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Um par de olhos apontava para cima. Azul. Era hora, a luz tremulava apontando aquela atmosfera densa para ele. Laigur estava pronto para o dia mais importante de sua vida.

Passara a vida se preparando, como não estaria pronto agora? Foram anos sofridos na academia militar, estudo pesado todo tempo, disciplinas físicas exaustivas, privação de sono e responsabilidades, tarefas de manutenção e limpeza. Lembrava com saudades daquela época, dos seus colegas que há muito não via, cujas carreiras seguiram para a pesquisa espacial em setores outros, enquanto ele resolvera arriscar sua própria vida para a experimentação e coletas. Seria o primeiro de sua espécie a subir para os céus numa missão tripulada, sempre soube que era possível, sempre guiou suas decisões profissionais para que estivesse no cargo certo e para que o projeto se desenvolvesse no tempo certo .

Seus colegas o admiravam, para eles era um igual, um cientista, um pesquisador, que iria o mais longe que a raça toda já foi para trazer o conhecimento aos de seu povo. Alguns chegavam a invejar sua posição, queriam também seu nome na história, como é esperado do ego científico, outros temiam pela segurança do colega. Afinal nada assim havia sido tentado antes. Estes eram geralmente ligados a tarefas mais afastadas do dia-a-dia do Centro de Pesquisa Espacial e não tinham detalhes de como eram os procedimentos, as tentativas não tripuladas, os dados já coletados... hoje o projeto era praticamente à prova de falhas, lapidado até o ultimo detalhe para poder lançar com segurança um dos seus na imensidão escura do desconhecido.

Laigur vivia na maior cidade da fenda, protegida pelos muros a norte e sul, uma cidade no meio de duas grandes montanhas ou no fundo de um profundíssimo abismo. Se o Sol chegasse ali, o dia seria muito curto, um período de poucas horas em que estaria no céu, mas não era sequer visível, a atmosfera era tão densa que não se via estrela alguma. O azul provinha das luzes artificiais, acima dele só havia o negrume. A cidade era adaptada a este cotidiano e contava com uma iluminação própria distribuída em diversas alturas próximas às ruas. Não se tratava de postes, mas de globos de luz de densidades diferentes que flutuavam na atmosfera densa da cidade. Não havia ar ali, havia o que convencionou-se chamar "crim", no popular, ou "duómono" para os acadêmicos, era ele que preenchia cada lacuna das construções e do mundo, respirável e composto por dois átomos diferentes era também o responsável pela alta densidade e pressão à qual os moradores estavam acostumados, a atmosfera era quase 100% composta dele. Essa densidade era o mais importante, gerava empuxo contra a gravidade e por pouco não a vencia, assim em termos práticos os moradores podiam quase voar.

Laigur saiu de casa sem carregar praticamente nada, todo equipamento estava à sua disposição no Centro de Lançamento, tanto o oficial quanto o de uso pessoal, deixado no dia anterior, "seria de bom tom estar o mais descansado possível para o lançamento", pensou, embora notasse o exagero dessa ideia.

Passou pela porta, cruzou a rua e, quando estava a 4 quadras do Centro de Lançamento, saltou e se dirigiu para cima deslizando inclinado para chegar já no andar certo. A prática lhe permitiu aterrissar bem próximo do intuito original. Com o auxílio de mais algumas braçadas Laigur chegou ao destino em cerca de 3 minutos, se dirigiu à porta daquele andar, segurou-se no apoio da lateral, tocou o interfone e aguardou pendurado por um braço enquanto relaxava o outro.

No pouco tempo que teve ali viu a sua volta toda a cidade, pensava como iria revolucionar hoje as vidas de seus conterrâneos, as vidas de toda sua espécie, o conceito que tinham do mundo. E não tardou a começar, pois seu colega Arminof lhe abriu a porta e estendeu-lhe o braço. Realizaram seu esquisito aperto de mãos segurando um no antebraço do outro, e então passando, sem nada mudar no gesto, à um puxão, levou Laigur para dentro do cento de lançamento, no qual se sentiam em casa.
Não era pra menos, fizeram sua graduação próximos dali, visitaram o Centro quando era apenas um terreno baldio, chegaram a usar parte dele para seu treinamento físico, numa visita especial. Viram ele ser planejado por seus tutores e construído enquanto se preparavam para trabalhar nele, no futuro. E o futuro chegara.

Adentraram a sala principal, por dentro o Centro era predominantemente branco, com paredes e teto nitidamente formados por placas encaixadas, um grande hangar com mesas e equipamentos espalhados em núcleos isolados onde as equipes organizavam seus estudos, e assim era também nos andares inferiores, embora em salas menores, de função mais burocrática e teórica.
– Cheguei tarde? – perguntou Laigur.
– Não, mas já fizemos os preparativos – respondeu seu amigo com um sorriso – menos a roupa espacial.
– Eu devia ter chegado mais cedo.
– Tem muito tempo ainda, venha ver isso antes de experimentar o macacão.
Se dirigiram para o pequeno aglomerado de mesas, projetos e peças metálicas que era o núcleo de desenvolvimento de fuselagem. Ao se aproximarem viram um colega e a estagiária nova, uma moça esbelta que se mostrou muito quieta nos poucos dias em que esteve no laboratório. Todos se cumprimentaram e Afgar, o engenheiro-chefe, lhes indicou uma amostra na mesa mais próxima.
– Estava discutindo com a Marbila a possibilidade de usarmos esse material novo no próximo teste – disse enquanto, vendo que ninguém se voluntariava a pegar a peça, se aproximou do balcão e a jogou para Laigur.
Pegou a peça no ar, uma chapa de metal comum, esbranquiçado, talvez muito leve, mais do que o esperado.
– Tem 40% do peso da nossa melhor liga, alta ductibilidade e resistência similar ou superior – declarou o engenheiro-chefe quase sem pausa – ainda temos muito o que testar, chegou ontem da mina do Centro de Pesquisa da Cidade Norte, nem tem nome ainda.
– Um metal novo? – Laigur ficou espantado olhando do colega para a chapa.
– Só temos essa quantidade – quem falou foi a voz tímida de Marbila, que fez Laigur automaticamente iniciar a manobra muito lenta de deixar a peça novamente sobre a mesa.
– Muito promissor – interviu Arminoff – devemos esperar a próxima nave?
Afgar riu.
– Claro que não, a fuselagem resiste, já é a terceira nave que lançamos com essa estrutura, só é maior graças ao cockpit.
– Posso lhes perguntar por que... – Marbila hesitou, todos a olhavam, Laigur a incentivou com um sinal positivo de cabeça e cara de interesse – por que a fuselagem é tão importante? Sabe, logo antes da missão e o piloto está aqui falando dela ao invés da roupa ou do motor... não sei se estou concluindo errado, mas...
– Não, não, não... – Laigur a interrompeu – você está certíssima, estou mais preocupado com a fuselagem que com o motor, porque o motor nunca dá problema.

Na visão dos cientistas presentes os motores eram muito simples, os mesmos mecanismos que atuavam no transporte público da cidade, embora isolado da variação de pressão externa à sua caixa. Pelo duómono ser denso ali (na altura da cidade), a propulsão inicial da nave não era explosiva, mas sim mecânica. As explosões só eram ativadas quando os barômetros detectavam que a densidade da atmosfera já era tão baixa que não sustentava a propulsão. Até onde as sondas haviam subido a falta de pressão atmosférica tinha se provado um problema maior, inchando as peças e explodindo-as de dentro para fora.

– A fuselagem é a proteção do motor – disse Afgar – ela tem que ser resistente, e os espaços, encaixes e articulações da nave são pensados levando em consideração a falta de pressão e a expansão dos materiais. Felizmente a temperatura está a nosso favor, os materiais não dilatam tanto graças ao frio que faz lá em cima.
– Ao mesmo tempo ele me impede de subir sozinho – disse Laigur saindo pela tangente do grupo e puxando o amigo – então é melhor eu testar o traje.
— Seu equipamento está nas barras magnéticas – disse Arminoff, indicando o teto a um canto do salão.

Ao que foi respondido com Laigur saltando para pegar o traje especial numa caixa com tiras metálicas presas a duas imensas vigas magnéticas que atravessavam o teto do Centro de norte a sul e que estavam cheias de materiais para os projetos ali desenvolvidos. A caixa de Laigur era maior que as demais e de modelo já conhecido, "uma grande geladeira branca" pensava ele ao olhar para ela. Voltou com sua caixa nas mãos deslizando pelo meio do salão, desacelerou num movimento de braço e numa cambalhota voltou a apoiar os pés no chão contra aquela parca gravidade.

Era uma roupa bem diferente das que usavam corriqueiramente, estas cobriam o mínimo possível do corpo deixando assim as articulações expostas e o movimento livre. A roupa especial era um macacão, cobria todo o corpo e era vedado pelo capacete que se vestia por último. Também não era elegante como as vestimentas tradicionais de seu povo que usavam verde e azul em tons suaves. Seu desconfortável macacão era todo branco emborrachado para refletir melhor o calor e possíveis fontes de radiação além de, nas futuras missões em equipe, um membro poder encontrar o outro facilmente. Esta seria a missão que mais avançaria na escuridão dos céus em toda a história, e portanto todo cuidado era pouco, a atmosfera densa de duómono ficaria rarefeita quase sem pressão, a nave poderia inflar até explodir, o traje poderia, exposto à atmosfera rarefeita, rasgar e expor Laigur aos mesmos efeitos. Não eram conhecidos os efeitos, mas calculava-se que depois de seguir o dobro do que a ultima nave atingiu, esses já seriam perigosos e o navegante não deveria sair da nave.

