01 - Um Segundo

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Escreva uma cena em primeira pessoa de alguém que acabou de morrer


        Eu senti o asfalto quente contra minhas costas ao mesmo tempo em que olhei pela última vez para Olívia. Meu corpo estava molhado e eu senti um mal estar súbito, como quando você corre por muito tempo sem nenhum preparo e seu corpo implora para que você pare. Olívia segurou minha cabeça, olhou em meus olhos e gritou, desesperada pela minha resposta. Eu queria responder, queria perguntar por quê meu corpo estava tão molhado de repente, por quê seu rosto estava ficando tão branco... E então sumiu.

        Me levantei, ainda meio confuso com o ocorrido. Havia gritaria e correria, diversas pessoas pedindo por socorro. No entanto, por mais confusão que estivesse no local, eu não me sentia em perigo. Na verdade, estava tentando lembrar onde eu estava e com quem eu estava. Sei que estava prestes a fazer algo importante, então eu precisava me lembrar logo o que era.

        Olhei para trás e vi Olívia aos prantos segurando um homem nos braços, ajoelhada na calçada movimentada. Um som estrondoso estourou no ar, repetindo-se pelo menos duas vezes. Um homem gritava com um inglês quebrado. Tinha um sotaque forte e pouco inteligível, provavelmente era de outro país. Vi dois policiais agarrando o homem pelo braços e tirando um objeto prateado de suas mãos. A confusão estava feia, e Olívia não parava de chorar.

        Ajoelhei ao lado de Olívia e coloquei a mão sobre seu ombro, querendo entender por quê chorava tanto. Tentei acalmá-la:

        - Olívia, querida, o que houve? Quem é esse home...

        Agora que eu observava bem, percebia ser eu mesmo nos braços dela. Uma poça vermelha se formava debaixo de mim, encharcando as mãos de Olívia e a calçada. Alguma coisa estranha tinha acontecido, e eu não entendia o que. Me senti desnorteado de repente.

        - Ela não consegue te ouvir, Bruno. Nem te ver, ou sentir. Levante-se. Me diga o que vocês estavam fazendo aqui.

        Um homem forte e esquisito apareceu logo atrás de mim, conversando comigo e dizendo meu nome como se me conhecesse há muito tempo. Era estranho, pois ao mesmo tempo em que eu conseguia perfeitamente enxergá-lo e ver seu rosto, eu também conseguia ver através dele, para todas as pessoas que corriam e gritavam. Consegui ver seu rosto e sua expressão calma e serena olhando para mim ao mesmo tempo em que observava um policial contatar alguém através de um rádio. Senti que conhecia o homem na minha frente também, mesmo tendo plena certeza que nunca havíamos cruzados caminhos durante minha vida. Me levantei e respondi.

        - Eu e Olívia viemos ao exterior para viajar... Ela sempre quis fazer compras em Nova York.

        - Sim.

        - Nós chegamos há dois dias, e eu planejava fazer uma surpresa para ela ainda hoje.

        - Continue.

        - Eu tinha alguma coisa comigo pra entregar pra ela depois. A gente marcou de comer num restaurante chique, mas então...

        - Você morreu, Bruno.

        - Oi?

        Olhei para ele, completamente confuso. Morto, eu? Como, se eu estava andando com Olívia até alguns segundos atrás?

Houve um tiroteio aqui. Vê o homem sendo carregado por policiais? Ele é o assassino que fez isso com você. Disparou três tiros sem nem olhar para onde estava atirando. A boa notícia é que só um dos tiros fez uma vítima. A má notícia é que foi você.

        Tive a impressão de que o tempo congelou, pois fiquei calado durante muito tempo apenas observando os arredores, mas o relógio no meu corpo morto dizia que haviam se passado apenas 12 minutos até a ambulância chegar.

        - Eu fui uma pessoa ruim?

        - Como é?

