Família

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Londres, 14 de setembro de 1842

Meu caro pai,

 Sei que lhe desagradei fugindo de casa, mas eu precisava! Yorkshire era tão... atrasado e parado! Tão agarrado à religião! Tão opressor! Sei perfeitamente que, desde os 7 anos, tive uma educação rígida e religiosa, com professores velhos e carrancudos, que sempre me lembravam de meu dever nessa vida terrena: Ser um pastor. Não que odeie a religião, estou longe disso! Claro que acredito em Deus, mas é que... Como posso explicar? Não tenho o dom de falar em público. Sou extremamente tímido e reservado, mas acredito que, por fim, tenha encontrado um modo de expressar meus sentimentos mais profundos: Escrevendo. Desde que descobri esse dom, 6 anos atrás, comecei a pensar sobre minha vocação; seguir a carreira religiosa e deixa-lo orgulhoso, ou seguir minha verdadeira vocação? A escrita falou mais alto, e, desde então, tenho baseado minha existência na escrita. Levava uma vida dupla; durante o dia, era um excelente estudante. Mas, durante a noite, escrevia.  Poemas, romances, contos, descrições... Havia um mundo de coisas, de cheiros e de sensações, que me acalmavam. Alguns meses atrás, prestei o exame, o teste de meu destino. Não passei. Quando descobri isso, senti um peso tremendo sair de minhas costas. Era o peso religioso. Senti medo, mas comuniquei ao senhor que não havia passado no exame, um pouco aliviado, mas preocupado ao mesmo tempo. E o que o senhor fez? O senhor gritou comigo, lívido de raiva. Não aguentei; fugi no meio do sermão, com uma terrível dor de cabeça. Me tranquei no quarto e chorei durante horas, abraçado às minhas pernas. Chorei até a casa estar quieta, e agi sem pensar; peguei alguns bens, algum dinheiro, meu casaco e chapéu e fugi.

Agora estou em Londres, e minha vida parece ter melhorado; escrevo para um folhetim, e tenho amigos como Charles Dickens e Elizabeth Gaskell. A cidade está em franco progresso. Gostaria que me visitasse.

Com os melhores votos,

Björn Thompson

***

Quando o respeitável juiz  Thompson, 53 anos, leu a carta do filho atrevido e rebelde, sentiu um misto de sentimentos; como aquele rapaz atrevido podia escrever uma carta se desculpando por ter fugido de Yorkshire? Claro que... Claro que o quê?! Claro que entendia os motivos do rapaz, ele mesmo teria procedido da mesma forma caso não tivesse passado nos exames para ser um juiz, mas seu pai teria feito pior...

O juiz fechou os olhos e tentou se acalmar. A figura paterna não lhe trazia boas lembranças. Aquilo não era um pai, era...

- Tio?- Era sua sobrinha, Helen, de apenas 17 anos.- O jantar está pronto. Santo Deus, por que o senhor está tão pálido?

O juiz Thompson limpou com um pano o suor que caia pela sua testa. Depois, disse, com voz sumida:

- É o Björn... Seu primo. Acredita que ele, depois de 4 meses sem falar comigo, me mandou essa carta?

Helen sorriu. Aquilo era bem a cara do primo; quando eram crianças, ele desaparecia nas charnecas de manhã para, no final da tarde, quando todos estavam procurando pelo menino, reaparecer com um sorriso inocente e travesso.

- O senhor o conhece, tio... Ele sempre foi assim, travesso e esperto... Lembra dos desaparecimentos nas charnecas? Todos ficavam malucos com ele, inclusive o senhor! Se lembra disso?

- Sendo que agora ele tem 22 anos! O tempo de travessuras já passou! Quero que ele cresça, nem que, para isso, eu tenha de ir até Londres resolver esse assunto. Sabe quantas noites eu fiquei sem dormir? Sabe por quanto tempo eu...

Helen revirou os olhos e disse:

- Guarde a bronca para quando estiverem cara a cara, tio. Por favor.

Problema familiarWhere stories live. Discover now