Amostra

71 1 0
                                    

I

Começou quando o Marcelo me ligou, às 4h30 da manhã de domingo, para dizer que tinha me comprado um presente. Engoli minha vontade de torturá-lo e matá-lo e consegui até perguntar, com a voz embargada de sono, do que se tratava. “É uma surpresa. Você vai adorar, amor!”.

Você vai adorar. Hum. Não era minha culpa que eu não acreditasse muito nisso. O Marcelo tinha o dedo podre para presentes. Eu odiava todos, especialmente os que ele comprava em viagem. Porque o Marcelo só ia para países exóticos. Juntando dedo podre com país exótico, a coisa ficava tão feia que até pedaço de gente morta ele já tinha trazido para mim. Mas tudo bem, pelo menos ele tentava me agradar, do jeito dele.

Duas semanas depois, quando fui buscá-lo no aeroporto, ele já saiu do desembarque internacional sacudindo a gaiola para chamar minha atenção. Nem me deu um abraço, foi logo anunciando seu maravilhoso presente.

– Surpresa! – gritava animado – Era pra eu te dar numa caixinha, mas chocou. Toma, espero que você goste!

Ele disse chocou? É, ele disse. Removi o pano que cobria a gaiola e dei de cara com o bicho mais horrendo que eu já tinha visto. Aquela cruza de dinossauro com jacaré tinha quatro patinhas nojentas, o corpo coberto de escamas negras, uma cauda comprida e chifres. Devia ter uns 20 centímetros e andava de um lado para o outro da gaiola com o olhar desinteressado típico dos répteis. Se é que aquilo era um réptil. Se é que aquilo era um animal.

– Marcelo, que troço é esse? – perguntei, segurando a gaiola o mais longe possível do meu corpo.

– É um iguana negro. Eu comprei o ovinho, era pra você ver nascer, mas não deu tempo. Ele chocou na viagem. Não gostou?

– Claro que gostei, amor... Só é... Bom, vamos pra casa antes que isso fuja e mate alguém.

Dessa vez ele tinha se superado. Eu não entendia a cabeça do Marcelo. Como é que alguém namora uma fanática por sapatos, bolsas e esmaltes, que morre de medo de barata e bichos nojentos, e pensa “Acho que ela vai gostar de um ser escamoso cheio de chifres!”? O único jeito de eu gostar de um iguana era se ele viesse em forma de sandália.

Coloquei a gaiola no canto da sala enquanto Marcelo e eu íamos tirar o atraso da viagem. Petit, meu cachorro, tentou cheirar o novo hóspede, mas saiu de perto ganindo. Tudo bem que meu Yorkshire fosse fresco, mas eu entendia por que ele estava tão assustado. Aquele monstrinho lagarto era mesmo aterrorizante.

Quando Marcelo foi embora, na manhã seguinte, dei de cara com o belo problema que ele tinha me arranjado. Eu tinha um iguana na sala, e nenhum conhecimento sobre esses seres. O pobre coitado do réptil estava meio paradão, então peguei a gaiola e pus na varanda. Eu já tinha visto algo na TV sobre répteis gostarem de banhos de sol, não que eu esperasse um dia usar esse conhecimento. Ele melhorou instantaneamente. Começou a andar pela jaulinha, trepar nos pedaços de pau, e me olhar sem expressão nenhuma com aquela cara esculpida pelo demônio.

– Você é a coisinha mais feia do mundo – disse eu, com toda a sinceridade.

Petit cheirou mais uma vez a gaiola, apreensivo, e me acompanhou com alegria quando eu resolvi providenciar nosso café da manhã. O meu, o do Petit, e o daquela coisa. Tive que fazer uma parada estratégica na internet para descobrir que raios um iguana comia. Aliás, até o fato de eu chamá-lo de “o iguana” era diferente, porque eu sempre achei que a palavra fosse feminina.

Para minha péssima surpresa, iguanas gostavam justamente do que eu não tinha em casa: legumes e verduras. O único vegetal que entrava no meu humilde lar era batata, e mesmo assim, só frita. Eu sei, eu sei, isso matava minha mãe de preocupação, mas, quando se vive sozinha e com um salário miserável, é preciso fazer de macarrão instantâneo a sua comida preferida e se convencer de que ela é saudável.

Acabei achando uma banana meio amassada no fundo da geladeira, mas o monstrinho não se interessou por ela e continuou seu banho de sol tranquilamente. Bom, quando ele ficasse com fome, talvez comesse. Fui trabalhar.

Passei no supermercado antes de voltar para casa. Até a moça do caixa deve ter se espantado de me ver comprando verduras. Mas quando as ofereci ao iguana, ele as ignorou solenemente.

– Marcelo? – indaguei quando ele finalmente atendeu. – O que é que você dava pra esse bicho comer? Ele não comeu nada ainda, e não quer o que eu ofereço.

– Ah, ele não tem muita fome. Deixa ele no sol que ele vai ficar bem.

– Amor, até as árvores precisam de nutrientes.

– Nada, ele vai ficar bem. Você já deu um nome pra ele?

Um nome. Pensei o resto da noite e cheguei a uma conclusão: Capeta. “Feio igual ao Capeta”, não é o que diz a expressão? Achei apropriado.

Depois da janta, sentei na minha poltrona, Petit no colo, acendi um cigarro e abri meu livro. Era meu melhor método de relaxamento depois de um dia de trabalho: fumar e ler. Mas mal estava no meio da página, Capeta começou a se debater nas grades da gaiola. Tentei colocá-lo para dentro, pendurar a jaula em outro lugar, ofereci mais uma folha de alface, mas o bicho não parava de jeito nenhum aquele escarcéu do inferno. Criei toda a coragem do mundo para me aproximar dele e tentar acariciá-lo. Talvez ele estivesse se sentindo rejeitado por eu me referir a ele com palavras ofensivas o tempo todo. Talvez só quisesse um pouco de amor. Mas o desgraçado mordeu meu dedo e eu derrubei a gaiola, com um palavrão.

Com a queda, um pino de metal se soltou e a portinhola abriu, e então a confusão estava armada. Era eu tentando chegar à gaiola antes que o bicho fugisse, o bicho fugindo, o Petit pulando desesperado tentando subir no sofá para escapar daquela besta de chifres. Quando vi, Capeta tinha escalado a mesinha e caminhado até meu cinzeiro, onde começou a comer as cinzas do meu cigarro. Ótimo. Agora o bicho ia passar mal. Peguei uma vassoura e tentei espantá-lo dali de volta para a gaiola, mas ele não voltou. Capeta nunca mais voltou para a gaiola.

Naquele dia, fui dormir como uma prisioneira. Fechei a porta do meu quarto e pus um pano de chão por baixo, para garantir que eu não seria acordada no meio da noite com um iguana andando em cima de mim ou do Petit. Meu cachorrinho ainda não tinha parado de tremer. Talvez eu tivesse mesmo sido frouxa demais na criação dele.

____________________

"Capeta" é um conto de Kássia Monteiro publicado pela Editora Draco.

Gostou desta amostra? O conto completo está disponível em várias lojas virtuais e custa apenas R$ 3,00. Para saber onde comprar, visite http://editoradraco.com/2013/01/02/dragoes-capeta-kassia-monteiro/ 

CapetaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora