Girássois de Van Gogh

910 62 14
                                    

A noite caiu derramando sombras sobre o gramado, o vento soprou minha pele e me fez estremecer. O som de um piano ecoou por entre a imensidão de vidro que cercava o museu do Louvre, trazendo consigo o maior aconchego que este lugar poderia me oferecer.

Uma noite de setembro, onde eu deveria estar ocupando minha mente com a contagem dos dias, mas não estava.

Era um anoitecer frio em pleno verão, o meu blazer não era capaz de aquecer o suficiente. Eu me abraçava, afagando os braços e deslumbrando-me com a imensidão que esse lugar guardava.

Meus passos eram silêncios, apenas ouvia-se a melodia de Beethoven. Percorria os dedos trêmulos sobre a pintura, enquanto meus olhos percorriam cada pedacinho da Noite Estrelada com admiração. Aquela era a vista da janela de seu quarto em Saint-Remy-de-Provence, pouco antes do nascer do sol, com a adição de um vilarejo idealizado por Van Gogh.

Nos oito anos entre começar a pintar e sua morte, Vincent pintou mais de oitocentos quadros, e apenas um foi vendido enquanto ele estava vivo.
Postumamente, foi proclamado o pai da arte moderna. Nenhum detalhe da vida era pequeno ou humilde demais para ele, ele apreciou e amou tudo.

Me flagrei sorrindo por alguns segundos ao lembrar de um dos escritos dele, em que falava sobre como a visão das estrelas sempre o faziam sonhar. Mesmo que a equipe do hospital não permitisse que Vincent pintasse em seu quarto, ele conseguiu fazer desenhos a tinta ou carvão no papel, misturando a visão daquela janela em diferentes momentos do dia. O retrato do nascer do sol, o nascer da lua, dias ensolarados, dias nublados, dias de vento e um dia de chuva.

— O campanário da igreja são semelhantes aos da Holanda, sua terra natal. - proferiu baixo, afundando as mãos nos bolsos frontais do jeans rasgado. — As formas giratórias no céu, por outro lado, combinam com observações astronômicas publicadas naquela época, de nuvens, poeira e gás conhecidas como nebulosas.

— Vênus estava visível ao amanhecer de Provence durante a primavera de 1889, dizem que naquele período seu brilho era quase máximo. - mordi o lábio inferior, fitando meus saltos. — Graças a isso, concluíram que a estrela da manhã na pintura, logo à direita do cipreste, era mesmo o planeta.

Eu o vi, naquela fria noite de lua cheia, sobre as luzes ofuscantes. Os cabelos loiros que caiam levemente sobre as sobrancelhas bem desenhadas, o sorriso discreto com perfeitos dentes alinhados e o rubor nas bochechas branquelas, graças a nossa pequena doze de inverno em Paris. E então, aqueles olhos azuis que me analisavam como uma bala perdida que sabia bem onde estava seu alvo.

— Dizem que Van Gogh se apaixonou pela pintura graças a cor amarela. - riu soprado, indicando com a cabeça outro de seus quadros. Eram os girassóis. — Talvez seja verdade. O girassol acompanha o sol, pois ele reflete sua imagem : forte, iluminada, um esplendor deslumbrante de luz. - uma fina chuva pairava sobre os céus, ambos a observávamos com olhares famintos. — Durante os dias chuvosos e nublados, eles se voltam uns para os outros, dividindo a energia entre si.

Um girassol, amor de duas almas alegres e daquele que nos aquece sem pudor. Eles sempre buscam a luz, algo que todos os humanos desejam ter.
"Flores da alegria", penso que deveríamos ser como os girassóis.

A natureza nos cerca de ensinamentos, talvez este seja apenas mais um deles. Por que não olhar para dentro de si mesmo com plena sinceridade e saber que ali dentro existe luz, força, resiliência?
Nossos olhos são seletivos, devemos focalizar no mais bonito e vibrante lado das coisas, realçar o que de bom temos a oferecer. Ampliar pequenos gestos e vê-los serem grandes acontecimentos.

— Naquela época, os girassóis não eram encontrados em grandes campos semeados, mas em jardins, canteiros e vasos em bairros como Montmartre. - prendi uma mecha de cabelo detrás da orelha, desviando meu olhar de encontro ao dele. — Em Arles ele já tinha experiência floral, e experimentou com o amarelo dourado, esverdeado, avermelhado e cobre, criando um tom único. Era uma demonstração de perícia, coragem e domínio do ofício, que lhe valeu a admiração de outros artistas. - ele arqueou a sobrancelhas, suas feições se contraiam em uma expressão de surpresa e admiração. — Então, sim, talvez seja verdade que Vincent tenha se apaixonada pela pintura graças a sua visão única da cor amarela.

Tudo ao meu redor parecia estar em câmera lenta, eu apenas conseguia enxergar ele. Os olhos dele são feito o mar, azuis e misteriosos, e assim como o mar, eu me sentia em paz ao ver.
Tinha algo nele, um olhar confuso, no qual havia algo de insano, algo que você não ousa encarar. Mas eu o encarava.

Eu não sabia como estávamos ali, mas éramos livres. Naquele momento, sentados num banco de concreto em uma rua movimentada, conversamos sobre tudo. Nossas vidas, nossos sonhos, percebendo como logo as coisas mudariam. Não completamente e nem na maioria dos sentidos, mas sim como nosso pouco tempo juntos iriam ser alterados para números maiores.

Naquele momento, durante o anoitecer e com gotículas de chuva que aos poucos molhavam nossa alma, eu o apreciei como uma pintura. A minha felicidade, neste momento, tinha tons de amarelo.

Eu soube, soube que até mesmo os girassóis se apaixonariam pelo Francisco. E eu me apaixonei, nesta noite em que fomos livres como os girassóis de Van Gogh.

With Love, Van Gogh. Where stories live. Discover now