        - Quero saber se fui uma pessoa ruim em vida. Eu sei que falei algumas maldades, magoei algumas pessoas, mas... Achei que isso fosse natural do ser humano, né? Tipo, brigar?

        - Por quê está perguntando isso, Bruno?

        - Porque eu estou aqui, olhando a Olívia chorar sobre o meu corpo estirado no chão, e não sinto tristeza. Não sinto raiva, indignação, arrependimento... Nada. Só sinto... Ahn, paz, eu acho? Um pouco de confusão também, talvez? Acho que eu devia sentir alguma coisa ruim vendo uma cena dessas, não?

        - Bruno, quando morremos, perdemos a capacidade de sentir muita coisa. A maioria de nós é preenchido por um sentimento... Neutro, digamos. Na sua percepção, talvez você queira chamar isso de paz ou plenitude. E isso não tem nada a ver com o seu comportamento em vida. Sua morte significa que você cumpriu sua missão. Agora você pode descansar em paz.

        - E a Olívia?

        - Ela ainda tem algumas pendências para resolver, e a sua morte vai afetá-la diretamente quanto a esse assunto. Sua mãe, seu pai, sua irmã e seus amigos e colegas de trabalho também serão atingidos por isso, mas sua morte pouco tem a ver com as missões de qualquer um deles.

        - ...E o que acontece agora?

        - Você pode escolher: pode ficar vagando por aqui, vigiando as pessoas que amava e odiava, ou ir a outro plano e conhecer as histórias de outras pessoas que morreram.

        Vi a ambulância me carregar em uma maca para dentro do carro deles. Olívia teve que ser carregada, mas se colocou firme contra a vontade dos médicos de ir ao hospital em outro carro. Gritou com todos para ir na traseira da ambulância, exatamente ao meu lado.

        - Posso fazer uma última coisa aqui?

        - É claro. Estarei aqui para te acompanhar na sua primeira passagem ao outro plano e para te trazer de volta. Depois disso, você fica por sua conta.

        - Obrigado, er...

        - Gabriel. Meu nome é Gabriel.

        - Obrigado, Gabriel. Não vou demorar.

        Entrei na van e dei uma última olhada sobre meu corpo sem vida. Olívia estava com os olhos inchados e a maquiagem completamente arruinada, mas ainda estava linda aos meus olhos. Queria poder tocar-lhe uma última vez, então dei a ela um beijo suave na testa. Seu choro diminuiu consideravelmente e ela levou uma das mão sobre a testa, então acho que ela deve ter sentido agora. Era bom saber que eu ainda tinha alguma influência no mundo dos vivos, por menor que fosse.

        Pensando nisso, me lembrei do que eu havia planejado para aquela noite com Olívia. Torci para que meu plano desse certo e fiz o meu melhor para abrir o bolso da minha calça, o que se provou uma missão extremamente difícil sem um corpo físico.

        Após dois minutos tentando, finalmente consegui puxar a caixinha para fora do meu bolso, e ela caiu exatamente nos pés de Olívia. Um dos médicos no carro fez menção de não deixá-la manusear o que quer que tivesse caído do meu bolso, mas Olívia foi mais rápida e abriu a caixinha, revelando a aliança e o bilhete que eu havia escrito na noite anterior. Vi seus olhos marejarem de novo e atravessei as portas da ambulância de volta para a rua. Encontrei Gabriel na calçada e caminhei até ele.

        - Quanto tempo leva para ir daqui até o Brasil? Quero visitar minha família antes que eles recebam a notícia.

        - No plano dos vivos, algumas várias horas. Mas podemos chegar lá mais rápido fazendo a travessia para o outro plano.

        - Então vamos. Não quero perder mais nenhum segundo.

        Olhei para Gabriel e senti calor. Um calor aconchegante, gostoso, como um dia de sol fresco.

        E então tudo ficou branco.

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⏰ Poslední aktualizace: Jan 23, 2020 ⏰

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