Perdida em pensamentos, não reparo a chegada de outras pessoas no recinto. O burburinho a minha volta fica mais alto e percebo que a maioria dos futuros convocados já está com suas malas e prontos para partir, assim como eu.
Olhando ao redor, vejo Juliette vindo em minha direção. Ela nunca se senta comigo, porém, parece ter mudado de ideia naquela manhã.
-Olá, Scarlett. Quando acordei você já havia saído. Queria me despedir e lhe dar isso. -Ela estende um colar com uma pedra negra cilíndrica com o acabamento em um vértice triangular. -Ganhei em um jogo de cartas aqui, dizem que protege dos maus espíritos. Acho que você vai precisar mais do que eu agora. É um presente de aniversário também. Então... Feliz aniversário. - Ela sorri e parece sincera. Em retribuição, estendo a mão e pego o cordão.
-Obrigada, Juliette. Isso é muito gentil da sua parte. -Sorrio, surpresa por ela ter se lembrado do meu aniversário.
Nesse momento, alguns amigos de Juliette passam por nós e param em nossa mesa.
-Minha nossa, se eu soubesse que você sorria, teria tentado me aproximar mais vezes. Com aquela outra carranca, isso não era possível.
E esse é o Sebastian. O babaca que todo e qualquer lugar possui. Aquele cara a quem todos acham bonito e por isso se sente superior aos demais. É, até no meio de órfãos há o grupo de populares.
Fecho a cara e o fulmino com os olhos. Ele sempre foi uma pedra no meu sapato. Desde que chegou, escolheu-me como seu alvo para azucrinar.
-É, essa carranca aí mesmo. -Ele diz e solta uma risada. Todos os que estão ouvindo, como carneirinhos domados, acompanham-no.
Sinto meu rosto esquentando. Não por vergonha, mas por raiva. Uma raiva de valentões que acreditam possuírem autorização para passar por cima dos mais fracos para satisfazer o próprio prazer, que se divertem humilhando os demais.
-Que curioso, nem mesmo vendo seu sorriso consigo achar algo que dê vontade de me aproximar de você. Para falar a verdade, ele foi um dos motivos que me manteve bem longe. -Respondo entre os dentes. Acredito que minha voz pareceu mais um rosnado animal.
Juliette parece desconfortável com nossa iminente briga, por isso interfere.
-Vamos, Seb. Tenho que pegar meu cereal. Deixa a Scarlett em paz. –Ela pede.
Ele me encara por alguns minutos, avaliando e ponderando se vale a pena iniciar uma briga. Por mim, poderíamos travar uma guerra agora mesmo. Eu iria embora, por isso poderia revidar com vontade. Entretanto, nosso duelo de olhares raivosos é interrompido antes que qualquer atitude seja tomada.
-Soldados, prestem atenção. –O capitão Carter fala e deixamos nossas diferenças para ouvi-lo. –Hoje ocorrerá mais uma Convocação e sabemos como isso é importante para nosso reino. Somos a base sólida de nossa sociedade e é nosso dever protegê-la. Todos os que partirão estão mais do que aptos para concluírem suas obrigações com êxito. De acordo com o protocolo, vocês devem participar do pronunciamento e partir, entretanto, esse ano teremos um aditivo: o príncipe herdeiro está em nossa cidade resolvendo questões do reino e decidiu lhes dizer algumas palavras após o pronunciamento do rei. –Ele relata.
Quando o capitão termina, um silêncio sepulcral cai sobre o refeitório. É sabido que o príncipe viaja em nome de seu pai pelo reino. Mas aqui? Em Marina Azul? O lugar que só gera soldados para morrerem pelo reino? Aquilo era muitíssimo incomum.
-Espero que todos se comportem e mostrem ao príncipe como trabalhamos duro para cuidar de nossa terra. –Continua o capitão. –Agora, vocês devem ir para o pátio de treinamento assistir ao pronunciamento. –Com isso, ele nos dá as costas e sai.
Todos ficamos parados por alguns segundos, até o sentido de obediência ao capitão falar mais alto e seguirmos em direção ao pátio de treinamento. Permito que os outros fiquem a minha frente. Já vi e ouvi muitas vezes o pronunciamento e não haverá nada de novo nele.
Apenas a mesma ladainha repetida incessantemente!
Percebo que os últimos preparativos estão finalizados para possibilitar a transmissão real. Os fios estendidos pelo chão, o objeto que eles denominam de transmissor que mais parece uma lata de metal preta posicionado no centro do pátio e cadeiras para acomodação dos ouvintes.
Tudo é movido a eletricidade. Esse é o momento do ano em que mais a vejo sendo utilizada em nossa cidade. Aqui o uso de eletricidade é extremamente controlado, nem mesmo conheço os famosos chuveiros elétricos.
O transmissor acende e lá está o símbolo de Pelagus: um círculo preto com 4 flechas entrelaçadas, uma para cada elemento da vida. Cada uma apontada em uma direção diferente representando as principais regiões do reino: norte, sul, leste e oeste.
Depois de alguns instantes, a imagem de um enorme trono adornado com diferentes pedras brilhantes aparece e nele está sentado o rei do fogo: Arthur Beryllos Pharus. Ele parece enorme pela tela. Ombros largos, cabelos pretos na altura do pescoço, um rosto parcamente marcado pelo tempo.
Todavia, o que faz meu estômago se contorcer são seus olhos: pretos como o breu da noite. Ele sempre me pareceu o mesmo ao longo dos anos, como se não envelhecesse. Quando sua voz ecoa por meio do transmissor, os pelos do meu corpo se eriçam em alerta.
-Cidadãos pelaguianos, é com muita satisfação que realizo mais uma Convocação em meu reinado. Outros antes de mim instituíram essa lei e, desde então, damos ao nosso povo a paz merecida. Todos sabem que o Reino Sombrio tem investido sobre nós, mas nos mantemos fortes. Vamos lutar por nossa terra até o fim dos tempos. Parabenizo a todos que bravamente irão proteger nossas vidas com as suas próprias...
Uma comoção um pouco atrás de mim desvia minha atenção do discurso do rei e a situação que presencio é como um soco no estômago: dois soldados de uniforme vermelho chutam um menino caído. Demonstrações de poder da parte de elementais são comuns em nossa cidade, porém, isso não acontece com crianças.
É como se algo adormecido em mim recobrasse a consciência, uma raiva primitiva vinda do âmago do meu ser. Sinto meu corpo esquentar, como se pegasse fogo, mas não identifico a dor de uma queimadura. Instintivamente, aproximo-me dos agressores que machucam o pequeno garoto.
-Soltem-no. Agora, seus imbecis! - Minha voz é fria e cruel, como nunca havia ouvido antes.
Os soldados olham para mim e, no mesmo instante, arregalam os olhos. Constatando que eles se afastaram o suficiente da criança, começo a caminhar em sua direção. Levanto as mãos para brigar e, para minha surpresa, fogo emana por meus dedos e atinge os dois homens.
Não consigo desviar os olhos das minhas mãos depois disso, elas brilham à luz de um fogo vermelho com uma chama branca linda. É fascinante, até o momento em que percebo que estou com fogo pelo corpo todo e os soldados também. A diferença entre nós, é que eles gritam e se contorcem no chão e eu não.
Antes que possa tomar qualquer atitude, um peso cai sobre mim e braços me rodeiam. Caio com força no chão e ouço um baque. Creio que o som seja do encontro do meu crânio com o solo, porque tudo fica completamente escuro depois disso.
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Capítulo 2
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