- Para com isso! Eu não tenho nem mais lágrimas para chorar!

- Ainda bem. Lágrimas não combinam com você.

- Seu bobo...

- Bobo nada, eu fui muito esperto de conseguir te enganar por todo esse tempo.

- Me enganar?

- Sim. Durante toda nossa vida eu me esforcei para ser uma pessoa diferente, que fosse mais fácil pra você gostar de mim e me querer sempre do seu lado.

- Ah... Amor... Eu sempre soube disso... Eu também, a cada manhã me forçava a olhar pra você e repetir para mim mesma: eu decido te amar hoje, não importa o que aconteça. Quase sempre essa foi uma decisão fácil, mas teve dias que eu só disse isso porque prometi fazê-lo diante de Deus. Você não estava merecendo...

- Esse deve ser o maior segredo do amor...

- Como assim?

- Amor não se merece, não se conquista. O amor não é recíproco. O amor é unidirecional. Você ama de verdade quando decide que vai nutrir sentimentos e gastar sua força para amar alguém sem esperar nada em troca e se sente satisfeito com isso.

- Quer dizer que você nunca teve nenhuma expectativa de amor da minha parte?

- Não é bem assim... Eu sempre esperei receber seu amor de volta. Mas isso não era minha motivação e não posso chamar essa expectativa de amor.

Mais uma vez, ele é tomado por fortes dores. Sua respiração que estava sendo difícil, passou a ficar mais complicada porque durante a última crise de dor, uma tosse fez com que ele cuspisse uma massa sangrenta. Ela precisou fechar os olhos por um instante para se preparar para enfrentar aquilo. Era o fim.

Respirou fundo. Levantou-se, colocando o corpo sem vida do seu amado numa posição mais confortável enquanto ela iria buscar alguma coisa.

Pouco tempo depois ela retorna. Sem saber se era verdade ou se era uma miragem do sol escaldante que castigava o corpo sobrevivente do seu amado, ela podia jurar que via seu peito movendo-se poucos centímetros.

Ela trouxe consigo água e panos para limpar o que seria ali o leito de morte de ambos. Limpou todo o sangue que ele havia expelido antes de desfalecer. Enquanto limpava, sentia que ela mesmo estava ficando fraca. Sua visão estava ficando limitada, um teto escuro estava aproximando-se e, sentindo alguns calafrios, sabia que estava se desidratando.

Apesar de todo aquele sofrimento, ela estava se sentindo feliz. Iria partir logo depois do seu grande amor. Deitou-se ao seu lado e abraçou-o como sempre fez e como nunca antes. Tudo escuro.

Sem ter a noção de quanto tempo se passara, ela acorda com os solavancos daquele corpo que tinha dado como morto. Ele estava engasgado com o próprio sangue. Ela estava fraca, mas aquela reação lhe injetou uma dose de adrenalina tão forte que a empurrou para virar o corpo dele e liberar sua garganta do seu sangue.~

Não dava para acreditar... A luz do dia estava ficando mais fraca e ela não podia deixar ele morrendo sozinho ali, sofrendo. Contra a sua vontade, ela sorveu um generoso gole da água que trouxera, molhou um pequeno pedaço de pano limpo e umedeceu os lábios feridos e castigados pelo sol do seu amor.

- Querida! - Ela escuta não mais a voz, mas o sussurro de um corpo agonizante. Revigorada pela reidratação, as lágrimas lhe descem torrencialmente embargando sua voz.

- Estou aqui.

- Eu sonhei. Estava passando por um belo campo verde, como era o campo ao lado da nossa plantação de trigo. Sentei-me debaixo daquela videira, peguei um farto cacho de uva recém amadurecido. O mais surpreendente é que as uvas estavam tão doces que seu cheiro parecia embriagar-me.

- Que lindo sonho...

- Sim... O sonho foi lindo... E fica mais lindo ainda quando fechei meus olhos para poder submergir no desfrute daquele fruto maravilhoso e, senti uma forte luz me atingir. Inicialmente não tive coragem de abrir meus olhos, senti que poderia ficar cego pela força daquela luz que me atingia mesmo quando tentava me proteger. Ainda sob efeito da luz, um outro cheiro invadiu o ambiente. Era o perfume mais agradável que eu senti na vida. O que me deixou confuso, porque sentia a brisa soprando do sul, mas ao sul não haviam flores que pudessem trazer este aroma para mim. Minha mente ainda estava tentando entender este mistério quando ouvi o mais belo som de pássaros cantando, cujo ritmo estava sendo marcado pelo balancar dos galhos de árvore e me fez sorrir. Mas o que fez meu coração disparar foi escutar a mais bela voz cantar baixinho aos pés do meu ouvido, o sussurro da canção que celebrava a criação e a gratidão pela vida. Em seguida, senti o toque mais suave que deixou meu corpo leve como uma folha e, empurrado pela brisa, ergui-me e me vi saboreando o mais doce beijo da minha amada que chegara mais brilhante que o sol, mais cheirosa que as flores do campo, da voz mais doce que o coro de canários e do toque mais arrebatador que um temporal.

Ao terminar de contar-me seu sonho, o sol se pôs. O poder destruidor das desgraças daquele dia silenciou a noite. Não se ouvia o som das árvores balançadas pelo vento porque elas estavam no chão, soterradas assim como todos os animais que viviam ali. A noite trouxe o grito mais alto que a morte pode trazer: o mais absoluto silêncio.

Acima deles, o céu estrelado parecia ignorar o que aconteceu logo ali, debaixo deles. "Por quê?", ela pensava olhando para o alto. "Seria ignorância desses astros à toda aquela calamidade? Ou eles, na verdade, estão ali para acender a chama da esperança de que a vida pode renascer?".

Cansada, ela adormece nos braços frios do seu amado, sentindo-o tremer sem controle. Ela escuta um sussurro. Não entende. A voz do amor da sua vida parece se esvair juntamente com seus últimos fôlegos. Aproximando seus ouvidos ela consegue ouvir:

- Eu sempre te disse que meu desejo era transformar cada segundo em minutos, cada minuto em horas, cada hora em dias, cada dia em meses, cada mês em ano, cada ando em décadas, cada década em séculos, cada século em milênios e cada milênio iria testemunhar meu amor infinito por você. Acredito que o lugar para onde eu vou agora eu posso continuar cumprindo minha promessa de te amar para toda eternidade.

Naquele momento, serenamente, ele fechou os olhos e ela, cansada, adormeceu mais uma vez ao seu lado. Sem ter a menor noção de quanto tempo se passara, ela sente os primeiros raios da manhã atingirem-lhe os olhos e ali, na sua frente, dois pés e uma mão estendida lhe chama:

- Vamos?

Até o fimWhere stories live. Discover now