60's

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É uma época fria. Falo tanto em tempos climáticos como os corações daqueles que nos cercam.

Eu havia acabado de chegar de uma loja de discos, trazendo o mais recente lançamento dos Beatles. Você estava lá, sentado na tua poltrona que já tinha exatamente a marca de seu corpo, com os cotovelos apoiados enquanto bebia uma xícara quente de chá e lia mais uma página do jornal que, ao meu ver, era desinteressante. Não que eu não me interessasse pelas coisas que ocorriam na cidade, país e mundo a fora, apenas não era muito agradável para mim cair na realidade de um mundo de caos.

Deixei meu casaco no cabideiro da porta, arrancando também o meu cachecol vermelho de lã, e tirando os sapatos pretos, andando apenas de meia pelo chão gélido.

— Não deveria andar apenas  de meias por aí. — você disse, é claro. Não seria a primeira vez a me alertar.

— Posso tomar friagem, eu sei. Mas tu também sabe que não suporto sapatos estando no conforto de casa. — arranquei as luvas das mãos, fazia realmente frio lá fora.

A luz do dia estava indo embora, mas nós não fazíamos questão dela, a escuridão se aproximava e era a melhor hora para nós. Eu não me incomodava com as sombras que vinham e tomava seus objetos, também não ligava para a luz artificial que havia em casa. Necessária, mas não que eu me importasse.
Deixando-te a sós com a sua leitura, parti para cozinha e comecei a preparar meu café forte.

Éramos diferentes nisso. Você sempre preferiu chá, e café era o que mais me animava diariamente. E é claro que, depois da preparação, com a minha xícara de animais coloridos - diferente da sua, que haviam desenhos abstratos com cores neutras - sentei-me no assoalho em sua frente, cruzando as pernas num X, enquanto observava o que você fazia naquela poltrona velha.

— Ficará me observando por mais quanto tempo? — Você murmurou, sem tirar os olhos daquelas páginas mortas e sem cores.

Bebi um gole do café forte, tomando cuidado para não queimar a ponta da língua sensível que tinha.

— Tempo o suficiente para decorar-te e nunca esquecer. — Eu disse após alguns minutos em silêncio e goles pequenos de café.

Acho que quinze minutos haviam se passado quando levantei. Dirigindo-me ao quarto, desdobrei minha manta favorita e usei como uma capa, envolvendo-a em meu corpo, procurando aquecer-me.

Com o disco que havia comprado em mãos, retirando de sua capa, coloquei-o na vitrola que recentemente havia tirado do quarto para deixar na sala, numa pequena mesa cor de tabaco que tinha uma gaveta com um pequeno "L" pintado em marfim, quase impercetível no móvel.

Aos poucos, o som foi preenchendo o ambiente aconchegante que era aquela sala no fim da tarde. Pela janela, pude perceber começar a cair os primeiros pingos da chuva que nos faria companhia naquela longa noite. Enquanto olhava a chuva começar a cair, percebi que se aproximava lentamente, e observamos juntos a chuva até que ela mostrasse toda sua força.

When I sixty four agora começava a tocar, e você, ainda tão cuidadoso apesar de tanto tempo, rodeou meu pulso com seus dedos longos e fez-me virar de frente para ti, e não demorei mais nem um único segundo para envolver meus braços em seu tronco num abraço, pousando minha cabeça em teu ombro.

When I get older losing my hair
Many years from now
Will you still be sending me a Valentine
Birthday greetings bottle of wine?

Apesar do ritmo daquela música, nos não estávamos "nem aí". E depois de tanto tempo, meu peito ainda pulava em alegria ao te ver, minhas mãos ainda ficavam trêmulas ao sentir o teu perfume, minha expressão tola e admirada por ti ainda me deixavam parecendo o maior bobo do universo. Como se fosse a primeira vez que tudo estivesse acontecendo.

Eu levantei e encarei o teu rosto sereno por instantes, levei uma mão até o teu ombro, e fitei nossas mãos quando você as levantou pousando a tua mão livre na minha cintura que você nunca abandona, em circunstância alguma.

Vagarosamente, nos afastamos da janela que nos mostrava o caos e sua beleza mundo a fora.

E dançamos.

De início, começamos a balançar lentamente, sem sair do lugar. Minha cabeça bate em seu peito, e nós estamos fora do ritmo, disso eu tenho certeza. A música era animada demais para a calmaria instalada em nossos peitos. Apesar de todo o talento para a dança, no fundo de minha memória me lembro de ouvir você reclamar pela primeira vez em muito tempo que sua perna doía naqueles dias, então ela se movia com dificuldade sobre o assoalho. Parecíamos mais em harmonia com o som da chuva do que com os Beatles no disco que havia acabado de comprar.

—  I could be handy, mending a fuse, when your lights have gone you can knit a sweater by the fireside. — Pude ouvir tua voz repetir as mesmas palavras que a música. A mesma música que diariamente ouvíamos no rádio.

— Sunday morning go for a ride, doing the garden, digging the weeds. Who could ask for more? — Dei continuidade na música, como me lembrava. Havíamos escutado aquela música antes que eu pudesse sair de casa para comparar o disco, era impossível que eu errasse.

Você me girou e eu ri com aquilo mesmo sendo algo bobo, a simplicidade daquele momento me atraía em grande quantidade. Meu miocárdio subia e descia com rapidez, por mais que não estivesse cansado. Meus lábios também estavam secos e isso fazia com que constantemente eu passasse a ponta da língua nos lábios.

Every summer we can rent a cottage.

Eu não fazia mais ideia de quanto tempo passamos ali, nos fitando. Mas depois de um tempo o disco já havia parado de tocar, e nossa valsa se estendeu até o momento em que a tua perna praticamente implorou por arrego.

A negritude dos teus olhos são como as páginas de um livro que comunicam e transmitem mais do que qualquer canal de rádio, transmitem paz. Em duas jabuticabas cabem um universo de constelações e a via láctea perde para a galáxia de tuas íris.

Você havia me beijado. E eu não consegui usar palavra alguma para descrever a sensação do teu peito no meu, batendo num único ritmo. Para mim, foi um novo bigbang. A expansão de sentimentos que já habitavam em mim, de sentimentos que eu jamais poderia imaginar que se tornaria o que se tornou. E foi engraçado. Engraçado porque não foi a primeira vez, e eu torcia de todo o meu coração que não fosse o último. Mas meu peito ainda agia como se fosse a primeira vez. Tudo com você era e sempre foi novo. Mesmo que eu tenha feito milhares de vezes, com você sempre foi de uma maneira diferente. Talvez fôssemos um velho e bom clichê.

O nosso amor se prolongou por mais algumas horas na escuridão da noite, no silêncio do mundo e nos nossos sussurros. E de tudo, todas as inseguranças, todas as dúvidas, as questões que tenho de resolver, eu apenas tenho uma pergunta.

Will you still need me, when i'm sixty-four?

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