Uma noite no bar

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- Hey, Lipe. Manda mais uma dose pra mim - ele me disse virando seu quarto copo.

- Que bom que veio aqui afogar sua mágoas, assim não precisei virar a cidade te procurando - Falou o recém-chegado se sentando ao seu lado.

O rapaz olhou com o canto do olho seu vizinho de balcão e bufou, sem falar nada por alguns momentos.

- Como coisa que essa pocilga que você chama de cidade tivesse mais que dois bares decentes para se passar o tempo. O Gogó do Carneiro, do Lipe aqui, tem a melhor cachaça de General Cordeiro - retrucou erguendo o copo para mim em um brinde.

- Pode ser - disse o outro encolhendo o ombro. - Você não deixa de ter razão nisso. Salve Lipe. Que Jaci ilumine suas vendas - disse me cumprimentando.

Nós três éramos velhos amigos na infância. Eu apenas sorri erguendo a mão e balançando a cabeça para aquela benção, que ao mesmo tempo em que era tosca, me dava um aperto no peito.

Maldita idade, nos deixa sentimentais. E minha raça não é das sentimentais, os curupiras é quem são os melosos nessas bandas.

Paro de filosofar quando o rapaz ri da benção.

- Você continua ridículo com essa história de bênçãos e tradições da tribo.. Lipe, traz uma dose para esse cabeça oca também. Quem sabe ele deixa de ser tão piegas.

Aguardei a resposta do recém-chegado.

- Aceito a bebida, mas ser fiel às raízes não é ser piegas, Munan.

Como sabia o que essa conversa renderia eu fui pulando pegar mais bebidas enquanto ele continuava a falar.

- É nosso dever como últimos da tribo preservar o quê...

- Uma tribo morta - ele foi cortado, como eu sabia que seria. - Uma tribo que não existe mais. Esquece isso de uma vez por todas Zunã.

- É nosso legado, irmão. Podemos repovoar General Carneiro, reconstruir a tribo. Restaurar a honra dos boe, fazer o Brasil reconhecer os índios otuque!

Voltei e servi mais bebidas, inconformado. Todo ano mesma coisa. Encostei na geladeira velha e continuei secando uns copos. Logo os nossos raríssimos clientes habituais chegariam, então eu precisava de uns cinco a dez copos limpos.

- Um legado morto, maninho - disse descontando toda a raiva dando um tapa no balcão, me tirando dos meus devaneios.

Eu apenas suspirei. Não devia nem estar vendendo bebida para um cara de 17 anos, mas Munan era alto e forte. Sua cabeça raspada e a cicatriz do incêndio que marcou nossas vidas do lado direito do seu rosto lhe davam um ar mais velho, podendo passar por uns vinte e cinco anos tranquilamente.

E poucos eram os que sabiam que ele tinha bem mais do que isso.

- Cara, reconsidere meu pedido. Um legado é um legado, só morre se deixarmos isso acontecer. Eu tenho planos, e desde quando conversamos pela última vez...

- E só os céus sabem o quanto eu gostaria de que aquela fosse realmente a última vez.

Silêncio.

Zunã me olha e por um momento meu coração se aperta. Ele não mudou nada, a mesma melancolia presente em cada olhar, como se cada respirar fosse um fardo maior que carregar o peso do mundo. Ou, no caso dele, de mundos. Acho que é o que lhe dava esse ar atemporal.

- Você recebeu minha carta, Lipe?

Afirmei com a cabeça.

- Então entende o que está em jogo. Nossos pais...

Contos dos Herdeiros da Vida e da MorteOnde as histórias ganham vida. Descobre agora