Taperás, quatro horas de uma tarde de maio

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Os bonecos encenavam a história de dois pretensos jagunços do sertão, Azulão e Cabeleira. A dupla de boiadeiros pousava de mau elemento, mas escondia a verdade: não era de duelo. Eram só pinta quando desfilavam por aí, armas e cartucheira penduradas no corpo, faca de ponta, gibão e chapéu de couro. Não passavam de dois abestados. Quando um bando de cangaço, conhecido pela crueldade, se aproximou, a cidade toda carregou no ombro deles o peso da defesa.

- Cabeleira, os ômi tão chegando. E foi?

- Foooi, Azulão respondeu demorando no "o"

O fuzuê estava completo, e a debandada foi geral quando viram que nem carregar a pólvora eles sabiam. Ana se divertia com a reação da criançada a cada reviravolta da história. Quando percebeu, passando de braço em braço, estava com o filho de Deusmar no colo. O menino tinha cheiro de pão quente com manteiga, todo ele aprumadinho em camisa de algodão da roça.

Dona Frederica pegou a criança de volta quando acabou o espeto de calabresa, e confidenciou: "Diz que faz mais de mês que não vem a regra de Nalva". Ela se referia à mulher de Deusmar. Ana só conseguiu arquear a sobrancelha. "Ih, veja quem veio se divertir, a mãe da criança que se rebolou da janela. Mas não tem vergonha, não? Ela tinha é que estar em casa cuidando dos filhos, ora essa", disse a vizinha. "Abençoada, veja aquela outra ali, Virgília, toda apetrechada. Não passa de uma coquete, uma rapariga desavergonhada, cheia de antipatias", Dona Frederica agora calibrava a pontaria inclemente em outra direção, na senhora morena de um metro e quarenta que se remexia na dança, coxa com coxa no seu par. Era a costureira, Dona Virgília, desafeto de Frederica desde que esta, após longa amizade, passou a evitá-la, sem motivo aparente.

Ana, no entanto, reparou em Penha, logo atrás da "rapariga", conversando com Hélcio, e quis saber: "Dona Frederica, e Penha? Quem é o pai da menina dela?"

"Ih, essa daí, abençoada. Embarrigou cedo e o rapaz sumiu. Já faz tempo que ela vive enrabichada paro lado de Hélcio. Mas é difícil, mãe sozinha...", apontou com desdém o queixo para o casal.

Na praça, Penha ria timidamente enquanto Hélcio lhe contava, performático, alguma passagem engraçada. O jovem de pele azeitonada, tinha cara de cachorro bonzinho. Algo um tanto fantástico marcava o espaço entre os dois: duas lâmpadas do colar de luzes pregados no poste brilhavam no vão, como se milimetricamente posicionadas. Era bonito de se ver.

Ana deixou a festa com essa fotografia na cabeça. Na frente de casa, com a chave na mão, se despediu de Dona Frederica, que fechou a porta do Santo Antônio forçando com um murro de matrona.

*

Depois de três horas, aquele olhar de Deusmar ainda ardia na pele de Ana. O pescador havia lembrado que ela gostava de lagosta. Ele havia sido gentil. Ele havia olhado seu corpo.

E mais uma vez Ana embarcou, perdendo-se entre as sinapses. Naqueles minutos que avançavam foi se afeiçoando à imagem que criava dele. Imaginou que ele gostava dela daquele jeito que os homens gostam das mulheres. Aquela força dele, com a qual ele a abraçaria mantendo o mundo lá fora. Ele adoraria seus braços volumosos. Diria que era impossível desviar deles quando ela chegava de vestido de alça. Imaginou ele navegando com ela, enfeitando o mar com a jangada. Que a menstruação de Nalva nunca se interrompera, que não existia menino com cheiro de pão quentinho, e nem outro a caminho. Ele era apaixonado por Ana.

No fundo, ela sabia que era a carência lhe pregando uma peça. E esse obstáculo a fez desviar. Então a imagem de Deusmar se esvaiu como fumaça e o foco virou-se para ela. Ainda sentia fresca a satisfação do dia. Estava tranquila. Um sorriso surgiu involuntariamente em seu rosto quando compreendeu: no fundo, estava contente com si mesma. Com a forma com que havia superado a separação, aberto mão do emprego, conduzido seus dias naquela paragem. Cada dia sozinha era um alimento que a fazia mais forte.

Zé forçava sua entrada na vigília, apontando na memória. Sua permanência salpicada de frieza. Recapitulou os últimos acontecimentos importantes de sua vida, o diploma, o emprego tão desejado, o primeiro apartamento, a decisão de morar junto. Ele estava ao seu lado em todos esses momentos, mas era como se não preenchesse o vão, como se faltasse gasolina para alcançar o próximo posto. Faltava algo. E ao mesmo tempo sobrava controle, possessividade, ameaças, jogos emocionais. Ele a desrespeitava para em seguida dizer que ela era a mulher da sua vida. O cansaço, por fim, forçou-a a se desprender deixando que a noite se assentasse dentro dela.

*

E o segredo é este: sou uma vastidão de fragilidades. Um coração de cachorro bobo, fiel mesmo depois da lapada. Uma otimista inveterada em um mundo em que isso não se sustenta. É mácula. Sigo o raciocínio sem me contaminar e acho que por isso sonho muito à noite. O dia se torna muito pouco para tanto que penso, relativizo, relaciono. As ideias escapam, então, para minha cama. Cabem em mim três sonhos distintos por noite.

Alguns caprichos consegui descontinuar, entretanto. Como ler diariamente o horóscopo no jornal. Combinar o batom com o esmalte. Escolher o livro pela capa. O que estará por vir?

Coisas enormes acontecem na vida das pessoas, eu já vi. Mas a minha ainda está descoberta aqui em cima da cama, nessa manhã que começa. Nesse lençol amarrotado, nessas páginas de palavras desencontradas, nesse lamento silencioso que é esse caderno. 

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⏰ Last updated: Dec 30, 2018 ⏰

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Ana não sabe nadarWhere stories live. Discover now