Terminara de se vestir, Armioff testou a a roupa contra buracos que deixassem escapar o duómono comprimido que servia ao sistema de respiração. Roupa travada, respirava já pelo sistema de pressurização da roupa que contava com 3 bombas, cada uma suprindo a falha das outras numa situação de emergência. As bombas ficavam anexadas às costas como uma pequena mochila cercada por duas estruturas maiores, propulsores.

Fechando dois dedos na palma da mão Laigur ativou os propulsores na potencia mínima, ainda assim saiu velozmente do chão e graças ao treinamento dos últimos meses aterrissou exatamente onde planejava, de pé sobre o cockpit da nave. A equipe assistia, alguns aplaudiram, os demais estavam muito preocupados com a parafernália de equipamentos e regulagens dos últimos segundos.

Dali via seus companheiros, Afgar dava sinal positivo para o comando central, assim como os demais engenheiros-chefes de cada setor. Um a um foram todos checando os equipamentos e autorizando o lançamento.

– Piloto, acomode-se. – disse uma voz metálica ressoando pelo recinto – Lançamento em menos de 1 minuto.

Laigur olhou à volta a tempo de ver seu amigo uma última vez antes de partir, acomodou-se no assento dobrando o corpo à frente, quase deitando-se ao invés de sentar, como numa moto. A nave começou a se inclinar apontando os céus. O rádio tinha um transmissor em seu capacete e permitia conversar os últimos detalhes com a base, receber instruções e, o mais importante no momento, acompanhar a contagem.

5... escotilha aberta

4... céu azul lá fora,nenhum impedimento até onde a luz da cidade alcançava.

3... tensão, todos no salão torciam, olhavam para a nave, em silêncio.

2... Laigur apertou os controles através das luvas, que lhe davam uma impressão estranha de muito volume.

1... a propulsão iniciou-se, e a primeira camada de peróxido de hidrogênio propulsionou a nave. O material pressurizado se lançava para baixo na mesma proporção que a nave subia acelerando lentamente e cortando o duómono com seu bico aerodinâmico. Então os motores mecânicos iniciaram seu trabalho, até agora era como um carro normal subindo, a não ser talvez pelo seu tamanho e número de motores que guardavam a carga de explosão para os níveis superiores.
A nave subia, cada vez mais e mais longe, e essa era sua missão, ir o mais alto possível, e reportar o que ocorre na zona rarefeita. Poucos já haviam se arriscado nela, o atleta voador com o atual recorde de altura tinha subido por 600m antes de ceder à falta de pressão e, sabiamente, voltar antes de desmaiar. Nessa missão Laigur estaria protegido pelo seu traje e pela própria nave,muito superiores ao do histórico predecessor. A estimativa era de que poderia ir bem mais além, nos 1000 metros além do então conhecido parte das medidas seria feita pelo equipamento automático da nave, enquanto outra parte seria efetuada por ele próprio.

Havia ainda uma nova tecnologia a bordo, o sistema chamado pela mídia nos últimos meses de "topo do mundo". Para os cientistas o nome era mais técnico e descritivo, "sistema de inflacionamento". Tratava-se de um mecanismo de propulsão da nave que visava alta flutuabilidade em ambiente rarefeito, o que permitiria não só a nave ir mais longe como também cair de forma controlada. Assim não se sabia a máxima distancia a que a expedição poderia levar o piloto com segurança, ele poderia chegar ao "topo do mundo". Alguns teorizavam que a atmosfera seria tão rarefeita em dado momento que deixaria de existir e ele poderia, não tendo no que se apoiar, ficar perdido para sempre nas altitudes, outros teorizavam os efeitos da aproximação do Sol, e alguns até pensavam na possibilidade de colonizá-lo.

Laigur subia, já corriam 2 minutos, sua velocidade era de cerca de 11 km/h, constantes e seguindo, o céu azulado perdia a cor até o negrume completo, via o Sol, mas sua luz não chegava à zona de rarefação se aproximava e uma válvula girava lentamente no painel de controle mostrando o momento de iniciar as explosões. Laigur acompanhava a velocidade, que continuava constante, constante... e então começava a cair. No mesmo momento a válvula girava fazendo seu ponteiro entrar na zona recomendada para iniciar o procedimento. Se esperasse, o sistema o faria automaticamente, Laigur só precisava agir para guiar a nave regulando os motores e, em caso de abortar missão, puxar as alavancas do fundo da cabine.

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