Capítulo XIV

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Depois de comer, relaxaram à sombra, enquanto Huck fumava seu cachimbo. Logo penetravam na floresta para uma expedição desbravadora. Perambulavam animados, atravessando o emaranhado de alguns trechos da vegetação, encontrando-se com solenes monarcas da floresta - imensos galhos dependurados, enredados aos cipós. Aqui e acolá, descobriam recantos escondidos, atapetados de grama e de flores.

O caminho estava cheio de coisas para diverti-los, mas nada espantoso. Descobriram que a ilha tinha cerca de cinco quilômetros de comprimento por um e meio de largura. A margem do rio mais próxima ficava a uma distância de duzentos metros. A toda hora, inventavam de dar um mergulho, e continuaram nesse ritmo até o meio da tarde, quando acharam melhor voltar ao acampamento. Estavam famintos demais para se contentarem somente com os peixes - devoraram generosas porções de presunto frio e depois sentaram-se à sombra para um bate-papo.

No entanto, o assunto cedo se esgotou. A conversa morreu. A quietude e a solidão que inundavam a floresta começaram a afetar o espírito dos garotos. Puseram-se a pensar. Uma espécie de saudade indefinida crepitava em suas almas. Mas logo tomaria forma: estavam sentindo falta de casa. Até Finn, o Mão Vermelha, sonhava com os degraus das suas muitas soleiras de porta e com seus tonéis vazios. Porém, todos acabrunhavam-se por causa da fraqueza que ameaçava dominá-los. Nenhum ousaria confessá-la aos outros.

Já havia algum tempo, os garotos vinham se dando conta de algo surdo, um som peculiar, a distância, como acontece quando o tique-taque de um relógio para de nos incomodar. Porém, agora, esse som misterioso tornava-se mais insistente e forçava a consciência a tomar conhecimento dele. Começaram olhando um para o outro, cada um assumindo a postura de escuta. Seguiu-se um silêncio prolongado, profundo, ininterrupto; depois, um ruído veio flutuando lá de longe até chegar aonde estavam.

- O que é isso? - exclamou Joe, prendendo a respiração.

- Gostaria muito de saber! - sussurrou Tom.

- Acho que foi um trovão! - comentou Huck, assustado.

Aguardaram um momento que pareceu um século, e o mesmo barulho se repetiu.

- Vamos ver...

Puseram-se de pé e correram à orla da ilha, na direção da cidade. Afastando os arbustos do barranco, sondaram as águas ao longe. Avistaram o pequeno barco a vapor que fazia a travessia entre as duas margens do rio. Encontrava-se dois quilômetros abaixo do povoado, à deriva na correnteza. O convés largo parecia abarrotado de gente. Em torno, no rio, tripulantes acionavam os remos para fazer seus botes circularem ou apenas deixavam-nos flutuando, ao sabor da corrente. Os garotos, a princípio, não entenderam o que estava acontecendo. Nesse momento, um grande jato de fumaça branca jorrou da lateral do barco a vapor e, à medida que se expandia e se elevava como uma nuvem preguiçosa, aquele mesmo ruído surdo ia sendo ouvido pelos garotos.

- Já sei! - exclamou Tom. - Alguém deve ter se afogado!

- É mesmo! - concordou Huck. - Foi assim mesmo que fizeram no último verão, quando Bill Turner se afogou. Deram uns tiros de canhão na água, pra fazer ele vir à tona. Aí, pegaram uns pães, botaram mercúrio neles e atiraram na água. É que, onde o pão fica flutuando, ali é que o sujeito se afogou.

- Tem razão. Já ouvi falar disso - lembrou Joe. - Mas como é que o pão adivinha onde está o morto?

- Ah, não é o pão que adivinha. A mágica está no que cochicham para ele, antes de jogar na água - explicou Tom.

- Eles não dizem nada, não - contestou Huck. - Já vi fazerem isso uma vez e não disseram nada!

- Que engraçado! - estranhou Tom. - Então pode ser que façam a reza em silêncio. Claro, só pode ser assim.

Os outros concordaram com Tom, porque um simples e ignorante pão, sem ser guiado por encantamentos, não poderia agir com tanta inteligência.

- Caramba! Como eu gostaria de estar lá, agora - disse Joe.

- Eu também - concordou Huck. - Dava tudo pra saber quem é o afogado.

Os garotos ainda permaneceram escutando, observando... E então uma faísca atravessou a mente de Tom. Ele exclamou:

- Homens! Já sei quem são os afogados... somos nós!

No mesmo instante, os garotos sentiram-se como heróis. Aquilo representava um triunfo magnífico, caído do céu. Então, estavam sentindo a falta deles. Eram lamentados, e muitos corações feridos deviam estar derramando um mar de lágrimas arrependidos, acusando-se de terem maltratado e menosprezado aqueles pobres garotos. E, melhor do que isso, os desaparecidos deveriam ter se tornado o assunto do dia do povoado, alvo da inveja de toda a garotada. Era o máximo! Enfim, tinha valido a pena virarem piratas.

Ao pôr do sol, o barco a vapor voltou ao seu serviço costumeiro e os botes salva-vidas desapareceram. Os piratas retornaram ao seu acampamento, envaidecidos com a notoriedade conquistada. Haviam de fato provocado um rebuliço e tanto e sentiam-se contentes com isso. Tanto que foram pescar, prepararam a ceia e saciaram o apetite, e logo a seguir puseram-se a imaginar o que a população do povoado estaria pensando e dizendo a respeito deles. Achavam graça do transtorno que deviam estar causando a tanta gente. Porém, quando a noite se fechou, gradualmente foram emudecendo. Sentaram-se olhando fixamente a fogueira, com o espírito evidentemente vagando em algum outro lugar.

Depois que a excitação se esgotou, Tom e Joe já não podiam afastar a lembrança de certas pessoas, em casa, que não deveriam estar se divertindo tanto quanto eles. Começaram a surgir as apreensões, sem perceber, deixaram escapar alguns suspiros. Timidamente, Joe tentou sondá-los sobre a possibilidade de uma volta à civilização - não imediatamente, mas...

Tom recebeu a sugestão com gozações. Huck, ainda intocado pelo sentimentalismo, ficou ao lado de Tom, e o vacilante Joe precisou explicar-se, procurando fugir da melhor forma da pecha de ser considerado um frangote choroso. Por hora, o motim havia sido debelado.

Um pouco mais tarde Huck começou a bater cabeça - logo roncava. Joe foi o seguinte. Apoiado nos cotovelos, Tom contemplava os dois fixamente. Por fim, cautelosamente, ergueu-se sobre os joelhos e saiu procurando alguma coisa pela grama, sob a iluminação bruxuleante da fogueira. Encontrou algumas cascas brancas de sicômoro que pareciam servir para o fim que tinha em vista. Escolheu duas. Agachou-se junto da fogueira e, com seu lápis de cera vermelha, conseguiu escrever a duras penas algumas palavras em cada uma delas. Enrolou uma e a pôs no bolso do casaco. A outra, deixou-a dentro do chapéu de Joe, depositando-a a uma certa distância do dono, junto com algumas peças do seu tesouro particular de inestimável valor: um pedaço de giz, uma bola de borracha, três anzóis e uma dessas bolinhas de gude, ditas de cristal, entre outros objetos. A seguir, na ponta dos pés, enveredou - sempre com muito cuidado - por entre as árvores, até sentir-se seguro de não ser ouvido. Daí, correu direto para o banco de areia.

As aventuras de Tom Swayer (1876)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora