capítulo único

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"... A jardineira disse as palavras que tinha ouvido anos atrás. Ela tentou com todas as forças. 'Você, eu, nós. Nós'. 'Leve-me com você', chorou com o coração. 'Leve-me, arraste-me como fez com os outros'. Mas a mulher do lago era diferente agora. A mulher do lago também era Dani. E Dani não faria isso. Dani nunca faria isso. Na realidade, ninguém mais seria levado. E ninguém mais foi levado até hoje".

Jamie, a jardineira, nadou até a beira do lago e gritou com a dor que dilacerava seus pulmões e sua garganta. Antes de mergulhar nas águas frias e fétidas do lago da Mansão Bly, por um segundo de dissimulante ilusão acreditou que não encontraria Dani lá no fundo. Simplesmente desacreditou que ela pudesse estar ali, perfeitamente imóvel como uma pesada boneca de porcelana. Mas o choque de enxergá-la no mesmo lugar que temia não sofreu abrandamento, senão tornou-se ainda mais exorbitante.

Nenhum desalento clamado por Jamie foi capaz de trazer Dani à superfície. Não importava a intensidade de sua dor, nem de seu amor. Há coisas, afinal, que não dependem do amor ou da justiça. Há coisas que espontaneamente acontecem sem qualquer motivo justificável. Jamie sabia disso. Recusava-se a aceitar, todavia. E não foi sua dor ou seu amor que mudou o curso desse desfecho, mas pontualmente sua teimosia.

•••••••

O velório, evidentemente de caixão fechado devido à falta de corpo, ocorreu na semana seguinte, e reuniu antigos amigos, familiares, e novos amigos. Como um robô, Jamie recebia os pêsames das pessoas mais inusitadas. Alguns clientes da floricultura, parentes distantes de Dani, a ex-sogra dela. Palavras de conforto seguiam sussurradas em seu ouvido enquanto abraços apertados eram trocados. A reação da florista era sempre a mesma: um agradecimento polido, curto, e a falta de sorriso.

Foi somente quando viu o rosto conhecido de Owen, antigo cozinheiro da Mansão Bly e agora dono de seu próprio restaurante, que a sua reação irrefletida enfim se transformou. O homem apareceu diante dela, oferecendo-lhe um sorriso triste escondido por grossos bigodes negros, e abriu os braços para o abraço padrão. Os pêsames dele, entretanto, significavam muito mais do que os outros. Jamie o abraçou com força, finalmente padecendo à agonia que evacuava seu peito. Chorou lágrimas infinitas, gemeu, gritou. Owen a segurou com todo o apoio que o passado em comum poderia brindar, e lentamente a guiou para fora do estabelecimento.

Chovia e o sol se punha. As luzes dos postes de iluminação, tão amarelas e oscilantes, assumiam um brilho alaranjado agora, borradas e enevoadas pela chuva insistente. Mas Owen e Jamie estavam protegidos pela sacada do andar superior que permitia que ficassem do lado de fora sem se molhar.

— Eu não esperava que você viesse — disse Jamie, limpando as lágrimas dos olhos com as mangas de seu casaco preto.

— Vocês significam muito para mim — respondeu Owen. — E eu sei como é... perder alguém querido.

Jamie fez que sim com a cabeça. Owen sutilmente retirou um cantil metálico do bolso interno do casaco de lã que usava e o ofereceu à florista.

— Owen, você é realmente um salvador. — Ela pegou o cantil, girou a tampa para abri-lo e bebeu um enorme gole da bebida alcoólica que ele continha.

— Acha que eu viria de mãos abanando? Não trouxe drogas porque me prenderiam no aeroporto. Mas ninguém liga para gim, aparentemente.

— Como você está? — Jamie passou o cantil para ele, e ele também bebeu um gole do gim.

Owen deu de ombros.

— Como posso estar. Os negócios estão ótimos. Posso cozinhar o que eu quiser, e tem dias em que sequer cozinho, apenas organizo tudo. Acho que posso me intitular "empreendedor" hoje em dia.

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