— Você é o milagre? — pareceu resmungar.

— O quê?

Ela deu de ombros e ia passando por mim, quando a segurei.

— O que fazia presa aqui?

— O que você acha? A bruxa da sua amante me trancou.

— Ela não faria uma coisa dessa!

Cada vez ficava mais difícil aturar aquela mulher insuportável e cruel. Trancar uma pessoa em um porão? Eu nem queria imaginar qual havia sido o destino da pobre Elise.

— Tem razão, ela não faria isso. Eu me tranquei aqui por diversão. Mais plausível agora?

Ela estava brava, assustada e linda. Como era linda! Se não fosse uma criada, se fosse uma herdeira e tivesse acesso a vestidos caros e arrumadeiras, seria um perigo. Ela se soltou da minha mão antes que eu dissesse qualquer coisa e deu um passo para trás.

— Pode me dar licença?

Eu podia, mas ao invés disso decidi provocá-la.

— Você não vai me agradecer?

— Como?

— Você disse que a Bárbara a trancou aqui. Claramente serei eu a libertá-la. Acho que eu mereço um agradecimento.

Sua boca estava levemente aberta, como se estivesse surpresa, secou as lágrimas com uma mão e ao invés de agradecer, ficou apenas me encarando. Como se esperasse que eu saísse da porta para ela passar. Cruzei os braços, encostei-me ao batente da porta e esperei. Quando percebeu que eu estava falando sério, gaguejou. Foi nítido seu esforço, ela tentou me pedir desculpas, tentou mesmo, mas era orgulhosa demais, por fim me mandou ir para um lugar nada bonito e me empurrou para sair dali. Não consegui conter a gargalhada, ninguém me divertia como ela. Ela era forte, não me imploraria misericórdia nem se sua vida dependesse disso. Oras, ela estava disposta a ir para a forca, mas jogou uma caneca de sopa na minha cabeça e mesmo depois de saber quem eu era, ainda me acertou as bolas e mordeu minha mão. Nossos encontros de certo eram catastróficos, eu geralmente acabava ferido física e moralmente, ainda assim eu adorava estar com ela. Havia algo nela, além da beleza, que me prendia, me fazia querer irritá-la e querer agarrá-la. Com todo esse fogo, eu só podia imaginar como seria um beijo dela. E essa ideia se fixou em minha mente como nenhuma ideia já havia feito. Encarei seus lábios e não deixei que ela passasse, por fim ela desistiu e se afastou.

— Pretende ficar aí a noite toda? — perguntou irritada.

Neguei com a cabeça e continuei encarando seus lábios.

— Então? — ela estava impaciente.

— Estou esperando meu agradecimento. Você não precisa dizer, se é tão orgulhosa. Pode me agradecer de outra forma.

— Que seria...

Fixei meus olhos em seus lábios e umedeci os meus. Ela entendeu a deixa, porque ficou ainda mais irritada. Pela luz da lua que entrava através de uma janela com grade, eu podia ver claramente sua expressão assassina. Ela ia me matar, partiu para cima de mim imediatamente.

— Ora, seu pervertido, imbecil!

A contive antes que me acertasse e virei os braços dela para trás, prendendo-os nas costas, então dei um passo empurrando seu corpo com o meu, colando-os de uma maneira tentadora. Um grande estrondo aconteceu então junto com um grito de sua linda boca.

— A porta, seu imbecil!

Mas já era tarde, a porta bateu. A soltei atordoado e tentei abri-la, apenas para confirmar que estávamos presos. E a porta só abria pelo lado de fora. Eu podia sentir a raiva dela vindo até mim. Olhei para ela com toda calma possível, temendo pela primeira vez em vinte e três anos pela minha vida.

Desencantados - COMPLETO ATÉ 11/01/23Where stories live. Discover now