ao pensar no que aconteceria se eles soubessem... No mínimo, encheriam seu saco para sempre.

  Ele achou que ela não estaria lá, mas estava, e a encontrou já dentro do lago.

  - Vem! - Exclamou ela. - É quentinho aqui.

  Era mesmo. Lucien arrancou as roupas rapidamente e pulou lá, jogando água na cara dela.

- Meu nariz! Entrou no meu nariz!

Ele riu. Eles brincaram até o sol ameaçar nascer, quando Lucien disse, com muita tristeza, que tinha que ir.

- Por quê?

- Por causa dos meus irmãos. Eles me matariam.

Ela arregalou os olhos castanhos e enormes.

- Mas não é perigoso! Fala pra eles. Só não traga eles aqui.

Ele ficou confuso por um instante.

- Não é isso. Eles não ligam para isso, mas... acho que ficariam bravos por... - o menino piscou. Por ele estar falando com ela? Por ele ficar feliz ali?

O último pensamento o assustou. Então ele fingiu que não tinha pensado.

O dia seguiu do modo mais entediante possível, já que ele era ignorado. No meio dia, Lucien se jogou na grama sob o sol quente com braços e pernas esticados, parecendo uma estrela.

Eris o encontrou para anunciar que tinham terminado o almoço.

- Dessa vez não é peixe, irmãozinho. Denn arrumou uma ovelha gorda pra gente.

O menino abriu um olho.

- Legal.

Ele sentiu o irmão sentar ao lado dele.

- Mas o que diabos você tem?

Quero ir para casa, pensou Lucien, mas, se fosse, então a menina ficaria esperando à toa, e sabe-se lá quando se veriam de novo.

- Quando vamos embora?

- Amanhã. Mas, se bem me lembro, foi você quem sugeriu essa viagem. Algo não está do seu agrado? - A última frase foi dita com sarcasmo.

- Hmmmm.

À tarde, Lucien ficou com vergonha de perguntar se podia ficar no lago com os outros... E também, pensou com mau-humor, ele tinha amor-próprio, não ia ficar se sujeitando isso.

- Sou um príncipe - falou em voz alta, enquanto dava voltas no mesmo lugar e chutava as folhas. - O sétimo filho do Grão-Senhor da Corte Outonal. E um monte de nada - murmurou.

Verdade seja dita, aqueles dois últimos dias haviam sido perfeitamente bons em comparação com a maioria dos outros, então ele não entendia o que estava acontecendo. Os irmãos o ignoravam como sempre, mas pelo menos não o irritavam.

De madrugada, a menina percebeu seu humor.

- O que diabos você tem? - Perguntou ela, os pés balançando, sentada na beira do lago. Era a mesma coisa que Eris havia perguntado, mas ele não ligou para isso, porque, com a luz azulada circundando sua pele marrom e os cabelos negros e cacheados soltos nas costas, ela parecia uma fada; só faltavam as asas.

Asas delicadas e transparentes, ele quase conseguia vê-las. Não como as dos Illyrianos da Corte Noturna, que pareciam morcegos, ou como as dos Peregrinos da Corte Crepuscular, que pareciam de pássaros.

- Meus irmãos me odeiam - contou ele, cabisbaixo.

- Que estranho... - Ela mordeu o lábio, pensativa. - Você tem certeza?

- Acho que sim. Eles nunca me querem por perto e sempre me excluem de tudo. E quando estão com meu pai, é pior.

- Como, pior?

Lucien negou com a cabeça.

- Deixa quieto.

Ela passou um bom tempo em silêncio.

- A sua mãe te ama?

- Com certeza!

- Muito?

- Acho que sim.

- Então, se o amor dela ultrapassar o ódio dos seus irmãos e do seu pai, tudo fica equivalente.

Ele nunca mais tirou essa frase da cabeça. Mesmo quando o ódio que sentia por si mesmo ultrapassou, muito tempo depois.

Na noite seguinte, ela parecia estar esperando por ele com a pergunta já pronta:

- Por quê eles te odeiam? O que você fez? - Ela se aproximou do rosto dele com aqueles olhos enormes curiosos. - Você matou alguém? - Sussurrou.

Lucien se afastou, horrorizado.

- É claro que não!

Ela suspirou, claramente aliviada.

- Que bom. Eu estava com medo de ser amiga de um criminoso. Se bem que... - colocou o dedo na boca - na verdade, não estava, não. - Sorriu, sapeca. - Seria legal.

Ele acabou sorrindo também. Toda vez que ela o tirava do sério, rapidamente o fazia sorrir.

- Eu falei com a mamãe sobre a sua situação com os seus irmãos, já que não tenho irmãos pra consultar - disse ela. - Sente aqui comigo.

Lucien sentou, atento.

- Bem, ela me disse que, por mais que a gente sinta raiva, é impossível odiar alguém da sua família de verdade. Porque estamos todos unidos aqui - ela pegou a mão dele e pôs sobre seu próprio coração. Lucien não conseguiu respirar por algum tempo, encarando-a.

Finalmente, quando eles se separaram, ele disse, inseguro:

- Você... a sua mãe tem certeza disso?

A menina balançou a cabeça com muita segurança.

- Sim, sim. A mamãe sempre tem certeza de tudo. E está sempre certa.

Antes de ir embora, Lucien pegou na mão dela.

- Qual o seu nome? - Perguntou, baixinho, e o rubor no rosto não o impediu. - O meu é Lucien.

Ele não diria seu sobrenome, porque poderia assustá-la.

- Promete que não vai me odiar, agora que me conhece? - Pela primeira vez, ela parecia insegura.

- Prometo.

Ela acreditou e sorriu com o rosto inteiro, igual à Resilla.

- Meu nome é Jesminda.

  🍁

  Vários meses se passaram até que eles pudessem se encontrar de novo. E então os anos foram correndo. Era uma amizade que ficava meio congelada de tempos em tempos, mas, quando os dois se viam, instantaneamente era como se todo aquele tempo não tivesse passado. Jesminda contou a ele sobre sua grande família, seu pai, sua mãe, seus tios, avós e a enxurrada de primos. Ele adorava ouvir. Eles pareciam se dar muito bem entre si, e ele não gostava de admitir, mas tinha inveja. Em troca, Lucien lhe ensinou a caçar na floresta com arcos, lanças e armadilhas.

  - Como você consegue fazer isso com tanta facilidade?! - Exclamou a menina certa vez, jogando os braços para o alto, quando eles tinham quatorze anos.

  Lucien, com as barras das calças dobradas para cima enquanto apanhava um peixe atrás do outro no lago com uma lança, sorriu desdenhosamente. 

  - Eu chamo isso de talento natural.

  - Metido.

  - E também é porque eu não fico falando e me remexendo toda hora para espantar os peixes.

  - Eu não faço isso! - disse ela, bufando. - É porque você teve tutores para isso desde que aprendeu a andar, com certeza.

  - Não desde que aprendi a andar - retrucou Lucien, saindo do riacho vitoriosamente com seus três peixes empalados.

  - Você é nobre - apontou Jesminda. - Com certeza teve tutores até pra cagar.

  Ele abriu a boca para negar, mas lembrou que tivera, sim, um tutor para isso, quando era bem pequeno e tinha problemas nos intestinos.

  - Ah, não! Não me diga que teve mesmo!

  Ele percebeu que fazer piada de si mesmo era a melhor maneira de sair daquela situação.

  - Bem, foi muito útil. Aprendi técnicas milenares para fazer o cocô deslizar como uma luva, se quer saber. - Ele ergueu uma sobrancelha. - Quer que eu te ensine?

  Jesminda cruzou os braços e revirou os olhos, com um lábio repuxado para cima.

  - Você é impossível. Bem, senhor nobre, posso esperar vê-lo no Equinócio?

  Da onde estava sentado, começando a limpar os peixes, Lucien parou. O festival do Equinócio de Outono seria em menos de uma semana, e ela vinha tentando convencê-lo sucintamente a passar na parte camponesa das festas na noite. Seria a primeira vez que eles se veriam além dos limites floresta.

  O único problema era que ele poderia ser reconhecido no meio do povo, e Lucien não queria que ela soubesse que ele era um Vanserra ainda. Talvez nunca. Sua família, assim como a maior parte dos nobres Grão-Feéricos, era preconceituosa com aqueles que chamavam de feéricos inferiores. E, se eles descobrissem que ele era amigo de uma... Os dois nunca mais se veriam.

  Mas ela parecia tão ansiosa que ele não conseguiu negar.

  Ao menos, foi o que disse para si mesmo. Não tinha nada a ver com a vontade de encontrá-la na festa, não mesmo.

  No dia do Equinócio, Lucien participou da festa da corte do mesmo jeito de sempre: comendo sem parar em um canto, tentando se fazer invisível e fugindo do olhar do pai, que só ficara mais raivoso ao longo dos anos.

  De vez em quando, tinha que dançar com alguma filha dos aliados do pai, mas isso era raro porque haviam poucas crianças e adolescentes em Prynthian. E, considerando que ele tinha seis irmãos mais velhos para assumir o serviço, ele pôde ficar na sua por bastante tempo.

  Esse ano, o Grão-Senhor da Corte Noturna viera fazer uma visita diplomática e trouxera seu filho junto com dois machos illyrianos chamados Cassian e Azriel, cujos nomes Lucien havia aprendido a temer. Mas os dois últimos não fizeram nada além de copiar a estratégia do próprio Lucien de se camuflarem à parede. 

  Ele foi chamado para fazer uma fila com seus irmãos, do mais velho para o mais novo, para que Beron os apresentasse à família da Corte Noturna. 

  Todos olhavam para Rhysand com espanto e admiração; segundo os boatos, ele era o grão-feérico mais poderoso que já nascera em Prynthian, e ficaria ainda mais forte quando se tornasse Grão-Senhor. Lucien pensou que Jesminda adoraria conhecê-lo; ela era obcecada por lendas do tipo. 

  Foi apenas para agradá-la que Lucien ergueu o queixo depois de cumprimentar Rhysand e perguntou:

  - É verdade que você pode fazer um exército virar pó em um segundo? 

  Seu pai sibilou para ele. Ele nunca fora muito bom em segurar a língua, o que já trouxera problemas e provavelmente causaria mais no futuro.

  O príncipe de cabelo preto e olhos violetas deu risada.

  - É o que disseram a você, garoto?

  Todos olhavam para eles agora. Lucien tentou parecer um príncipe casual e relaxado ao dar de ombros.

  - É o que ouvi dizer.

  Rhysand inclinou a cabeça para o lado. O pai dele, no entanto, aproveitou a oportunidade para exibir os dotes do filho.

  - Seu caçula não é único neste salão curioso sobre os poderes de Rhys. Se você aceitar, Beron, podemos fazer uma demonstração, afinal.

  Lucien arregalou os olhos. Não era isso que ele queria. Não mesmo...

  Mas seu pai achou a ideia ótima. Mandou chamar três prisioneiros sentenciados a morte para o salão. Vê-los o fez sentir aliviado. Lucien observou que o queixo de Rhysand estava travado e os dentes cerrados. Ele contou ao herdeiro, baixinho:

  - Eles seriam queimados até a morte na fogueira, à noite. Pelo menos assim não vão sofrer.

  Rhysand olhou para ele brevemente, mas assentiu com um movimento mínimo de cabeça. Lucien sempre fora bom em entender expressões corporais e ler as pessoas. Às vezes, seu pai usava isso a seu favor, ordenando que ele lesse políticos e nobres durante encontros e festas. "Ao menos para ser cortezão ele servirá", ouvira Beron dizer a Eris certa vez. Pelo menos ele não era completamente inútil.

  Por isso ele não pôde deixar de notar a expressão encantada de várias pessoas quando Rhysand transformou os machos em pó vermelho, mesmo as damas e lordes que tentavam esconder para manter a farsa de bons e gentis. Eles não davam a mínima para quem tinha uma morte rápida ou dolorosamente lenta, não se fossem entretidos. O garoto fez uma careta de nojo. Aquela era uma corte apodrecida cheia de pessoas farsantes e cruéis. Ele mal podia esperar para ser adulto e poder se livrar deles.

  À noite, sob o brilho das fogueiras gigantes feitas com carvalhos antigos, ele atravessou o bosque lamacento e frio que separava a área de festejo real das festas nas fazendas dos camponeses. Na parte onde as luzes não chegavam, Lucien fez uma pequena bola de fogo para iluminar o caminho. Depois, caminhou silencioso como um gato pelas sombras ao redor de onde o povo dançava e festejava, tentando encontrar a fogueira da família de Jesminda. Ela lhe dissera que haveria uma placa com um desenho de raposa, o brasão dos Alfoir, em algum lugar por ali...

  Alguém agarrou seu braço. Lucien instintivamente se desvencilhou com força, pondo-se em posição de defesa. O garoto feérico de cabelo castanho, chifres e orelhas semelhantes aos de Jesminda soltou uma gargalhada.

  - Tem certeza que é ele o seu namorado, Jes? 

  Lucien fez uma careta e corou. Primeiro porque ele só tinha reagido como deveria fazer se estivesse na corte com seus irmãos, e segundo porque... Oras... Ele não era o namorado de Jesminda.

  - Não!

  Mas logo o rosto sorridente dela apareceu e, estranhamente, ele sentiu algo no estômago se remexendo, como borboletas voando para todo lado.

  - O nome dele é Lucien - ela retrucou para o garoto, que parecia ser pouco mais velho do que eles. - É o meu melhor amigo. 

  As sobrancelhas dele se juntaram, como se ele estivesse tentando lembrar de onde conhecia o nome. Sendo o sétimo filho e não tendo atingido a maturidade ainda, Lucien não era conhecido, mas ele supôs que também não era exatamente anônimo. 

  Antes que o rapaz pudesse pensar demais, Lucien estendeu a mão.

  - É um prazer.

  - Você é grão-feérico - disse o outro. - E nobre, pelas suas roupas. Tem certeza de que é um prazer?

  - Sinto muito que minha raça não seja amigável com a sua - respondeu Lucien, triste. - Mas eu não sou assim.

  - Hum...

  - Pare já com isso! - Jesminda exclamou, jogando os braços para cima. 

  Finalmente, o garoto deu de ombros e apertou a mão de Lucien.

  - Sou o Max. Cuide bem da minha prima, ouviu?

  Lucien deu um sorriso de canto de boca.

  - Sempre cuido. Ela é muito arteira, como você deve saber...

  - Não que eu precise ser cuidada - retrucou a menina, enroscando um braço no de Lucien e o puxando para a festa. - Agora - ela sussurrou para ele - você vai aprender como se comemora o Equinócio com nós, plebeus!

  - Não é só beber e pular em volta das fogueiras? - Provocou ele, cutucando-a com o cotovelo.

  Como resposta, ela segurou sua mão e rodopiou no ritmo dos tambores, o vestido voando ao redor de si. Foi a coisa mais linda que ele já viu.

  Eles dançaram muito, até os pés doerem. E riram muito também, até as bochechas sentirem. Jesminda o apresentou a toda a sua numerosa e extremamente amorosa família; pais, avós, bisavós, tios e os doze primos. Depois, sentaram em um tronco bebendo um líquido estranho, doce e muito gostoso, feito com amendoins e leite quente, comendo milho direto da espiga com manteiga.

  - Então você esteve na Casa da Floresta?! - Quis saber ela, de olhos arregalados.

  - É... Hum - ele pigarreou. - Nesse ano a minha família foi convidada.

  - Você viu a família real? Como eles eram?!

  - Sim. - Ele sorriu, pensando na ironia da coisa. - Não muito legais, na verdade. O quarto príncipe, Torhn, é um saco. O terceiro, Clay, é muito feio, parece uma fuinha. E o Jace, então...

  - E o sétimo? - Ela interrompeu, ávida. - Como ele é? Minha mãe disse que ele tem a nossa idade.

  - Ah... - Ele pôs a mão no queixo, fingindo estar muito concentrado. - Ele é muito bonito e inteligente, e muito alto e musculoso também. Todos o adoram... Foi até difícil chegar perto dele, de tanta proteção dos irmãos mais velhos. Ele é o preferido do pai para assumir o trono, mesmo tão jovem, sabia? No começo, achei que fosse ser mimado, mas então conversamos e descobri que ele é na verdade muito bacana. Agora somos amigos.

  Jesminda ouvia com a cabeça escorada na mão, tentando esconder o sorriso. Os olhos castanhos dela pareciam sonhadores, pensando na figura perfeita que Lucien tinha pintado. Talvez sonhasse com príncipes bonitos e galantes. Ele ficou meio incomodado, e depois ficou incomodado por estar incomodado. Estava com ciúmes de si mesmo? Espera, ele estava com ciúmes?

  - O que mais? - Ela perguntou.

  - A Corte Noturna deu uma passada lá também. O Grão-Senhor levou seu filho Rhysand e dois soldados illyrianos, Cassian e Azriel. Eles têm enormes asas de morcego.

  - Você os viu voando?

  Ele assentiu e contou como os três haviam levantado vôo para ver a Corte. Depois, mais sério, contou sobre como Rhysand havia transformado os prisioneiros em pó.

  - Foi melhor do que o que iria acontecer com eles essa noite, ao menos - murmurou ela, baixinho. Lucien assentiu. Era um costume muito antigo o Grão-Senhor queimar prisioneiros no Equinócio para toda a nobreza assistir e se divertir. Quando era criança, sonhava com os gritos deles por meses depois. Agora, ele se acostumara.

  - Vai ter mais uma música - disse Jesminda, olhando para os casais se reunindo em volta da fogueira. 

  Lucien ficou de pé e estendeu a mão para ela, brincalhão. Ele seria o príncipe charmoso dela por esta noite, mesmo que ela não soubesse.

  Já no meio do gramado, ele pôs as mãos na cintura dela e sentiu o braço esquerdo dela em seu pescoço, a mão direita segurando seu ombro. Eles giraram e giraram e, por aqueles minutos, Lucien não teve nenhuma inveja dos illyrianos. Era como voar. 

  O rosto dela estava perto, seus lábios sempre curvados com pura alegria, os olhos enormes castanhos, as adoráveis sardas. Sem raciocinar, ele subiu uma mão pelas costas dela, até a nuca. Aproximou seus rostos. A boca carnuda de Jesminda se entreabriu levemente. Ele mal conseguia respirar quando se inclinou...

  E um grito feminino os assustou e dispersou, constrangidos.

  - O que foi isso? - Exclamou ele, surpreso.

  Jesminda precisou de alguns segundos para reconhecer. E então pareceu chocada.

  - É a minha prima Catra. Está vindo da floresta!

  Os dois correram até lá, seguidos do resto da família Alfair. Se embrenharam no mato, e Jesminda tropeçou uma vez, mas Lucien a segurou e iluminou o caminho. Eles chegaram a um espaço entre as árvores com uma luz fraca de fogo. 

  Lucien parou, e teve de segurar o enjoo. Lá estava a prima de Jesminda que ele conhecera há pouco, prensada a uma árvore por Tohrn e Areas, ambos absolutamente bêbados e passeando as mãos na pobre garota, que agora estava impedida de gritar. Eles levaram exatos 10 segundos para perceber que eram vistos, bem quando o resto do pessoal chegou. 

  - Olha o que você fez - cuspiu Tohnr para ela, finalmente soltando-a.

  Areas se apoiou na árvore, piscando, e então deu um sorriso malicioso. Lucien sentiu um arrepio. Ali estavam seus irmãos, tentando se aproveitar de uma fêmea e dirigindo aqueles tons raivosos para outra pessoa que não ele. Ele sabia que todos eram cruéis, mas... Talvez nunca os tivesse conhecido realmente.

  - Devíamos levá-la para casa só pela insolência - sugeriu Areas. - Talvez dá-la a Lucien pra ele deixar de ser um pirralho.

  Ninguém teve coragem de fazer nada além de encará-los com ódio. Afinal, eram príncipes. Jesminda olhou para Lucien só por um segundo. Ele se encolheu. Catra correu até eles, e então os dois idiotas ergueram os olhos e o viram lá. Areas abriu um enorme sorriso.

  - Lucien, irmãozinho! Nós estávamos justamente falando de você.

  - Lucien? - Sussurrou Jesminda, atônita.

  Ele não olhou para ela. Enquanto a família dela se reunia atrás, ele deu alguns passos para frente e ergueu as mãos num gesto apaziguador.

  - Voltem para casa. O lugar de vocês não é aqui.

  - E o que você está fazendo aqui? - Quis saber Tohnr. - Veio festejar com essa família de feéricos inferiores? Conhece eles? O pai não vai gostar de saber disso. E eu vou adorar contar.

- Lucien? - Sussurrou Jesminda novamente, enquanto abraçava a prima. Ele não aguentaria olhar para ela. Não suportaria ver o choque e o horror em seu rosto. E, se seus irmãos descobrissem o que ele andava fazendo, o que ela significava para ele... Não queria nem pensar.

Então ele fez a pior coisa que poderia fazer. E também a melhor.

Ele deu a melhor imitação do sorriso cruel do pai, o mesmo que todos os seus irmãos copiavam perfeitamente, se virou e imaginou que todas aquelas pessoas eram lixo nojento e podre. Enrugou o nariz.

- Não conheço esse povo - disse com desprezo. - Eles me seguiram até aqui porque queriam adular um príncipe da Outonal. Só vim porque queria ver como eles são. - Se virou para Tohnr e Areas. Eles não acreditariam facilmente no seu papinho malvado. - Mas o que vocês fizeram não foi certo. Mesmo lixo feérico tem alguma dignidade. Se não contarem sobre isso para o pai, eu não conto sobre a garota.

Os dois rangeram os dentes e rosnaram baixinho, mas por fim concordaram. Atrás, Jesminda estava completamente imóvel, raiva cintilando em seus olhos.

- Está bem - cedeu Areas, de mau-humor. - Vou passar essa, mas não pense que não haverá consequências. E você vem com a gente, seu merdinha, antes que o pai sinta o cheiro deles em você e culpe a nós. - Ele agarrou o braço de Lucien com força suficiente para o garoto saber que precisaria se esconder para não apanhar depois, e então os três atravessaram para longe.

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