A MÃO DO DIABO

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  Depois de tudo, essa expressão lhe assombrava a alma.

  Celina sempre foi considerada a "mulher durona". Personalidade forte. Dava sinais do seu temperamento desde a infância e, na realidade, sempre mostrou ter muita atitude. Não queria pentear a Barbie. Fora sempre a pequena que andava de skate e ralava os joelhos, cuspindo na ferida e limpando o suor da testa com ar de "o show não pode parar". Aquilo lhe era um barato. Hoje, usava piercings na língua e no umbigo e planejava usar uma joia íntima em breve. Sem contar as tatuagens que pretendia adicionar àquele corpo calejado de um dolorido prazer.

  Mas foi na tarde ingrata que sucedeu o dia que trocou de tatuador que, pela primeira vez na vida, arrependeu-se de fazer um desenho ousado na pele.

  Adalto, o profissional que trabalhou em quatro dos seis desenhos que tinha feito, não estava no estúdio no sábado por motivos desconhecidos até por seu colega de trabalho. E, como já havia agendado e não conseguia conter a droga da ansiedade, Celina confiou o serviço ao substituto deixado por Adalto. Às vezes, certos impulsos provocados pela merda da ansiedade nos faz sentir um arrependimento maiúsculo. E esse era um deles.

  Foi neste instante infeliz que cumprimentou o pequeno Fausto. Ela o achou totalmente avesso aos modelos de profissionais do ramo. Ele não parecia ter uma tatuagem sequer. Nem piercing ou alargador. Seria como imaginar um País das Maravilhas sem coelho ou chapeleiro. É uma regra meio estúpida: lugares diferentes, pessoas igualmente diferentes, ou fora dos padrões estéticos "normais" aos olhos de uma sociedade. Um tatuador cdf? Isso sim lhe parecia estranho. Uma figura muito simples usando óculos fundo de garrafa e uma blusa fina com cachecol escuro.

  " - Foda-se!!! Se ficar bom ele pode ser o Papa."

  Ele lhe daria motivos evidentes para ser tudo, menos Sua Santidade.

  - Esse é o desenho!! - disse Celina apontando um lobo negro com olhos vermelhos no álbum.

  Tratava-se do típico desenho que levaria um tempo razoável pra fazer. Fausto, no entanto, com um olhar frio abriu uma caixa que tinha seu nome e, logo abaixo dele, dizeres no mínimo perturbadores mesmo para aquela mulher durona: A MÃO DO DIABO.

  Tirou de lá os instrumentos necessários e, em assombroso tempo o desenho ficou pronto. Fausto quase não falou durante o processo e mesmo assim ela não sentiu aquele desenho ser feito em seu braço esquerdo, muito menos aparentar estar tão vivo. Um belo trabalho. Fausto deu um sorriso único ao ouvir um elogio da mulher. Foi discreto, mas sorriu.

  A noite chegou e o local onde o lobo fora desenhado ardia mais que o normal. Celina já era rodada para avaliar o quão seria normal uma tatuagem daquele porte arder. Seu braço parecia estar assando como um leitão no forno. Só conseguiu apagar na cama após colocar uma bolsa de gelo fixada ao lado do braço.

  MALDITA ANSIEDADE. Algo não está certo.

  Foi seu último pensamento antes de apagar.

  Acordou tarde no outro dia, não com seu despertador, mas com um uivo macabro...Sinistro o suficiente pra esquecer a dor que ainda sentia no braço. Após um instante breve e incômodo decidiu que não ficaria mais deitada. Dirigiu-se ao banheiro pra despertar definitivamente para um novo dia - embora já passasse da metade do dia.

  Para sua surpresa, enquanto deixava a água escorrer pelo seu corpo notou algo que a fez sentir-se uma garotinha assustada com o monstro do armário: viu as presas do lobo desenhado à mostra, diferente da boca fechada que fora desenhada.

  Enxugou-se com olhos espantados. Aquela visão era algo que não queria acreditar ser real. Quando saiu do banheiro enrolada numa toalha da Betty Boop e segurando a gilete que usaria pra se depilar, viu com horror, subir as escadas bufando e mostrando as presas, um lobo negro de olhos vermelhos cor de sangue, salivando por seu almoço. Era muito grande e à medida que se aproximava seus pelos escuros se eriçavam. Subia lentamente e cada degrau era uma contagem no invisível cronômetro do desespero da mulher tatuada. Ela quis gritar, mas às vezes o medo não dá lugar pra certos impulsos e o grito não saiu, apenas limitou-se a um pensamento que transbordava agonia.

  - Eu vou morrer...Não tenho como me proteger, que monstro! De onde saiu isso?

  Celina se viu num filme, onde normalmente as vítimas não têm muito tempo pra pensar em questões lógicas. O inferno era esse: Havia um lobo exibindo os ávidos e famintos caninos ali, estava se aproximando e o lobo da tatuagem também estava mostrando as presas. Sentia que, a qualquer momento, sua pele acabaria por ser dilacerada impiedosamente pelo instinto daquela aberração que, de alguma forma, adentrou aquela casa. E mais um degrau ficava para trás...e outro.

  O maldito cronômetro invisível que não parava.

  Sentiu que a cada passo dele, a tatuagem ardia mais como se a boca fosse aberta mais ainda, repuxando a pele. Teve um impulso no mínimo insano, mas notável. Afinal, se ia morrer, sua atitude poderia fazer sentido ou simplesmente não fazer muita diferença. E, se fosse sonho, acordaria.

  - Pisando em pregos ou em vidro você vai se dar muito mal...Força!!!

  Com um gesto seco, passou a gilete com maestria sobre a boca do lobo desenhado e afundou na carne aquela lâmina, fazendo escorrer violentamente seu sangue. Sufocou seu grito. Outro uivo, porém mais intenso e sofrido que o do despertar foi ouvido. Era equivalente a um grito. Algo nela dizia isso. E aquele lobo que subia as escadas explodiu numa nuvem acinzentada que se formou diante de si, e foi se dissipando...Ele não chegou a pisar no último degrau e o cronômetro invisível do desespero parou. Celina estava caída na porta do banheiro com sangue fluindo majestosamente pelo braço esquerdo, cujo desenho agora não tinha mais presas à mostra.

  Deixou-se chorar, em parte pela dor do corte, em parte pelo susto e o grito que segurara até então. Ela era brava e corajosa, mas ainda era humana. Tivera atitude, sim. Mas precisava mostrar para si mesma que ainda podia chorar e podia temer a mão do Diabo.


NOTAS:

Primeiro conto publicado. Encontra-se originalmente na antologia PEQUENOS ESCRITOS - SINISTRAS HISTÓRIAS, da Editora Illuminare. A caminhada começou aqui e depois disso as histórias vinham me pedir pra ser contadas. O que mais eu poderia fazer? 

A MÃO DO DIABOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora