Respeitando as orientações do arquivista, ele calçou as luvas e utilizou-se da pinça, que deixava de lado sempre que achava algo interessante o suficiente para ser fotografado.

Não só a quantidade como a antiguidade dos documentos (sim, os Rossi apesar de italianos foram beneficiados pela Coroa Portuguesa, assim como, os Espósito, e conseguiram aquelas terras de um nobre herdeiro desinteressado em manter-se em terras brasileiras no final de 1700, portanto, antes da vinda da Coroa).

Sentindo-se um ignorante, Eros olhou ao seu redor e deu um longo respiro: sua queria amiga Hilde não tinha brincado quando lhe contou que o último herdeiro dos Rossi levava muito a sério sua história familiar! Se Eros tinha ficado encantado com a biblioteca, a caverna climatizada tinha lhe estourado a mente!

"Ah! Se o Sr. Enrico visse isso aqui!", pensou na caverna escavada em calcário em que mantinham os melhores vinhos produzidos pela família. Era nada perto daquele cuidado com os mínimos detalhes que encontrava ali.

O local não tinha um único grão de pó em qualquer superfície, o oposto dos trechos de terra original que o tio insistiu que não podiam ser cobertos por concreto na adega, para não destruir o meio ambiente propício como poucos ao envelhecimento do vinho.

Ele voltou para a biblioteca para buscar sua câmera favorita e então, calçou novamente as luvas de algodão, mais determinado que nunca em registrar tudo aquilo.

O motivo que levara Eros a usar todas as artimanhas e influências para que o conseguisse uma incursão exclusiva no castelo dos Rossi, no entanto, não se baseava somente na caridade.

Sim, ele realmente tinha tudo programado para fazer uma exposição que teria seus fundos inteiramente revertidos à biblioteca Municipal, que realmente precisava de upgrades.

Secretamente, porém, ele fomentava um desejo quase incontrolável de provar a todos que tinham lhe contado a principal lenda da cidade, de que eles estavam redondamente enganados.

Tinha pouco mais de três anos que ele havia retornado da Baía dos Santos para Vila Velha para auxiliar seu tio no trato da vinícola e da adega Famiglia Vicenzze, depois de um episódio cardíaco bastante assustador do senhor que amava tanto viver pelo ditado tão italiano quanto o próprio, "Il dolce far niente".

A sobrecarga de cuidar sozinho do negócio que inicialmente era dividido entre dois irmãos, as demandas de atenção de sua filha adolescente rebelde metida com namoricos inconsequentes, a ausência do conhecido rodízio de mulheres pretendentes a Sra. Vicenzze, sim, a vida do tio mudou muito em pouco tempo e era hora de Eros fazer alguma coisa por quem sempre fez tudo por ele.

Com seu tio impossibilitado e sua única prima, ainda adolescente (sim, muito mais capaz que ele para os negócios da família, mas ainda, uma adolescente que precisava ser assistida legalmente para que seus atos fossem civilmente capazes de produzir seus efeitos legais — ele tinha ouvido isso tantas vezes do advogado da família que tinha decorado), Eros tinha abandonado a carreira de fotógrafo esportivo numa revista especializada da Baía e mergulhado profundamente na vida "de interior" que a cidadezinha histórica proporcionava.

E desde então, sua obsessão por retratar a cidade acabou se transformando num projeto de pesquisa, de início puramente pessoal, mas depois tinha até se transformado numa exposição fotográfica no paço municipal muito bem avaliada pela crítica especializada, há cerca de dois anos, quando ele se rendeu não só a insistência profissional da marchand Claire Mendes, mas também à sua sedução.

Lembranças picantes e bem finalizadas a parte (as coisas com Claire fizeram surgir para ele um novo jeito de se relacionar que tinha permeado todos os envolvimentos desde então, mas esse não era um pensamento adequado para se ter no santuário do Rossi), Eros corrigiu o curso da mente para se ater ao fato de que apesar da primeira pesquisa e exposição ter se voltado para as lendas sobre as Madonnas negras desencavadas em muitos dos sítios arqueológicos do local, agora ele tinha um novo e secreto objetivo em mente, entremeado com a exposição fotográfica para levantar fundos para a biblioteca.

Após ouvir o relato da lenda do "casal da Viarello" ser contado das mais variadas formas possíveis, ele colocou na cabeça que tinha que encontrar a verdade por trás das fantasias românticas, mitológicas (e particularmente, irritantes) de 99% das mulheres com quem tinha se relacionado nos últimos anos.

Ele respirou fundo e tentando livrar a mente da voz aguda, que lhe fazia eriçar os cabelos da nuca, que tinha lhe relatado a lenda pela última vez, mergulhou, mais uma vez com toda a cautela recomendada pelo arquivista nos registros da família Rossi, que ele tinha certeza, guardavam as respostas para aquele "mistério".

Sua mente não tentava discutir com o impulso, explicando o porquê dele julgar que se desmistificasse os acontecimentos e conhecesse o real motivo do final infeliz daquela história de amor, teria uma epifania sobre seus próprios relacionamentos – todos falidos mesmo antes de começar, porque ele jamais se permitia ficar mais de quinze dias com a mesma mulher (bendita Claire Mendes e sua experiência de vida que lhe entregou aquela abençoada epifania de bandeja!).

Sim, essa era uma regra fundamental para a sua sanidade que tinha desenvolvido para conseguir se manter solteiro e independente em meio ao senhorio casadoiro que era a alta sociedade de Vila Velha: ele, um herdeiro bem apessoado no final da casa dos 20, era um alvo perfeito.

Então, ainda que nunca tivesse se expressado claramente sobre isso com ninguém, era de conhecimento geral em Vila Velha que Eros Vicenzze se deixava envolver pela mesma mulher por dois finais de semana, nada mais do que isso!

Por que ele não estenderia o que quer que estivesse ocorrendo por mais de 15 dias se não estivesse apaixonado? A praticidade daquilo era incrível, por isso, ele nunca se incomodou em ser mais uma das "lendas" de Vila Velha, afinal, ele nunca se apaixonava. Nunca, mai, never, jamais!

Droga, como a sua mente partiu da pesquisa para esses devaneios sem sentido outra vez?

Então, tentando deixar de lado quaisquer dos motivos pessoais para estar ali, ele recomeçou a estudar os documentos escritos com pena e tinteiro, sentindo-se ainda estranhamente empolgado com o mundo de informações que tinha a sua frente.

Sem relógios aparentes, ele não notou quanto tempo havia se passado, sem que Emengarda cumprisse a sua promessa de voltar com refrescos — ele tinha imaginado que essa era a deixa para ela se certificar de que ele não estaria furtando nada de valor do local.

Os documentos escritos estavam dando lugar a retratos interessantíssimos, feitos com daguerreótipo, quando ao passar despercebidamente o olhar por pequeno retrato, algo o chamou a atenção. Os voltou para a mesma, e ao estudá-la com mais ânimo, sentiu algo lhe embolar o estômago, como um frio, um espanto. Na foto pequena e apagada, estava a imagem de um homem, cujas feições eram, evidentemente, muito semelhantes as dele.

Com um suspiro, ele esfregou os olhos e imaginando que estava forçando-os demais, pegou a lupa que tinha encontrado na mesma gaveta das luvas, e se voltou para a foto. Estudou-a novamente e a esperança daquela impressão desaparecer, é que acabou se dissipando.

Sentindo um misto de hesitação e curiosidade, ele olhava para a foto e a cada momento, a semelhança dele mesmo, com o homem, aumentava à sua vista.

Já devidamente trajado Roberto adentrou a "caverna" e ao entrar, percebeu a palidez que tomava conta do rosto do jovem visitante.

___ Meu Deus, o que houve!?! — ele perguntou, pegando de imediato a sineta — Será que é o temperatura? Emengarda, traga algo para o homem beber!

___ Não há nada de errado comigo, senhor. — ele esfregou os olhos novamente, recostando-se na guarda da cadeira e pousando a pasta sobre a mesa gelada.

___ Mas você está pálido! Está mesmo se sentindo bem? Será mesmo que não está sofrendo os efeitos da climatização?

A mulher que adentrou imediatamente o local com uma bandeja de prata, prontamente o entregou um copo com água, que ele bebeu, até com certo prazer, tendo um tempo para raciocinar — será que ela esteve lhe vigiando todo aquele tempo?

___ Não acredito que seja nada do tipo! — ele se voltou para o senhor, que tinha trazido a cadeira até a sua frente — É que eu fui surpreendido por essa imagem! — ele apontou e ao olhá-la, Roberto entendeu bem o porquê.

Diante dos seus olhos, estava vendo o próprio João Gabriel da Veiga!

Desde o Princípio - Livro 1 - Passado no PresenteWhere stories live. Discover now