E, quando a mãe natureza rugiu seu primeiro trovão, sobre as roupas ensopadas do escrivão Días, a figura despiu-se de sua humilde armadura, revelando um corpo frágil e magro. O tecido abrira-se após ter puxado um cipó dourado, que juntava as partes como uma grande capa e capuz. A face, parcialmente descoberta, estava fina, mostrando-lhe todas as curvas de seu esqueleto. Na cintura, seus ossos encontravam-se com uma linha trançada, de ouro, cobria-lhe a parte, e seu peito famélico entregava-lhe a figura de um jovem homem. Nos olhos castanho-avermelhados de Castello, toda a admiração ousou escorrer-lhe pela face, juntando-se à chuva. O rapaz curvou-se, sem tocá-lo em um momento e, com a voz mais cândida que o loiro já ouvira, disse:

— Tu deverias voltar.

Abismado com a fala, Días ficou atônito por alguns instantes. Seria esse o pobre rapaz que poupava seu povo da extorsão de Montezuma? Era tão frágil, tão delicado, se um vento batesse-lhe, podia cair. Conquanto, ainda assim, dava suas últimas gotas de suor pelos seus semelhantes. Após um tempo, Castello notou, pelos fios que escapuliam do capuz, que o rapaz tinha cabelos negros, bem como os nativos de lá. Todavia, certamente, não era apenas mais um deles. Depois de recuperar-se, ergueu a face e finalmente respondeu:

— Não posso — silabou, simplório. Fazia forças para levantar, mas suas pernas tremiam. Quando deu-se conta, o rapaz cobria sua face usando as mãos, sem o tocar, impedindo que a chuva inundasse mais ainda seus olhos chorosos.

— Tua mãe deve ter saudades, vá. Prometa não usar isto em ninguém mais — a voz doce convertia-se em choro, como o de mãe que lamenta a partida de seu filho.

— Mas e você? Como sabes minha língua? Qual o teu nome? — desesperou-se, a chuva forte já trazia seus soluços de fim de tarde. O rapaz ia-se embora, apanhando a capa e vestindo-se usando apenas seu cajado. Tocava somente onde havia ouro, e escondia-o cuidadosamente após cada amarra. Quando seu passo afogou-se na poça d'água no chão, ouviu Castello chamá-lo de novo: — Não se vá...

E sua voz ecoou na chuva mais uma vez, antes de perder as forças. Há horas não comia nem bebia nada. Sua mente inteira cercava-se nos olhos azuis, no corpo magro e na alma de guerreiro. Queria salvá-lo, de alguma forma, mas sequer sabia o que tanto o ameaçava. Sentia apenas uma dor enorme no peito, como um desejo que grita por atenção, e deixou que todo o seu choro fizesse som na mata quando viu o rapaz tornar, com uma enorme folha nas mãos. Dourada e curva como o pequeno sorriso que abriu, fez a água da chuva escorrer por ali até alcançar os lábios trêmulos de Castello.

— Beba, ainda não o posso trazer comigo se estiveres fraco assim — encolheu-se. Os dedos gelados tocavam-se com receio, até Fugo tentar alcançá-los. — Não me toques, por favor.

— O que há de errado, por que não posso? — estava confuso, delirava, mas as perguntas floresciam debaixo daquela chuva toda. — Por qual razão o que tocas se transforma em ouro?

— Perguntas demais.... — baixou a cabeça de novo. Jamais havia tido um contato tão íntimo com alguém, exceto com uma moça de sua tribo, logo após um ocorrido trágico em sua memória. Sentia a confiança naquele homem, mas não se podia precipitar. Ele tinha uma arma. — Deves ir, seus homens o virão buscar. Não podem me ver ou-

— Ou? — Fugo puxava a barra úmida dos farrapos entre os dedos. Unia todas as suas forças para isso, sem querer voltar atrás um momento. Os olhos azuis viraram-se, cabisbaixos, e o rapaz decidiu que se morresse ali, ao menos não estaria nas mãos de Cortés; mas nas mãos de um homem de bem.

— Ou meu povo padecerá por mais séculos sem mim — suspirou, sentando-se. A chuva diminuía de intensidade, mas Fugo sequer tentava despir-se. Estava gelado, mas não tinha forças para mais nada a não ser ouvir o que o rapaz de olhos azuis tinha a dizer. O loiro aninhou-se nos próprios joelhos e, descansando a cabeça por ali mesmo, pediu para que o outro continuasse. — Há muito tempo, Montezuma governava este povo como se nada fossem a ele senão fonte de riqueza. Mais que nos tempos de hoje, cobrava impostos absurdos e o povo só não morria de fome por piedade da natureza. Mas era muita gente e, uma hora, morreriam por alguma escassez — pausou com um tom melancólico. Parecia querer chorar, mas quando encontrou os olhos atentos do escrivão, continuou. — Uma anciã disse-me que eu era filho do imperador, com uma de suas centenas de criadas. Dizia também que algo nele fez com que eu nascesse... assim.

— Então é tudo por culpa de seu pai?

— Não o chamo de pai.

— Eu sinto muito por isso.

— Não sinta. Um dia ele terá o que merece.

— Mas, diga-me, então, como tu comes e bebes? Se tudo o que tocas vira ouro... — Días suspirou. A chuva cessara. Fez força para tentar tirar a roupa pesada que mantinha-o preso ao chão, mas sentiu o cajado de ouro tocar-lhe as mãos.

— Não se esforce por agora, tentarei trazer-te algo.

— Eu prometo.

— O que prometes?

— Que não usarei a arma contra mais ninguém.

— Não deveria ser uma promessa, mas uma obrigação.

— E prometo que jamais deixarei que o capturem — Castello respondeu, com sinceridade, tocando o cajado dourado de volta. Ao que percebera, o rapaz não podia transformar as coisas em ouro através de outros objetos a não ser suas próprias mãos. — Mas não deveria ser uma promessa, já que salvastes minha vida.

— Tu és um homem diferente dos outros — o rapaz aproximou-se. Olhou de perto os olhos castanho-avermelhados e viu ali um brilho diferente. A proximidade repentina fez com que Días recuasse brevemente, sentindo a respiração cálida do rapaz próxima de sua face. Os curtos e ralos fiapos loiro-claros de bigode apontavam-no abaixo do nariz, umedecidos pela chuva que passara. Um vermelho suave tomou as bochechas de Castello quando, por um gesto inesperado, o rapaz encostou sua testa na dele. — Pareces mesmo ser diferente — os olhos azuis fecharam-se e Días podia jurar estar vendo um anjo diante de si. Tentava descontrair-se com o ato, e, quando estava prestes a, foi surpreendido por outro movimento repentino. O rapaz ergueu-se, oferecendo ao loiro seu cajado. — Estamos em dívida um com o outro. Devo-te satisfações, imagino, mas não poderemos conversar mais por aqui. Tenta levantar-se que vamos andando.

Apesar de toda a exaustão e frio, Fugo levantou-se. Era difícil depois de horas erguer-se tão abruptamente, mas faria de tudo para conhecer mais sobre aquele quem salvara sua vida. Andava mais à sua frente, quando o loiro decidiu perguntá-lo.

— E qual é nome daquele que muito devo?

Com um sorriso escondido pela capa, o rapaz respondeu:

Tōnalli.

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⏰ Last updated: Jun 29, 2020 ⏰

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O Tesouro de TenochtitlánWhere stories live. Discover now