Capítulo 1 - Déjà-vu

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Aquele parecia ser um dia promissor. Bernardo nunca tinha visto um nascer do sol tão belo. Estava ansioso. Afinal, nunca antes na vida ele havia ido à praia. É fato conhecido dos Brasileiros que o litoral sul, que banha o estado de São Paulo, não é dos mais belos. Porém, para quem nunca antes vira o mar, que diferença fazia?

Seus pais ainda não tinham acordado. Nem seus amigos, de idade próxima à dele. Ele ficou na entrada da casa, na varanda, ansiosíssimo. A família dele havia viajado durante a noite, e, por mais que tentasse, não conseguiu distinguir o mar no horizonte. A casa alugada era simples e pequena para a quantidade de pessoas que agora a habitavam, além de ficar longe da praia. E esse povo que não acorda?, pensou ele pela terceira vez enquanto olhava a rua divertindo-se em ver um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Eles estavam em duas famílias: a sua, com seus pais e duas irmãs mais novas, e a da sua melhor amiga, Camila, que tinha uma irmã e um irmão, ambos mais novos. Como eles haviam crescidos juntos, eram quase irmãos também. Suzana, a mãe de Camila, havia dito que naquele dia eles visitariam uma praia que ficava atrás de uma ilha - a Prainha Branca, em Bertioga. Bem, não era exatamente uma ilha, mas já que para chegar a ela, era necessário atravessar um rio de balsa e depois passar por uma trilha na mata, Bernardo preferia imaginar que era. Coisas de criança.

- Fala tapado, já acordou? - perguntou Henrique, irmão de Camila.

- Não, ainda tô na cama, peste!

A resposta irônica foi recebida com um tapa na cabeça, que gerou algumas risadas. 

- Tá ansioso, né?

- Claro! Já disse que nunca vi o mar antes!

- Eita! mas você é mais velho que eu! Tá com o quê? 10 anos?

- Fiz 11 mês passado, palhaço. Sou mais velho que sua irmã.

- Ah, é mesmo!

Ao passo que Henrique e suas irmãs tinha um cabelo acobreado e pelo morena, Bernardo tinha os cabelos negros como uma noite nublada e sem lua e a pele cor de café com leite. Os amigos diziam que era cor de gente branca que caíra na lama, mas ele não ligava. Aprendeu cedo na vida que rir das piadas dos amigos evitava novas piadas e fazia com que os apelidos não vingassem. Além do mais ele gostava da sua cor: uma mistura perfeita do pai, que era negro, e da mãe branca como o leite. E ele amava essa mistura. Sua personalidade saíra a um misto dos pais também: falador como a mãe, hiperativo como o pai. E muito, muito inteligente pra alguém da sua idade.

Logo o café estava pronto, e a balbúrdia causada por duas famílias - 10 pessoas ao todo - em uma casa que caberiam no máximo 6, estava formada. As 6 crianças praticamente engoliram os pães, bolos, frutas e leite servidos, tamanha era a ansiedade. E, depois de muitas brigas e conselhos dos pais, que a essa altura já haviam percebido que aquela viagem não lhes traria paz nem descanso de forma alguma, partiram para a praia mais próxima.

Nada, absolutamente nada, poderia explicar o que Bernardo sentiu quando viu pela primeira vez aquela imensidão de areia e água! Foi simplesmente incrível. Ele não viu a hora passar, e em pouco tempo, sua mãe já o estava chamando para almoçarem antes de partirem para a Prainha Branca.

Tudo ali o encantava: o mar, a areia, o mar, os vendedores de petiscos, o mar, a quantidade de gente, o mar... Era muito para se assimilar, e muito pouco tempo. E agora, de barriga cheia e ansiedade renovada, partiram rumo à balsa que os levava para o outro lado do rio, onde atravessaram uma trilha morro acima. Com trilhas Bernardo já estava acostumado. Sua casa era perto de um parque, e ele gostava de inventar trilhas para chegar lá ao invés de usar a estrada normal.

Mas uma trilha como aquela ele nunca viu. Nem tampouco aranhas naquela quantidade e tamanho. Eram muitas. Algumas coloridas, outras tão pretas que se confundiam com as sombras geradas pelas árvores. E, conforme foram subindo, a mata foi fechando. Bernardo detestava aranhas. Mas nem mesmo elas diminuíram sua alegria, apenas serviram para aumentar seu desejo de atravessar logo aquela trilha e chegar na praia.

Por fim a subida acabara, e agora começaram a descer. A trilha era mais fácil na decida, e as árvores menos emaranhadas, de modo que era possível vislumbrar a praia lá embaixo. Era ainda mais maravilhosa que a anterior. Foi preciso que seu pai o pegasse pela cintura para que ele não se atirasse no mar assim que saíram da trilha, já que naquele trecho não era permitido nadar. As ondas eram muito fortes, e o mar ali era fundo. Mais alguns minutos de caminhada, porém, e eles chegaram na parte apropriada para banho.

Que tarde maravilhosa! Ali havia menos gente - também pudera! Não é todo mundo que se dispõe a andar tanto - e a diversão só não foi maior do que o choro das crianças na hora de irem embora. Bernardo não chorou, claro - homem não chora, diria seu pai - mas vontade não faltou. A raiva era tanta, que não ouviu quando alguém instruiu as pessoas a permanecerem na praia, nem viu o céu se fechar quase que instantaneamente. Não reparou nos raios ao longe e nas nuvens escuras. Já estava longe na trilha quando percebeu que estava sozinho, e que a trilha estava bem mais escura do que antes.

Ainda não era noite, então porque estava tão escuro? E onde estava seus pais? Cadê suas irmãs, a Camila, o Henrique e a Carina? Cadê todo mundo? Pensou em voltar, mas o que parecia um trovão retumbante o fez pensar melhor e achou que devia ficar ali e esperar. Estranho, não vi nenhum raio, de onde veio o trovão?, pensou. Foi quando aconteceu.

Ele olhava para o chão quando este se iluminou com um clarão esverdeado. Olhou imediatamente para cima. A luz verde quase o cegou. O som veio depois, como acontece quando um raio cai longe. Mas não era o som de um trovão. Era um zunido alto e cortante. O chão tremia e sua pele se arrepiou. Ele não sentiu o impacto. Era como se estivesse em um sonho. O som sumiu. O tremor parou. O chão aos seus pés desapareceu e ele sentiu que estava sendo sugado. Sugado para baixo, sugado para o vazio. Tão rápida como começou, a queda parou.

Ali, deitado no vazio, sentia pequenos pezinhos andando sobre ele. Mas se estava caído, onde estava o chão? O que era essa sensação estranha de mil coisinhas rastejando sobre ele? O terror tomou conta de sua mente quando se deu conta de que estava coberto de aranhas, de todos os tamanhos, embora todas agora estivessem negras. A luz verde sumira. Ele não tinha mais forças. Antes de apagar de vez, tinha certeza de ter vislumbrado a silhueta de um homem. Mas devia ter imaginado. Era grande demais - largo demais - para ser um homem. 

Quando acordou, estava deitado embaixo de um coqueiro, de frente pro mar. Sua mãe, estava ali ao seu lado. Lia um livro. Estava anoitecendo. O que havia acontecido? Certamente ele dormira de exaustão das brincadeiras do dia e sonhara. É, deve ter sido isso.

Ken-YaWhere stories live. Discover now