Parte 1

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  Acordou com o calor morno do sol beijando-lhe o rosto. O chão onde dormira continuava gelado, entretanto. Sentou-se devagar, lembrando de se espreguiçar calmamente, como um gato mudando de posição numa almofada. O sons das gaivotas ainda eram baixos, sinal que estavam acomodadas em seus ninhos nos rochedos. Ouvia as ondas quebrando de forma suave no cais, indicando calmaria. O beco onde acordara permanecia em silêncio, mas a casa ao lado começava a despertar, a julgar pelo escarrar do vizinho. 

  Resolveu se levantar antes que lhe jogassem um balde de merda pela cabeça. Não possuía nenhum pertence além da roupa do corpo e da bengala tosca de madeira que estava em pé na parede, a dois passos da esteira onde dormira. Esticou o braço com precisão e a agarrou. Em dias ruins, quando sua saúde de morador de rua cobrava seu preço, não teria conseguido pegá-la e possivelmente estaria de gatinhas no chão a procurar pelo espeto caído.

  Caminhou os mesmos vinte passos que contara na noite anterior até a Rua da Cantina. O cheiro de pão fresco encheu-lhe as narinas, mas logo o fedor o substituiu. Ouviu o derramar barulhento do balde de excrementos arremessado pela janela. "Bem na hora", pensou. Naquela noite, teria que dormir em outro lugar. Preferiu seguir o cheiro de pão fresco. 

  A bengala foi à frente, batendo na parede da primeira casa. O toc-toc indicava parede de pedra, mas o tac-tac mostrava uma porta de madeira. Ouviu um cumprimento de bom dia e sabia que era a senhora Darlings por causa da voz fraca e debilitada e do cheiro de roupa velha. O toc-toc e o tac-tac o seguiram por mais algumas dezenas de metros. Os passinhos miúdos das crianças que já se punham a brincar enchiam as vielas e as vozes dos mais velhos podiam ser ouvidas arrumando a lenha no fogão.

  Então os passos se afastaram quando o som de madeira rolando pelo chão de terra batida tornou-se mais alto. Barulho de cascos batendo em compasso devagar. Seguiu o movimento dos outros pedestres, ficando próximo à parede. A carroça chacoalhava e seu conteúdo deslizava lentamente pela caçamba, com trinados vítreos como um passarinho. 

  O carroceiro parou logo a frente e o assento rangeu, aliviado pela saída da carga. O homem era grande ou gordo. Ele conversou frivolidades por alguns segundos com uma criança, enquanto as garrafas faziam seu brinde umas às outras no engradado. Sua voz era rouca e cansada, indicando mais idade. Moedas tilintaram de uma mão para a outra e a criança correu em passos curtinhos com a garrafa balançando seu líquido num choc-choc incessante. Naquele momento, ele decidiu que leite acompanharia muito bem seu pão fresco.

  A carroça reclamou novamente quando o homem subiu, rangendo o assento. Os cascos do cavalo voltaram a bater no chão e a carroça seguiu pela rua numa marcha lenta. Ele ousou seguir a carroça, a bengala a frente riscando o chão indicando-lhe os sulcos que o veículo deixava. Se sua contagem de passos estava certa, logo chegariam à esquina e ela diminuiria a velocidade para virar. Tempo perfeito.

Mas sua contagem de passos estava errada ou a carroça parou antes, por que ele se chocou com a traseira da carroça. A bengala, dessa vez, passara por baixo das armações de madeira. Ouviu o assento ranger e o homem perguntar:

- Está tudo bem aí, meu senhor?

Enfiou a mão dentro da caçamba e achou o engradado. Era de madeira, mas estava gelado pelo suor das garrafas, possivelmente refrigeradas em tonéis de água com gelo. Agarrou uma pelo gargalo, sentiu seu peso e a retirou sem impedimentos. Ouviu o homem dizendo que custavam dois cobres, mas pouco importou. Ele simplesmente correu com ela. O leiteiro demorou alguns instantes antes de gritar "Ladrão!".

Em terra de cego...Where stories live. Discover now