Ok, Cúpido!

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A essa altura era impossível calcular o número de vezes que tocava "Coming around again" em seus fones de ouvido. Ele tem essa mania de ouvir uma musica a exaustão quando, por alguma razão, está fascinado por ela. Desta vez, o gatilho havia sido um cover tocado pelo grupo Chew Lips, algo do pop moderno que vem ouvindo, numa rádio FM francesa. A versão do trio era o suficiente para fazê-lo se apaixonar pela música, mas definitivo foi tê-la ouvido em sua versão original, da Carly Simon, algo que o remetia a infância, talvez quando a canção ainda tocava nas FMs daqui também... ou ainda toque, vai saber.

A porta do elevador se abre, sem muito quem cumprimentar além do guarda de acesso na catraca, ele chega à rua. O sol já se pondo fora do prédio. Neste momento, de algum modo, a música falava diretamente para ele, apesar da letra versar sobre um casamento, com filhos, que passa por uma crise, e ele nunca ter sido bem sucedido o suficiente numa relação para chegar a ter um casamento, ainda que em crise. Mas ouça com mais atenção e verá que não é o casamento que importa na música, ele é apenas uma situação hipotética que permite ilustrar o engajamento da personagem no amor. Nela, o amor atravessa as cenas mais corriqueiras, enfileiradas sem conexão, em nossas vidas, mas para vê-lo é preciso acreditar. A personagem se posiciona determinada, através dos fones de ouvido. Ele agora também quer acreditar no amor, seja lá o que isso for.

Costurando o caminho entre a massa de assalariados até a entrada do metrô, lembra-se de meses atrás, quando viu um curta-metragem de um amigo. Um filme universitário sobre um casal tendo uma acalorada discussão por motivações banais. Era uma comedia romântica sutil e igualmente banal. Tinha um final problemático para um roteiro, apressado pelos inúmeros tratamentos visando diminuir o tamanho final do filme. Ao fim da história a personagem mitológica Cúpido surgia para as demais personagens no bar onde se passava o enredo. Cúpido surgia em uma forma feminina, evidentemente solucionando a crise do casal. Seu amigo não tinha dirigido, mas era o roteirista. Isso foi estranho, porque ele sempre achou que esse tal amigo tinha um bom conhecimento de narrativas, ou o suficiente pelo menos para saber que esse era um final bastante forçado para a trama.

Um tanto constrangido, ele fez esse questionamento naquele mesmo dia, sentados à mesa de um bar, apenas ele e seu amigo, horas após a exibição do filme na casa da aluna que dirigiu o curta-metragem. O jovem roteirista ficou inesperadamente feliz com a questão.

- Não, tudo bem, eu adoro ouvir uma critica. As pessoas sempre dizem "legal" e tanto faz. Legal não significa nada, é mesmo que dizer que não vai opinar, ou que nem se importa.

O roteirista se levanta, apanha seu copo de cerveja e faz sinal para que o acompanhe fora da área demarcada em tinta amarela na calçada, proibida para fumantes.

- Na real, de certa forma, a ideia de um final forçado vem um pouco disso mesmo. É o deus ex-machina, uma tradição do teatro, grego eu acho, em que os deuses vinham intervir ao fim, solucionando a trama, não importa em que pé ou o quanto improvável estava. Eu fiquei com medo de colocar isso - acendendo o cigarro. - Mas, como dizer... isso reflete exatamente o espírito da história, ao mesmo tempo é brega, irreal, mas é como... sei lá, ter um sonho, sabe? Algo para fazer. Tipo, como seria a vida se você não tivesse sonho algum? Objetivo nenhum?

Ele não sabia responder ao questionamento do aspirante à roteirista de cinema, e na real ele não sabia nem mesmo se tinha entendido a questão.

Depois disso se arrastaram alguns nomes de diretores de cinema da nouvelle vague, outros mais obscuros, um bom tempo sobre personagens em filmes do Andrzej Zulawski e tudo se perdeu. Virou arte, tanto faz.

Agora, aqui descendo as escadas, adentrando os subterrâneos da estação de metrô apinhada de gente, ele de súbito entendia.

A motivação da intervenção divina não era, ao menos no discurso do escritor, falta de criatividade em imaginar um final que mantivesse a verossimilhança da historia. Assim como na canção da Carly Simon, a Cúpido vinha para atestar a fé de que o amor pode estar presente em todos esses momentos vulgares, momentos que podem, se deixarmos, nos fazer crer que há um vazio, uma falta de sentido e de beleza que é inevitável em nossas histórias pessoais. Cria de Marte e Vênus, a Cúpido é a guerreira do amor, o estandarte de uma vontade proativa, de engajamento, que não aguarda o destino se consumir ao acaso, que chama à ação, para que se faça valer a força do amor sobre a palidez de cada dia.

Ok, CúpidoWhere stories live. Discover now