Primeira Parte

2 0 0
                                    

Primeira Parte

Bárbara

Bárbara está no quarto se arrumando para uma festa, calçando suas meias. Elas custam a entrar, puxadas mais com força que com jeito.

O celular toca. Ela atende com o viva voz:

- Oi, Bárbara, tudo bem? – diz uma voz masculina.

- Oi.

- Já tá pronta?

Ela finaliza a ligação. O celular toca novamente:

- Alô? – É a mesma voz de antes.

- Quê que é?

- Eu estou na frente do seu prédio, esperando dentro do carro.

Bárbara aperta o botão vermelho. Já está pronta, e desce pelo elevador. Olha para o espelho, ajeitando o cabelo, olhando para seus próprios olhos.

O carro está parado em frente ao prédio, luzes traseiras piscando. Um rapaz baixa o vidro e fala:

- Porra, Bárbara, você demora muito...

Ela olha pra o rapaz e rebate:

- Boa noite, Felipe. Pode ir sozinho pra festa.

Ela se afasta e cruza os braços. Ele tem uma resposta na ponta da língua, mas perde a vontade de falar. Sem perceber, coloca a marcha na primeira e segue o caminho que já conhece. Bárbara vê o carro virando a esquina, e olha o relógio. Puxa um pouco de ar com o nariz para soltá-lo pela boca, com impaciência.

Débora

Modus está chegando em casa. O capuz de seu casaco cinza cobre o cabelo preto e um pouco de seus olhos azuis. O zíper está fechado até o pescoço. Veste uma calça preta e folgada. As mãos estão enfiadas nos bolsos fundos do casaco.

Parado, observa o casarão. A pintura está quase toda descascada e desbotada. Alguns pedaços de madeira estão soltos. Poderia ser uma casa abandonada em outros lugares. Olha em volta. Desta vez não há nada ao redor, só o chão seco e cinzento. Senta-se e olha para a poeira cinza grossa, espalhando a sujeira com as mãos, distraído. Deita, e coloca a mão na barriga, levando-a para dentro da calça, distraindo-se por alguns minutos enquanto vê o céu tomado pelas nuvens escuras de sempre.

Sente vontade de entrar. Levanta-se e pisa no primeiro degrau da entrada. Ouve o som da sua pisada. Sobe mais dois degraus e chega na porta dupla de entrada. Tudo é familiar e repetitivo. Lembra de onde veio desta vez por alguns segundos, e vê que as as fracas luzes lá de dentro estão acesas. Abre uma das portas, e entra.

A sala continua decrépita e suja, sem nenhum cheiro. Tudo é penumbra, um ambiente melancólico. Observa e sobe os degraus da escada para o segundo andar, onde estão os quartos. No topo, vira e segue o corredor de paredes encardidas e suas quatro portas. Três do lado direito.

Modus abre a primeira à direita. A pouca luz de fora passa pelo vidro sujo das janelas, suficiente apenas para ver o contorno dos móveis. As tábuas corridas do chão não rangiam no passado. Vitor está deitado na cama, de bruços, um lençol cobrindo parte do seu corpo e o de outra pessoa.

- A Débora chamou a gente. - Modus fala monotonicamente.

A pessoa que dormia ao lado de Vitor se ergue rapidamente no ar. A fada é magra, cabelo cheios de cachos, de um castanho claro que brilha mesmo com a luz fraca. Seu brilho se destaca no ambiente. Ela encara Modus séria, reprovadora, suas asas agitadas, seu corpo planando acima da cama. Ele observa como a cor dos pelos pubianos é igual à do cabelo. Com o rosto enfiado no travesseiro, sem se mover, Vitor fala:

- Já falei pra você não me interromper.

- A Débora chamou a gente. – Modus repete com a mesma voz.

Vitor levanta a mão o suficiente apenas para sinalizar um "pode ir embora" para a fada. Modus sabe que não há desprezo no gesto, ao contrário da fada. Visivelmente incomodada, ela faz um delicado gesto com as mãos, sem mover os braços, e uma peça de tecido bem leve e fino, da mesma cor de seus cabelos, sobe da cama e contorna seu corpo, cobrindo-o irregularmente. Ela contorna a cama e lambe a boca de Vitor, agora já sentado. Os dois sorriem um para o outro, e mais um olhar desaprovador feérico segue para Modus. Flutuando no chão, segue até uma porta de vidro e metal enferrujado que se abre para fora da casa. O movimento da porta não faz som algum. Poucos pedaços da construção manifestam-se atualmente. A fada voa pela porta, e suas metades fecham-se ao mesmo tempo. Em silêncio.

Vitor se levanta, e encontra os olhos de Modus na sua direção. Os dois têm traços parecidos, o primeiro fisicamente menor, com "jeito de um Modus mais velho", muitos disseram. Uma comparação agora vulgar entre dois irmãos que já foram muito parecidos, antes das eras seguirem seu rumo.

Vitor levanta com preguiça, nu. Modus se aproxima da porta e observa lá fora, sempre com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Agora um vasto labirinto, com altas paredes manchadas de preto e cinza, cobre o que antes era a terra estéril. Enquanto isso, Vitor veste uma jardineira jeans.

Os dois se olham e saem do quarto. Seguem juntos em silêncio até a parede em frente à escada. Poucas criaturas souberam que é feita de um material esponjoso, hoje desgastado e imundo. Do outro lado eles encontram água fria, mas limpa, que preenche um longo poço cheio de fraca luz azul, e ambos nadam para cima. Quando chegam na superfície seus corpos erguem-se no ar, flutuando à frente da Débora

Débora está de olhos abertos, imóveis, observando algo além. Os dois sabem que ela enxerga muitas coisas e lugares e pessoas e ideias, mesmo depois que seus olhos ficaram turvos. Os cabelos ainda são muito longos, e se espalham sobre a parede, como hera. Todo seu corpo está encostado na parede, os braços ligeiramente abertos afastados do corpo, pernas quase cruzadas, mas nenhum membro está parado. Movimentos suaves sugerem que está sentindo prazer com o que observa, ou incômodo. Várias finas placas brancas semelhantes a porcelana se espalham por sua pele. As placas se parecem com o azulejo que cobre toda a câmara, cobertos por restos de memórias. O fraco brilho azul vem de todas as direções, gerando uma variedade de reflexos na água, cada vez mais lentos depois que os dois emergiram.

Ainda olhando para seu além pessoal, Débora diz:

- Encontrem minha irmã.

O som da voz é claro. Vitor e Modus retornam para a água, descem o túnel nadando e atravessam a parede-esponja. Os dois abrem a porta que está sozinha em uma das paredes. Apenas uma pequena mesa de copa e duas cadeiras combinando ocupam o ambiente. Muitos papéis se acumulam pelo chão, e a mesa está vazia. Uma lâmpada pendurada substitui as janelas. Próximos da mesa, Modus coloca algumas notas de dinheiro amassadas.

- Consegui isso.

Vitor põe a mão sobre o dinheiro e o espalha um pouco.

- Tem bastante.

Fora da sala, Modus enfia as notas em um dos bolsos do casaco. Descem a escada, Vitor à frente, até a porta dupla da frente do casarão grande e decadente. Vitor caminha até o solo rachado, e avança uns poucos passos. Modus senta na pequena escada enquanto Vitor fica parado, olhando para as paredes do labirinto. De uma pequena torre-janela um brilho azul começa a crescer rapidamente. Seus vários fracos feixes aos poucos tornam-se um forte, direcionado para uma das entradas do labirinto. Modus se levanta e, junto com Ele, segue o sinal.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Aug 05, 2020 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

MuseuWhere stories live. Discover now