Capítulo VIII

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– O que aqui não veio, que venha! O que veio, que fique!

Depois, limpou a sujeira, revelando uma tampa de pinho. Ele a levantou e, debaixo dela, chegou a um pequeno compartimento secreto, que continha no fundo uma bolinha de gude. O espanto de Tom não teve limite! Ele coçou a cabeça com ar perplexo.

– Só me faltava essa!

Cheio de raiva, jogou a bolinha longe e ficou refletindo a respeito. A verdade é que uma simpatia havia acabado de dar errado. E logo uma que ele e todos os seus camaradas sempre encararam como infalível. Acreditavam que, se enterrassem uma bolinha de gude com os devidos encantamentos e se a deixassem lá por uns quinze dias, ao desenterrá-la, usando ainda palavras mágicas, encontrariam ali todas as bolinhas de gude que a pessoa já perdera, não importando onde estivessem.

Porém, uma falha inquestionável na sua estrutura de fé vinha abalá-lo. Ouvira muita gente dizer que se tratava de um feitiço garantido. Não lhe ocorrera que, nas experiências que fizera várias vezes antes, ele próprio nunca reencontrara o lugar do esconderijo depois. Pensou na questão por algum tempo e, finalmente, chegou à conclusão de que alguma feiticeira havia interferido para quebrar o encantamento. Achou que deveria conseguir provas que confirmassem suas suspeitas. Assim, procurou até encontrar por ali um pequeno montículo de terra com uma depressão no centro, sob o formato de funil. Abaixou-se, colou a boca perto da depressão e chamou:

– Formigas e formigões! Contem-me tudo! Formigas e formigões! Contem-me tudo!

A areia começou a mexer-se e um bichinho preto surgiu por um segundo, depois desapareceu assustado.

– Ele não quer falar! Isso prova que foi mesmo uma feiticeira que atrapalhou. Eu sabia!

Tom sabia muito bem que era inútil enfrentar feiticeiras. Assim, desencorajou-se e desistiu do encanto. Porém, ocorreu-lhe que podia muito bem reaver a bolinha de gude que lançou fora. Foi procurá-la, mas não a encontrou. Voltou à sua caixa guarda-tesouro e, cuidadosamente, postou-se no mesmo lugar em que estava, quando jogou a bolinha fora. Tirou outra bolinha do bolso e lançou-a da mesma forma que a outra, dizendo:

– Irmã, vá procurar sua outra irmã!

Observou bem onde ela iria parar e foi atrás. Mas nada encontrou perto de onde caíra a bolinha. Fez mais duas tentativas. Na última, foi bem-sucedido. A bolinha achou sua irmã.

Precisamente nesse momento, ouviu-se o som fraco de uma trombeta de brinquedo vindo da floresta. Rapidamente, Tom tirou fora o casaco e as calças e transformou o suspensório em cinto. Fuçou nas imediações até encontrar seu arco e flecha feitos de material rústico, uma espada de madeira e uma trombeta de lata. Juntou esse equipamento todo e disparou a correr – as pernas nuas e a camisa a flamular. Deteve-se diante de um velho olmo para fazer soar seu projeto de trombeta em resposta ao toque ouvido. Atento, andando na ponta dos pés, olhava para todos os lados. Logo, emitia ordens para soldados imaginários:

– Alto, meus bravos companheiros! Mantenham-se escondidos até ouvirem meu sinal de guerra.

Nesse momento, surgiu Joe Harper, vestido e elaboradamente armado tal como Tom. Tom gritou:

– Alto! Qual o forasteiro que se atreve a penetrar na floresta de Sherwood sem um salvo-conduto meu?

– Guy de Guisborne não precisa de salvo-conduto de ninguém! Quem sois vós que... que...

– ...ousais falar dessa maneira insolente? – completou Tom, que sabia de cor a fala dos personagens do livro. – Eu, certamente! Sou Robin Hood, conforme a sua desprezível carcaça vai ficar sabendo.

– Sois, então, esse famoso fora da lei? Com muita honra vou disputar convosco a posse desta floresta. Em guarda!

Sacaram das suas espadas de pau, deixando cair as outras bugigangas ao chão. Adotaram uma atitude de combate e deram início à mais encarniçada das lutas, jogando a vida em cada golpe. Tom gritou:

– Agora, se quer continuar vivo, desista!

Entretanto, o combate prosseguiu. Vivos mantiveram-se ambos e muito ofegantes, molhados de suor. De vez em quando, Tom reclamava:

– Cai, cai! Por que você não cai?

– Porque não quero! Porque não cai você, que está perdendo?

– Porque não sou eu que tenho que cair. Não é assim que tá escrito no livro. O livro diz: "Então, com um golpe ágil de espada, Robin matou o traiçoeiro Guy de Guisborne!" Agora, me deixa matar você.

Não havia como desrespeitar a autoridade do livro. Assim, Joe virou de costas, recebeu a estocada inclemente e tombou.

– Agora – exigiu Joe, levantando-se – quem mata você sou eu. Não é justo?

– Não pode. Não tá no livro.

– É mesquinharia sua, isso sim!

– Olha, Joe, você pode ser Frei Tuck ou Much, o filho do moleiro, e quebrar a minha perna com um varapau. E então eu vou ser o xerife de Nottingham e você vai ser Robin Hood por algum tempo, pra poder me matar!

Isso satisfez Joe e as aventuras foram encenadas. Depois foi a vez de Tom virar Robin Hood outra vez e, por culpa de uma freira traidora, ser ferido mortalmente, falecendo em decorrência da hemorragia. Finalmente, Joe, representando bandoleiros chorosos, arrastou Tom já sem forças e colocou-lhe um arco nas mãos. Então, Tom pronunciou a fala final de Robin: "Onde esta flecha cair, aí enterrem Robin Hood".

Em seguida, arremessou a flecha e tombou para trás. Teria morrido, de fato, se não houvesse caído sobre urtigas, que o obrigaram a dar um salto um tanto vivo demais para um defunto.

Os dois garotos vestiram suas roupas habituais, esconderam os armamentos e foram embora lamentando que não existissem mais bandidos como outrora. Conjeturavam que providências a civilização moderna tomaria para compensar tamanha perda. Afirmavam preferir ser um fora da lei na floresta de Sherwood por um ano a presidente dos Estados Unidos por toda a vida.

As aventuras de Tom Swayer (1876)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora