Capítulo I

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É sobre um vestido de noiva.

Porque sempre é sobre alguma coisa. Qualquer coisa.

Sobre o péssimo gosto musical do vizinho do 115, ou sobre o pirralho que sempre está no saguão acompanhado de suas quatro babás, que nunca são as mesmas e que não aguentariam o serviço sozinhas. Ou sobre o novo morador do 370, que ninguém nunca viu mas de um tempo pra cá o apartamento fica com as luzes acesas todas as noites, e a caixa de correios que estava sempre vazia passou a ter correspondências. Ou sobre o edifício onde moro se chamar La Manzana, uma vez que mesmo que minha fruta preferida seja maçã, jamais colocaria esse nome em um prédio. Apesar de meu gato se chamar Apple, ainda que maçã seja a única coisa que seu extenso paladar – e estômago – não aceite.

Dessa vez, é sobre um vestido de noiva. Eu o vi enquanto voltava para casa. A aula tinha sido proveitosa e mais uma vez voltava feliz por ter escolhido fotografia. Quando o vi, fiquei admirada. Era o vestido que provavelmente a filha da própria rainha Elizabeth usaria no dia do seu casamento. Ou que Alicia usaria. Eu podia imagina-la com ele, rodopiando pelo salão como a Cinderela, no dia mais feliz da sua vida. E agora me parece que tudo é sempre sobre ela.

Não é sobre ser maio, é sobre ser um mês sem ela. Não é sobre violino, é sobre o som preferido dela. Não é sobre Anastácia, é sobre a irmã da Alicia. Não é sobre o vestido, é que seria o vestido perfeito pra ela. É tudo sobre ela. E ela morreu. E quando bati a foto do vestido, é como se pudesse ver a cena. Nós o veríamos no corpo de alguma celebridade na revista, Ali gritaria "é esse" e terminaríamos a noite bebendo vinho e ignorando a longa lista de coisas que ainda teríamos que escolher. Mas como mágica a cena veio, e a cena se foi.

17/05/2017

Mamãe entrou no quarto enquanto eu colava a foto do vestido no diário. Ela me analisou por um momento.

- se deu uma chance ou ainda escreve sobre Ali?

Ela sabia que pra mim tudo era sobre Alicia, e sabia que desde que ela se foi, não escrevo sobre mais nada além dela. Acho que ela me acha doente.

- me espanta terem esquecido ela tão rápido.

- não a esquecemos, Anastácia! Só não estamos obcecados por mantê-la viva como você! Por mais que seja difícil, ela se foi.

- não estou obcecada. – disse apenas, mas talvez eu estivesse – só não estou pronta para perdê-la ainda.

- ninguém está pronto pra isso.

Olhei para ela pela primeira vez desde que ela entrou no quarto.

- parece que você e papai estavam.

- não seja injusta. Há uma grande diferença entre estar preparado e não deixar que isso te consuma.

- é isso que acham que está acontecendo? Que a perda de Ali está me consumindo?

- Taci, você não é mais a mesma desde que sua irmã se foi, e até seus amigos perceberam!

- se acham isso não são tão meus amigos assim.

Ela suspirou.

- Anastácia, o doutor ligou, você perdeu outra consulta.

Olhei para a parede do meu quarto onde ficava meu mural de fotos. Bem no centro tinha uma foto de nós duas. Estávamos indo a uma festa da amiga de Ali. Estávamos felizes.

- não vou ao psicólogo. – disse ainda olhando o mural.

Minha mãe começou a falar algo, mas minha atenção estava inteiramente sobre a foto.

Naquele dia, Ali tinha me contado que finalmente tinha se convencido que estava apaixonada, e que provavelmente Jonathan seria seu marido. Eles estavam saindo há um tempo, e ele tinha dito que a amava três vezes. O número é importante porque, como dizia Ali, cada vez é especial. Foi nessa festa que ela disse que o amava. E ela me contou que ele quase caiu em prantos, mas se conteve. Foi quando começaram a namorar.

- Anastácia?

- hum? – virei rápido pra ela.

- você está me ouvindo?

Mordi o lábio. E se como isso fosse reposta o suficiente ela saiu batendo a porta, e me choveu lembranças. E lá fora chovia. E meus olhos choviam também.

Não É Sobre MimOnde as histórias ganham vida. Descobre agora